Richard Aabromeit

 

As transformações milagrosas da criação de valor

 

Uma pequena história

 

 

 

A repetição de um acto que não cria valor

 nunca pode ser um acto criador de valor.

(Karl Marx, MEW 42)

 

Criação de valor em euros =

custos de produção, menos adiantamentos, menos amortizações,

menos impostos indirectos, mais subsídios

(Teoria da Economia Empresarial dito sábio)

 

 

A criação de valor na economia capitalista é desde há cerca de 400 anos uma grandeza fixa, mas também um tema recorrente nas discussões de tipo económico, político, social e até mesmo moral. O que começou por ser estudado em livros e levou a novos livros, é hoje carregado e comunicado na Internet numa parte significativa. Assim me deparei eu há alguns meses, enquanto nela navegava, com o conceito de "criação de valor digital", ou de "cadeias de criação de valor digitais". Portanto, agora também o valor, ou a sua criação, a sua produção, teria recaído na digitalização. Como poderia uma categoria abstracta real ser "digitalizada"? Isso não estava imediatamente claro assim eu pesquisei um pouco, para esclarecer um pouco a história deste neologismo e a curta história ficou pronta!

 

 

A origem

 

David Ricardo foi um dos primeiros (1) e, na sua clareza, certamente o primeiro que observou que o valor de uma mercadoria deve ter algo a ver com o trabalho humano nela posto, que a antecede: "O valor de uma mercadoria, ou a quantidade de outra mercadoria com a qual é trocada, depende da quantidade relativa de trabalho que é necessário para a sua produção" (Ricardo 2006: 5). Karl Marx mostrou, algumas décadas mais tarde, que é precisamente o trabalho humano abstracto que gera valor, ou seja, valor novo, mais-valia. Tanto Ricardo um pouco mais cedo (1772-1823), como Marx um pouco mais tarde (1818-1883), viveram numa época em que o capitalismo, em particular e em primeiro lugar na Inglaterra, estava em seus estágios iniciais de desenvolvimento, ou seja, já tinha começado a processar nas suas próprias bases, mas ainda precisaria de bem mais de um século para se fazer notar também empiricamente em todo o mundo e para abranger praticamente todas as áreas da vida de toda a gente. Nas décadas seguintes, por volta de 1850, os economistas burgueses abandonaram definitivamente (2) o caminho de Ricardo e afirmaram que o valor das mercadorias surgiria não só do trabalho, mas dos três factores de produção: terra, trabalho e capital; e mais: que algo como o valor não tem nada a ver com uma abstracção (real) à la Marx, ou seja, com o resultado da prestação de trabalho abstracto no âmbito de um processo de valorização do valor, ou do capital. Em vez disso, teria de se assumir que o chamado valor corresponde apenas à avaliação individual da utilidade marginal de uma mercadoria para um sujeito económico. Esta ideia inovadora baseia-se no pensamento de Daniel Bernoulli (1700-1782), que já no anterior século do iluminismo (em que os jogos de sorte e azar eram muito populares em certos círculos) tinha explicado a contradição entre as enormes expectativas que os/as jogadores/as depositavam no jogo e a soma comparativamente pequena que estavam dispostos a aplicar. O seu conceito de "utilidade marginal" resolveu essa contradição, e "somente" uns bons cem anos mais tarde formulou Hermann Heinrich Gossen (1810-1858), o princípio da lei da utilidade marginal decrescente, até hoje basicamente aceite na economia política. Esta utilidade marginal é o valor (subjectivo) de uma mercadoria adicional, principalmente de uma da mesma espécie já adquirida uma vez (ou várias vezes); que esta utilidade marginal diminui com o aumento da quantidade de mercadorias, torna-se claro quando se imagina que se tem já três Mercedes S600; o quarto ainda pode ser um pouco objecto de desejo, ou seja, ter ainda valor para a pessoa, mas, em seguida, o quinto já não, já não deve ter realmente nenhum valor em si para a pessoa (ver sobre isto: Ortlieb 2004: 166 sg.)! Os/as marxistas, por outro lado, insistiram na visão de Marx de que só o trabalho (da classe operária) estaria em posição de criar valor, mais-valia. A ideia de que também outros factores, ou outras fontes, pudessem desempenhar um papel na criação de valor (independentemente do modo como fosse definido) não ocorreu inicialmente a ninguém talvez com excepção de alguns fanáticos religiosos. Mas isso foi apenas enquanto o capitalismo se desenvolveu rapidamente, abrangendo gradualmente todas as áreas de produção de mercadorias, subsumindo todas as pessoas em todas as partes do mundo na relação de capital, trazendo para a produção em massa mercadorias que antes eram de luxo, bem como trazendo para o mercado objectos sempre novos, com mais ou menos sentido, e assim os declarando mercadorias. Este desenvolvimento, de facto em parte assassino, brutal, cruel e sangrento, mas em parte também gerador de riqueza, ocorreu de certo modo com continuidade, ainda que interrompido em alguns lugares e algumas vezes por crises às vezes violentas, durante alguns anos. Esta relativa continuidade foi uma das razões pelas quais os dois campos hostis da economia política (para usar os clichés: economia nacional e marxismo), em pelo menos cento e cinquenta anos (de 1776, em que surgiu A riqueza das nações de Adam Smith, até à crise económica mundial de 1929 a 1933/45), apenas lenta e dificilmente mudaram alguma coisa, se é que mudaram, na sua teoria, relativamente ao tema da criação de valor e do valor, bem como da sua origem. Somente quando muitas certezas foram questionadas, durante a referida crise económica mundial, houve alguns ténues indícios de que a fonte do valor teria de ser reconsiderada ainda que apenas os/as economistas burgueses/as tenham sido confrontados/as com este problema; os/as marxistas tinham, entretanto, temas completamente diferentes para trabalhar. Com a chamada hipótese dos três sectores, o neozelandês Allan George Barnard Fisher (1895-1976), o inglês Colin Grant Clark (1905-1989) e o francês Jean Fourastié (1907-1990), entre outros, colocaram as bases teóricas para que a economia nacional se ocupasse mais do sector dos serviços a nível mundial. A sua hipótese (3) dividiu os eventos económicos no mundo (capitalista) em três sectores, todos em posição de contribuir da mesma maneira, apenas em diferentes percentagens, para a prosperidade e, portanto, para a criação de valor: o sector primário (isto é, agricultura, pescas, mineração, produção de petróleo e gás, em geral: a extração de matérias-primas), o sector secundário (ou seja, a indústria ou, em geral: o processamento de matérias-primas) e o sector terciário, ou seja, os serviços.

