Robert Kurz

A Substância do Capital

O trabalho abstracto como metafísica real social

e o limite interno absoluto da valorização.

 

Primeira parte: A qualidade histórico-social negativa da abstracção "trabalho".

O Absoluto [Absolutheit] e a relatividade na História. Para a crítica da redução fenomenológica da teoria social *** O conceito filosófico de substância e a metafísica real capitalista *** O conceito negativo de substância do trabalho abstracto na crítica da economia política de Marx *** O conceito positivo do trabalho abstracto na ontologia do trabalho marxista *** Para a crítica do conceito de trabalho em Moishe Postone *** O trabalho abstracto e o valor como apriori social *** O que é abstracto e real no trabalho abstracto? *** O tempo histórico concreto do capitalismo

 

O Absoluto [Absolutheit] e a relatividade na História. Para a crítica da redução fenomenológica da teoria social

Vendo bem, quase sempre se pode constatar que existe algo como correspondências e correlações entre mudanças históricas completamente diferentes, em áreas do saber ou domínios da vida aparentemente bem afastados entre si. No sistema produtor de mercadorias da modernidade, e já na sua constituição primitiva, áreas como a filosofia, a medicina, a economia, a ciência da natureza, a política, a linguagem, etc., embora não se desenvolvessem ao mesmo ritmo, desenvolveram-se ainda assim numa direcção comum, remetendo sempre objectivamente umas para as outras. O motivo para esta por vezes surpreendente concordância ou correlação terá de ser evidentemente procurado no desenvolvimento da respectiva formação social, que constitui o laço comum intrínseco aos vários domínios existenciais, áreas do saber e conhecimentos. Com isto também já se diz que não pode haver um saber absoluto no modus existencial da temporalidade: todo o saber, mesmo o que parece puramente objectivo, "rígido", intemporal, é histórico-socialmente condicionado e assim é de certa maneira (nada aleatória) relativo.

Aparentemente este conhecimento da relatividade constitui um progresso do saber nos séculos XIX e XX que, vindo da historiografia (desde o historicismo) e passando pela economia política (doutrina do valor subjectiva ou relacionalista), a ciência da natureza (física quântica), a linguística (Saussure) e a filosofia (o "pensamento pós-metafísico", a "viragem linguística"), vai desembocar no generalizado anti-essencialismo e relativismo pós-modernos.

Mas tudo isso não passa de aparência. Precisamente porque o saber e o conhecimento são sempre determinados por um contexto histórico-social, condicionados como estão por formas sociais fetichistas que implicam dominação e relações de coacção (outras até à data não são conhecidas), também ficam sempre sob a égide do pensamento apologético. Onde o saber é por si saber da dominação, as coisas nem podem ser de outro modo. No sistema produtor de mercadorias da modernidade esta apologética assume a forma da ideologia. Por isso, não basta simplesmente encarar o saber e o conhecimento apenas na sua relatividade (como faz em grande medida o pensamento pós-moderno); antes, e para além disso, esse condicionamento tem de ser sujeito a uma análise crítica da ideologia, sendo esta análise posta em relação com o respectivo processo histórico-social real. Em todo o caso é o que se impõe quando a reflexão pretende inserir-se no contexto de uma necessidade emancipatória e crítica da dominação.

Mas, se for tido em consideração este plano da reflexão crítica da ideologia, o conhecimento da relatividade tem de ser examinado quanto ao seu potencial ideológico e apologético. O pensamento pós-moderno tenta pôr-se fora do alcance deste ponto de vista, colocando logo o modus da crítica da ideologia per se sob a suspeição de "metafísica" e "essencialismo". Faz-se de conta que o ponto de vista ou a bitola da crítica da ideologia são desde sempre absolutos, totalitários, ontológicos ou metafísicos. Assim, no entanto, a observação vira-se numa direcção ela mesma metafísica, sendo que paradoxalmente é a relatividade nem mais nem menos que é elevada ao estatuto de Absoluto. O que assim fica de fora é o conceito de crítica em sentido estrito, uma vez que o plano de referência da relatividade não é clarificado.

Na realidade, porém, a dita relatividade só pode referir-se ao facto de que o saber e o conhecimento estão ligados a um determinado lugar histórico, não apenas no sentido de uma respectividade imediata, mas no sentido de uma formação social abrangente e determinada; ou afirmativamente, de modo positivo (positivista), ou criticamente, de modo negativo. A crítica, portanto, está presa negativamente ao seu lugar histórico, pois faz da formação social pertencente a esse lugar e da relação de dominação correspondente o objecto da sua negação (o que de resto remete para a possibilidade da transcendência, como movimento para fora da imanência). O que significa, no entanto, que a crítica apenas pode ser uma crítica determinada, a saber, uma crítica em referência a esse lugar histórico, encarado como formação social histórica, contendo nesta medida um momento de negação absoluta, mesmo que apenas relativamente a esse campo específico: nomeadamente a sua radicalidade contra a constituição da forma social dominante, sem que por isso deixe de ser bem relativa em referência a um contexto mais vasto, sendo capaz de reflectir isso mesmo.

A negação tem de ser absoluta relativamente ao seu conteúdo, que não é outra coisa senão a forma social, ela própria negativa e por isso a ser negada: a forma da reprodução e do sujeito destrutiva e fetichista, da qual nada pode restar a não ser a experiência traumática a ela associada, que permanece armazenada na memória da humanidade. Relativamente a esta forma do fetiche objecto da crítica a negação tem de ser absoluta, pois caso contrário não seria negação.

O problema do pensamento pós-moderno e das correntes de pensamento que remontam ao século XIX, a partir das quais o mesmo se compõe e edifica, consiste precisamente no facto de não ter sido desenvolvido qualquer critério para distinguir os planos de referência da relatividade, no âmbito da história da humanidade como história de "culturas" ou formações sociais, por um lado e, por outro lado, como determinação ou situação absoluta num espaço histórico limitado, ele próprio negativo, de uma determinada formação. Por outras palavras: não é estabelecida uma diferença essencial entre constituições da forma social historicamente diversas, e assim sendo também não é constituída qualquer concepção específica do moderno sistema produtor de mercadorias e das suas categorias da forma de base. Neste sentido estrito, as teorias pós-modernas, tal como as suas predecessoras, no fundo não reflectem precisamente o próprio condicionamento histórico-social, nem a correspondente relatividade. O trabalho (abstracto), o valor, a mercadoria, o dinheiro, o mercado, a concorrência, o estado, a nação, a política, etc. bem podem passar por "constructos culturais", tal como todas as outras manifestações sociais "quaisquer", mas nem por isso se revelam menos ontológicos que na ideologia burguesa vulgar, tal como ela foi herdada também pelo marxismo do movimento operário.

Assim, o relativismo a este respeito irreflectido também relativiza a diferença entre a relatividade de um determinado lugar histórico, por um lado, e a determinação ou o Absoluto no interior desse lugar, por outro; não se interessa pela diferença entre o espaço histórico total da humanidade, no qual as variadas constituições historico-sociais e as respectivas formas do saber e do conhecimento se posicionam reciprocamente de um modo relativo, e o espaço interno de uma determinada formação, no qual predomina um Absoluto interno, ou pelo menos uma pretensão real correspondente, nomeadamente a da constituição da respectiva forma fetichista, que é para ser rompida.

Esta imprecisão tem consequências para o conceito de crítica, que com isso se torna ele próprio impreciso e indeterminado. As categorias de base da constituição social desaparecem atrás do movimento interno desta. A crítica é fenomenologicamente reduzida, refere-se já apenas a uma determinada acção ou omissão no seio das categorias esmaecidas. É verdade que estas, no pensamento pós-moderno, na maior parte dos casos já não são imediatamente afirmadas como positivas; mas tal deve-se apenas ao facto de nem sequer chegarem a ser elevadas a objectos da reflexão. Onde tudo é tratado indistintamente como sendo um "constructo" deixa de haver graus de rigidez e dimensões de profundidade diversos; é nivelada a diferença entre explicações aparentes de cariz ideológico e a aparência real da forma do fetiche. A essência ou substancialidade categorial da formação histórica da sociedade permanece por reflectir, portanto também por criticar.

Assim surge uma inversão paradoxal da relação entre o processo social real e a ideologia; melhor dizendo, essa relação em certa medida é escamoteada pura e simplesmente, e é precisamente deste modo que o relativismo se converte a si mesmo numa miserável ideologia. A substância real negativa da relação de fetiche é subtraída à crítica radical, na medida em que a "substancialidade" se apresenta em princípio como apenas proveniente de uma pretensão totalitária do pensamento ou da imaginação. Deste modo a questão fica de pernas para o ar: a crítica radical é acusada daquilo que deveria ser imputado à relação social real. Em vez da relação real subjacente é a crítica da ideologia que aparece como "totalitária".

Este é portanto o modo como o conhecimento da relatividade se converte em ideologia apologética. No que diz respeito ao moderno sistema produtor de mercadorias, o seu conceito de capital dissolve-se assim num sistema sem conceito de "relações de poder" relacionais; nesta medida, não obstante toda a crítica do sujeito pós-moderna, reproduz-se o regresso à ilusão burguesa da vontade, se bem que reduzida às mudanças internas de "constructos" sociais todos representados no mesmo plano. Esta relacionalidade já ideológica é em seguida "exo-diferenciada" e declinada nas diversas áreas da reprodução e da vida. Deste modo a crítica continua pendente na particularidade dos fenómenos (das relações de poder na medicina à prática de deportação nos serviços de estrangeiros, dos "constructos" do racismo à retórica política dos constrangimentos objectivos), sem jamais poder debruçar-se sobre o todo da conexão da forma social, uma vez que esta já não dispõe de qualquer conceito substancial.