 

 

A primeira transformação

 

Esta ideia veio mesmo a tempo, pois nas décadas após a crise económica mundial, particularmente após o fim da Segunda Guerra Mundial, mostraram-se cada vez mais as tendências no sentido de que, pelo menos e primeiramente nos centros capitalistas, a produção extractiva e industrial ser gradualmente abandonada pelas empresas, que deixaram de produzir e oferecer bens materiais tangíveis, a favor de puros serviços, tais como publicidade, contabilidade, lavar automóveis, engraxar sapatos, protecção pessoal, etc. Como, na década de 1970, em vários países, especialmente nos EUA e no Reino Unido, esta tendência levou a que os serviços ultrapassassem percentualmente os sectores industrial e extractivo nas contas nacionais, apareceram os primeiros profetas a pedir a palavra para anunciar que previam o fim da era industrial, e já viam surgir no horizonte uma sociedade de serviços. O que foi então aproveitado por alguns deles como oportunidade para alargar a criação de valor do sector agrícola, mineiro e industrial também ao sector dos serviços a primeira transformação da criação de valor foi assim dada por concluída. O que aqui se presume sempre, inquestionavelmente, a priori e de modo completamente inconsciente, é que, muito positivistamente, a criação de valor é simplesmente o resultado de actividades económicas, sejam quais forem. A distinção de Marx de que há no capitalismo trabalho produtivo, isto é, que gera mais-valia, e improdutivo, que apenas preserva, protege e distribui mais-valia, e que, portanto, os capitais individuais também ou criam nova mais-valia ou apenas distribuem, protegem e preservam a já produzida, fica completamente de fora. Nesta abordagem pouco ou nada diferem uns dos outros, desde há muito tempo, sindicalistas, empresários, cientistas, jornalistas e cidadãos comuns, e até mesmo muitas esquerdas que se vêem como marxistas. Ergo quase todos concordam que, se por agora os sectores primário e secundário estão em regressão, tudo isso não pode ser um problema significativo, para além de algumas fricções transitórias, uma vez que a salvação, melhor dizendo: o assegurar da continuidade da sociedade e dos postos de trabalho disponíveis está sempre garantido há agora o sector dos serviços em crescimento. É ainda muito melhor do que antes, porque o sector terciário é também identificado como florescente motor do crescimento. E isso, naturalmente, não consiste em que agora se produz aí sempre mais valor, mas apenas em que aí são criados empregos (que anteriormente eram eliminados dos sectores primário e secundário, ou contratados fora). E, como tantas vezes, a realidade das relações capitalistas é esquecida: "A falsa esperança de que o 'emprego' capitalista seria reagrupado, do sector industrial para o sector terciário, assentava na mesma falácia da esperança do crescimento ilimitado do tempo livre no capitalismo, através do aumento da produtividade: em ambos os casos, são tidos em conta os potenciais técnico-materiais, sem considerar as relações económicas do capitalismo (pressupostas como naturais)" (Kurz, 2009: 745). Todavia a primeira transformação estava concluída.

 

 

A segunda transformação

 

O que acaba de ser dito desenvolveu-se principalmente a partir do início dos anos de 1950, até por volta do final dos anos de 1970, portanto durante quase trinta anos. Na década de 1980, começou depois um outro desenvolvimento, que agora emanava não principalmente do sector industrial, mas do sector dos serviços. Foi bastante provocado pelo sector secundário (por muitos ainda visto como o basilar), mas os principais actores eram sem excepção do terciário, especialmente do domínio universitário. Este desenvolvimento a partir do sector os serviços foi designado com diversos nomes: revolução do conhecimento, economia do conhecimento, e até mesmo "capitalismo do conhecimento" (André Gorz). Agora não são apenas os serviços (tais como cabeleireiros, ou serviço de entregas) os principais responsáveis pela criação de valor, mas mais particularmente os "trabalhadores do conhecimento". Enquanto na economia burguesa essa sociedade do conhecimento continua a produzir um produto interno bruto (PIB) vulgar, só que agora suportado ​​por cada vez mais pessoas que trabalham no domínio do conhecimento (universidades, escolas, empresas de consultoria, empresas de TI, departamentos de engenharia e design, ateliers de engenharia, etc.), a questão do valor das mercadorias desta área tornou-se um problema na esquerda: "o conhecimento não é uma mercadoria comum, o seu valor é indeterminável" (Gorz 2004: 79). Assim, depois de a teoria burguesa da economia política / da economia empresarial ter ultrapassado o valor enquanto categoria social, já desde a teoria da utilidade marginal (4), assim o individualizando, e de a maioria dos marxistas das fileiras do movimento operário não saber o que fazer com a teoria do valor dos velhos mestres ao longo do tempo, André Gorz deu agora a este valor um último chuto, com a ajuda do capital do conhecimento e estava feita a segunda transformação da criação de valor sem que os/as seguidores/as do marxismo tivessem entendido nada disso.