Esta dissolução da "essência" histórico-social na relacionalidade fenomenológica de relações de poder e na respectiva construção ou desconstrução encobre assim, queira-se ou não, a substancialidade negativa então já não denominável das categorias reais capitalistas. Com isso, porém, perde-se precisamente o potencial crítico do conhecimento da relatividade. É que esta apenas poderia manifestar-se socialmente num movimento de transformação emancipatório se a real pretensão de validade absoluta da forma fetichista dominante fosse rompida precisamente no seu conteúdo substancial.

Que, por exemplo, diversas áreas da existência e de actividade têm cada uma por si a sua própria lógica, a sua própria pretensão, o seu próprio sentido, etc., que não podem ser abarcadas pela pretensão de validade absoluta de um único princípio totalitário, apenas chegando a constituir um todo na relatividade do respectivo contexto relacional, todo esse que não pode ser reduzido a uma forma única e à substância igualmente única da mesma – é este o conhecimento que importa começar a afirmar, contra o violento substancialismo real do moderno sistema produtor de mercadorias em geral.

É por tudo isto que nem sequer é possível chegar a uma crítica radical sem o conceito de uma substancialidade negativa da relação de valor ou de capital. Por outro lado, a pretensão de Absoluto desta substancialidade negativa também entra em conflito com a própria constituição física do mundo, manifestando-se sob a forma de um processo destrutivo aniquilador da vida; sobretudo, porém, esta pretensão entra igualmente em conflito com a contraditoriedade interna da substancialidade capitalista enquanto tal, e assim se manifesta sob a forma de processo de crise endémico desta formação histórico-social. É por isso que sem o conceito de substancialidade negativa também não é possível desenvolver uma adequada teoria da crise. O escamoteamento ou a ignorância da real substancialidade social negativa equivale em grande medida ao escamoteamento ou ignorância da crise, no seu conteúdo significante de limite interno absoluto do moderno sistema produtor de mercadorias.

O carácter ideológico e apologético de um pensamento relativista que não enfrenta esta problemática consiste essencialmente em este presumir a existência de relatividade e "abertura" em termos historico-sociais onde na realidade pontificam um Absoluto e uma coesão sistémica dissimulados, postulando por isso uma emancipação (sempre entendida apenas parcialmente) de modo totalmente independente duma crítica da substância real negativa e das categorias da sua forma; por exemplo por intermédio do conceito já apenas risível de "democratização". A substancialidade negativa da relação de capital é esmaecida, escamoteada, tornada invisível e dissolvida numa pseudo-relatividade ideológica. É precisamente por isso que à redução e encurtamento fenomenológicos da crítica corresponde uma igual redução e encurtamento da teoria da crise. Este relativismo ideológico em vez de emancipatório mais não é que uma camuflagem adicional da subjectividade burguesa de todas as classes, que não quer admitir a sua obsolescência histórica.

Não é por acaso que o marxismo tradicional partilha amplamente a rejeição da teoria da crise radical com o relativismo pós-moderno. É que, como foi demonstrado por Moishe Postone, também é inerente à teoria do marxismo do movimento operário em todas as suas variantes um certo modo de redução e encurtamento ideológicos e relativistas. O que nas teorias pós-modernas é um programa explícito manifesta-se no marxismo como uma redução implícita; não há forma de distinguir entre um conceito abrangente histórico e assente na lógica da formação da relação de valor e de capital e os estados de agregação e desenvolvimento correspondentes à sua história interna, de modo que o nível de abstracção dos conceitos essenciais (que apenas no plano meta-histórico são relativos aos conceitos essenciais de outras formações) é fundamentalmente perdido: "Tornou-se historicamente manifesta a total insuficiência das teorias do capitalismo moderno que confundem uma configuração histórica específica do capitalismo (o livre mercado ou o estado disciplinar burocrático) com a essência da formação social... Todas estas críticas são... incompletas. Como vemos agora, o capitalismo não se encaixa em nenhuma destas configurações... Uma teoria crítica adequada do nosso tempo tem de ser fundamentada sobre uma concepção não reificada das relações que perfazem a essência do capitalismo e das diferenças entre essa essência e as várias configurações históricas sucessivas do capitalismo." (Moishe Postone; Zeit, Arbeit und gesellschaftliche Herrrschaft. Eine neue Interpretation der kritischen Theorie von Marx [Tempo, trabalho e dominação social. Uma nova interpretação da teoria crítica de Marx], Freiburg 2003, prefácio da edição alemã, p. 12 ss.) Nesta medida, o conceito de substancialidade do capital assente na lógica da formação representa o plano decisivo, ao qual nem as teorias do marxismo tradicional, nem as teorias pós-modernas conseguem aceder, devido ao seu respectivo relativismo falso, ideológico.