 

 

A terceira transformação

 

Esse entusiasmo com o conhecimento durou ainda menos tempo do que o mais geral da euforia dos serviços, uns escassos vinte anos, do início dos anos 1980 até ao fim da década de 1990. Pois então, durante a década de 1990, a "www", a World Wide Web, impor-se-ia em primeiro plano. Agora já não é suficiente ser um/a vulgar trabalhador/a do conhecimentos prestador/a de serviços, agora já deve ter algo a ver com a Internet, pelo menos, web designer ou talvez empresário dotcom. E já se podiam ouvir novamente visionários e visionárias destacados no espetáculo mediático, que viam o capitalismo em rede subir e florescer. Agora toda a economia tinha de se ligar em rede através da web, e aí desenvolver, fabricar e distribuir os seus produtos, e toda a coisa deveria ser considerada livre da crise. Os anos de 2000/2001 trouxeram para muitas pessoas confiantes a experiência cruel de uma esperança a dissolver-se em nada: a bolha das dotcom estourou. Apesar disso, no entanto, impôs-se a opinião de que a Internet estaria em posição de promover a criação de postos de trabalho, há muito equiparada à criação de valor, só que, infelizmente, até mesmo a Internet não poderia assegurar uma verdadeira libertação da crise. De todas estas experiências retirar por uma vez a conclusão de que algo poderá estar podre no reino da Dinamarca, aqui, no capitalismo, foi coisa que ninguém fez. A terceira transformação da criação de valor estava de facto em cima de nós.

 

 

A quarta transformação

 

Ora, desde que David Ricardo e depois conceptualmente de modo muito mais rigoroso Karl Marx, relacionaram o conceito de valor ou da criação de valor com a força de trabalho, já passámos por muita coisa. Primeiro foi a prestação de serviços em geral incluída no círculo de criadoras e criadores de valor, mesmo hipostasiada, depois foi o sector do conhecimento e finalmente então a Internet. Como, no entanto, também esta não quis servir perfeitamente de garantia como criadora de valor ideal ou garante de crescimento para todo o futuro, felizmente tinha entretanto amadurecido um novo candidato ao papel de mágico do crescimento e da criação de valor: o sector financeiro. Se este até ao final do século XX tinha funcionado como prestador de serviços para o financiamento da economia real, portanto, também do sector terciário, incluindo a área do conhecimento e da Internet, de repente alguns observadores atentos do desenvolvimento económico e social descobriram que na verdade o sector financeiro em sentido amplo, ou seja, bancos, fundos, seguros, fisco, bancos-sombra, etc., apresentava uma expansão absolutamente gigantesca desde por volta de 1970, e de novo fortemente acelerada desde cerca de 2000. Essa deve ter sido a razão por que quase todos os burgueses, conservadores, liberais, verdes e outros, por fim mesmo os estudiosos marxistas, tiveram de reparar que o sector financeiro também teria de poder prestar uma contribuição para a criação de valor, ainda por cima em crescimento rápido. Como poderia ser de outra maneira, se os postos de trabalho neste sector financeiro aumentavam explosivamente, e o desempenho económico (medido em euros, francos, dólares, ienes ou yuans) subia de modo quase imparável. Nesse ponto, eu deveria talvez lembrar o supracitado dito sábio da Teoria da Economia Empresarial, segundo o qual a criação de valor em sentido corrente se define assim (de modo pelo menos um pouco adaptado à terminologia bancária): receitas provenientes de diferenças de taxas de juros, comissões e ganhos de cotação, menos custos de processamento das operações e de consultoria, menos depreciações, tudo em euros. Qual é o truque aqui? Exactamente: o valor é um pouco mais difícil de detectar do que na indústria e nos outros serviços, mas é posto simplesmente de um modo evidente, sem maiores questionamentos, e o problema é tratado apenas em termos de aritmética do balanço. Assim, conseguimos a quarta transformação do valor.

 

 

A quinta transformação

 

Primeiro foi o trabalho (somente trabalho para os/as marxistas; trabalho, mais capital, mais terra para os burgueses), ou seja, a produção extractiva e industrial, em seguida, os serviços, depois o conhecimento, depois a Internet, depois o sector financeiro como criador de valor, o que já é complicado e complexo o suficiente; o que é que ainda pode vir? É bastante fácil: juntamos os passos de um a quatro na eucaristia das transformações, agitamos o conjunto, misturamos com a eletrónica mais moderna e já está: a criação de valor digital (5), ou, mais difundido, cadeia(s) digital (digitais) de criação de valor! Esta quinta e por enquanto (?) última transformação traz possivelmente a salvação final, como na Igreja Católica Romana. Se o capitalismo, através desta salvação, será finalmente optimizado e salvo, conscientemente guardado por todos, ou, pelo contrário, vai terminar caótica e barbaramente, é o que se há-de ver num prazo não muito longo.

 

 

A amarga realidade em contraste

 

Por "criação de valor" no sentido burguês da economia empresarial, ou mesmo da economia nacional, entende-se geralmente o resultado, realizável no mercado, da aplicação dos factores de produção: trabalho, capital e terra. Por outro lado, o conceito de criação de valor em Marx é um pouco menos comum, falando-se aí mais frequentemente de "valor" como resultado do trabalho humano abstracto gasto, e apenas de vez em quando de criação de valor. Esta evidência da análise e crítica social marxista parece ter-se perdido cada vez mais nos últimos tempos. Justamente também a tendência observável desde 1970, de procurar o capital acumulado, a sua valorização, melhor dizendo, revalorização no céu financeiro, em vez de no sector da "economia real" assente na terra, contribui para pôr em questão as concepções tradicionais do processo de valorização do capital, para as confundir, e para as substituir quer pela álgebra de guarda-livros da contabilidade das empresas, quer pela matemática mais elevada das contas nacionais, sempre de acordo com a velha afirmação de que também o simples dinheiro poderia ser a causa da criação de valor. As análises e estudos de Karl Marx neste contexto são, na melhor das hipóteses, cada vez mais concentradas por todos os lados no que Robert Kurz designou abreviadamente por "Marx exotérico": "O Marx exotérico é o que se relaciona positivamente com o desenvolvimento imanente do capitalismo" (Kurz 2006: 28). E pior ainda: antigos/as marxistas assumem despudoradamente, por vezes inchados como um pavão, a linguagem teórica da economia empresarial e da economia nacional, sem repararem que assim desertaram muito silenciosamente, mas com muito sucesso, da crítica social para a econometria da ausência de conceitos, e mesmo para uma espécie de administração da crise democrático-burguesa, assim esquecendo cada vez mais a crítica social radical, em tempos possivelmente sugerida. Por exemplo, é muito difícil atribuir as seguintes frases correctamente (uma é de Hans-Werner Sinn, a outra do Grupo Memorandum é preciso adivinhar): a) "A crise financeira forçou a enormes perdas por depreciação no sistema bancário, que põem a sua existência em questão." b) "Um grande risco nos mercados financeiros vem agora do sector bancário paralelo (hedge funds, fundos private equity, fundos do mercado monetário e fundos de pensões, etc.)." (6)

 

Ora, a produção de valor, ou, mais precisamente, a valorização do valor por amor de si mesmo, de facto para muitos é tudo menos clara e, portanto, para muitos não é compreensível à primeira (e, infelizmente, quase nunca). Isto é devido ao tabu da abstracção, muito generalizado e em expansão cada vez maior, que diz que o que não é recipiente de nada em concreto não é real nem pode ser real, tabu esse associado com uma mania da preocupação, por trás da qual se esconde tudo o que não se consegue ou não se quer ver, para além do imediatamente perceptível. Consequentemente apenas muito poucos conseguem fazer algo com o "valor" realmente abstracto. Mesmo a construção de centenas de milhares de unidades de cimento, por exemplo, apartamentos, casas, etc., em Espanha ou na R. P. da China, representará em todo o caso algum tipo de "valor" para quem tem vistas curtas afinal, milhares e milhares de trabalhadores/as esforçaram-se durante meses e anos para construir esses edifícios, usando na construção cimento, aço, madeira, plásticos, etc., e promovendo no fim tudo isso no mercado; algo assim tem mesmo de ser criação de valor! Que essas cidades e aldeias fantasmas foram construídas por alavancagem, a crédito, e após a conclusão não encontraram compradores é, para a maioria dos observadores, apenas azar, no grande jogo da quota de mercado, do risco de mercado e dos lucros. Mas o próprio facto de esses imóveis poderem ser construídos, mas não vendidos, teria de deixar perplexos todos os que sabem, pelo menos, que o valor (mais-valia) produzido tem de mostrar o que vale no mercado, ou seja, a mercadoria também tem de ser vendida; caso contrário, se nenhuma venda é efectuada, a produção de valor efectiva ou fictícia é declarada socialmente inválida retroactivamente! Mas, neste caso das fantasias de cimento chinesas e espanholas, há um nível ainda pior. Uma vez que quase todos os fundos que foram utilizados para financiar os respectivos projectos de construção são provenientes de cadeias de crédito, mais ou menos longas, não se pode sequer supor que estes fundos representam valor em si, mas representam apenas uma promessa (ou esperança) na produção de mais-valia, após períodos de tempo mais ou menos longos. Portanto, nem há valor produzido nestas montanhas de cimento, nem ele foi realizado; por outras palavras, a vala comum bem concreta de imóveis por vender nada mais é do que uma fantasia irreal de proprietários de dinheiro, ou de capital, desesperadamente em busca de oportunidades de investimento. A criação de valor não ocorreu em nenhum momento. Isso é o que acontece quando não se quer tomar nota do que Claus Peter Ortlieb esclarece: "O valor é a forma dominante, não material de riqueza no capitalismo, não interessando nada a forma material da riqueza na forma da mercadoria" (Ortlieb 2009: 27).

 

Vimos, portanto, como todos os tipos de génios pequenos, médios e também maiores, eles e elas, não só têm visto as transformações da criação de valor com admiração, mas também têm prestado de várias maneiras o seu contributo activo, para que este espectáculo tragicómico das transformações da criação de valor pudesse ser realmente posto em cena. Se a criação de valor já hoje é mais ou menos vista como resultado de uma operação algébrica, na economia empresarial de qualquer tipo e na administração fiscal, ou mesmo nas instituições de especialistas em economia, e não como resultado da actividade humana, ou seja, de dispêndio de trabalho em geral, então pode imaginar-se o que ainda estará para ser feito, a fim de minimizar os efeitos devastadores do processo de crise social de proporções gigantescas que actualmente vivemos (em câmara lenta!), ou mesmo fazê-los desaparecer completamente da elaboração teórica e até da capacidade de pensar da maioria da população.

 

 

Bibliografia

 

Arbeitsgruppe Alternative Wirtschaftspolitik [Grupo de trabalho alternativa de política económica]; Memorandum 2016. Europäische Union und Flüchtlingsmigration Solidarität statt Chaos [Memorando 2016. União Europeia e migração de refigiados Solidariedade em vez de caos]; Köln 2016.

Bernoulli, Daniel; Die Werke von Daniel Bernoulli [Obras de Daniel Bernoull]; Basel 1986.

 

Clark, Colin Grant; The National Income [O Rendimento Nacional], London 1932.

 

Fisher, Allan George Barnard; Fortschritt und soziale Sicherheit [Progresso e segurança social]; Tübingen 1947.

 

Fourastié, Jean; Le Grand Espoir du XXe siècle. Progrès technique, progrès économique, progrès social [A grande esperança do século XX. Progresso técnico, progresso económico, progresso social]; Paris 1949.

 

Goossen, Hermann Heinrich; Entwickelung der Gesetze des menschlichen Verkehrs und der daraus fließenden Regeln für menschliches Handeln [Desenvolvimento das leis de circulação de pessoas e das regras delas decorrentes para a acção humana]; Frankfurt am Main, Düsseldorf 1987.

 

Gorz, André; Wissen, Wert und Kapital. Zur Kritik der Wissensökonomie [Conhecimento, valor e capital. Para a crítica da economia do conhecimento]; Zürich 2004 [2003].

 

Kurz, Robert; Marx lesen! Die wichtigsten Texte von Karl Marx für das 21. Jahrhundert [Ler Marx! Os textos mais importantes de Karl Marx para o século XXI]; Frankfurt am Main 2006 [2000].

 

Kurz, Robert; Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft [Livro negro do capitalismo. Uma despedida da economia de mercado]; Frankfurt am Main 2009 [1999].

MEW 42; Berlin 2005.

 

Ortlieb, Claus Peter; Markt-Märchen. Zur Kritik der neoklassischen Volkswirtschaftslehre und ihres Gebrauchs mathematischer Modelle [Fábulas do mercado. Para uma crítica da economia neoclássica e do seu uso de modelos matemáticos]; in: EXIT! 1/2004; Bad Honnef 2004.

 

Ortlieb, Claus Peter; Ein Widerspruch von Stoff und Form. Zur Bedeutung der Produktion des relativen Mehrwerts für die finale Krisendynamik [Uma contradição entre matéria e forma. Sobre a importância da produção de mais-valia relativa para a dinâmica de crise final]; in: EXIT! 6/2009; Bad Honnef 2009.

 

Ricardo, David; Über die Grundsätze der Politischen Ökonomie und der Besteuerung [Sobre os princípios de economia política e de tributação]; Marburg 2006.

 

Sinn, Hans-Werner; Kasino Kapitalismus. Wie es zur Finanzkrise kam, und was jetzt zu tun ist [Capitalismo de casino. Como chegou a crise financeira e o que fazer agora]; Berlin 2010 [2009].

 

Smith, Adam; Der Wohlstand der Nationen. Eine Untersuchung seiner Natur und seiner Ursachen [A riqueza das nações. Uma investigação sobre a natureza e as causas]; München 2009 [1974; 1978].

 

 

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(1) Depois de William Petty (1667), Benjamin Franklin (1750) e alguns outros.

 

(2) Jean-Baptiste Say e outros fizeram isso já antes; mas a partir de meados do século XIX, ou seja, depois de Karl Marx ter formulado a teoria do valor, todos os economistas burgueses ficaram muito confusos e afastaram-se desses tópicos complicados.

 

(3) Por vezes esta hipótese é chamada "Lei Petty", remetendo para uma observação correspondente do filósofo inglês e fundador da economia política inglesa, William Petty (1623-1687).

 

(4) Outros representantes importantes do marginalismo: Léon Walras (1834-1910), Carl Menger (1840-1921), Vilfredo Pareto (1848-1923).

 

(5) Pessoalmente, descobri esta expressão pela primeira vez em Christian Rätsch (cf. Christianraetsch.de/video/digitale-wertschoepfung/); mas entretanto é utilizada agora por muitos/as autores/as.

 

(6) Quem adivinhou? a) citado de: Sinn, Hans-Werner; Kasino Kapitalismus. Wie es zur Finanzkrise kam, und was jetzt zu tun ist [Capitalismo de casino. Como chegou a crise financeira e o que fazer agora]; Berlin 2010 [2009]; p. 230. b) citado de: Arbeitsgruppe Alternative Wirtschaftspolitik [Grupo de trabalho alternativa de política económica]; Memorandum 2016. Europäische Union und Flüchtlingsmigration – Solidarität statt Chaos [Memorando 2016. União Europeia e migração de refigiados Solidariedade em vez de caos]; Köln 2016; p. 19

 

 

Original Die wundersamen Wandlungen der Wertschöpfung. Eine Kurzgeschichte em www.exitonline.org em 03.10.2016. Tradução de Boaventura Antunes

 

 

http://www.exit-online.org/