O conceito filosófico de substância e a metafísica real capitalista

Para podermos determinar o carácter ideológico do pensamento burguês supostamente pós-metafísico e em especial do seu desfecho pseudo-relativista, é necessário colocar o conceito filosófico de substância em relação com a constituição capitalista da modernidade. Com efeito, na história da filosofia não existe um significado geralmente reconhecido do conceito de substância. Na filosofia antiga e medieval a substância é o âmago essencial, por oposição a meras qualidades (acidentes), ou o que perdura e se mantém, ou seja, a identidade por oposição a meros "estados" ou desenvolvimentos. Em Aristóteles o conceito de substância aparece significando tanto a matéria, no sentido de um substrato das "coisas", como também a forma, no sentido de o essencial dessas coisas materiais.

No entanto, os diversos significados ou planos de significado da maior parte dos conceitos filosóficos pré-modernos de substância têm em comum o facto de não postularem necessariamente uma generalidade ou Absoluto substancial abstracto, pelo menos no mundo físico e social conhecido. Explicita ou implicitamente prevalece a suposição de que existem substâncias qualitativamente diversas que podem estabelecer relações umas com as outras. Assim sendo, a própria substância seria de certo modo algo de relativo. Tanto pela forma como pelo conteúdo, para as filosofias ou teologias antigas as estrelas, as pedras, as árvores, os cães, os humanos, etc. representam substâncias distintas. E o idêntico de uma determinada substância, por exemplo de um indivíduo humano, também pode ser representado como a totalidade das suas relações naturais, sociais, culturais, pessoais, etc. na unicidade individual da sua estrutura. Como instância absoluta, geral, "suprema", figura apenas "Deus"; mas esta substância permanece transcendente ao mundo.

No entanto, um momento do absoluto ou do geral e abstracto com referência ao mundo terreno já se insinua nas teorias atomistas, e concretamente através do modus da redução. Para Demócrito, por exemplo, não "existe" nada senão o vazio e os corpos compostos de átomos, os mais pequenos componentes em grande medida qualitativamente iguais, distinguindo-se apenas pela forma e dimensão. Tal antecipa a concepção de uma unidade absoluta e substancial do mundo como princípio imanente. Não é por acaso que este reducionismo físico é sistematicamente retomado na ciência da natureza moderna, celebrando aí o seu verdadeiro triunfo. O "universo-relógio" mecânico de Newton consiste, como ele próprio escreve na sua "Óptica", em "partículas maciças, firmes, rígidas, impenetráveis e móveis" (citado segundo: Shimon Malin, Dr. Bertlmanns Socken. Wie die Quantenphysik unser Weltbild verändert [As Peúgas do Dr. Bertlmann. Como a física quântica transforma a nossa imagem do mundo], Leipzig 2003, p. 40) que, por intermédio de "forças", actuam exteriormente umas sobre as outras. Nesse Universo homogéneo Deus já é apenas uma espécie de relojoeiro; no entanto, uma vez dada a corda, o mundo-sistema mecânico move-se por si, e o Iluminismo, por fim, acaba por passar sem qualquer substância criadora transcendente "suprema e primeira".

A unificação física reducionista do mundo em componentes ou unidades mortas e iguais inseridas num contínuo de espaço-tempo absoluto e unificado, apenas esboçada na antiguidade, é, por assim dizer, radicalizada e generalizada na modernidade, como um dogma. Neste caso o conceito atomista de substância estende-se, para além da natureza física, a todas as áreas da existência, por exemplo no conceito de "mónadas sem janela" de Leibniz. A tal corresponde uma concepção da sociedade humana que já não parte da comunidade, seja qual for a sua definição, mas pelo contrário parte da separação dos seus membros, que apenas podem mediar-se uns com os outros a posteriori e de modo exterior-mecânico. Aqui já se torna claro que o conhecimento da natureza aparentemente puro da modernidade, ou seja, o "constructo" do universo-relógio de Newton, reflecte na realidade uma determinada relação social, que inclui um paradigma de indivíduos atomísticos ou abstractos – sendo que esse paradigma contém na sua abstracção aparentemente homogénea da "individualidade em geral" uma particularidade historicamente bem relativa, nomeadamente a do sujeito masculino branco ocidental (MBO). Dito isto, porém, já não estamos perante uma mera ideia de actores do conhecimento de "o" mundo, sem pressupostos, mas sim perante uma determinada constituição histórico-social, a saber, a incipiente constituição capitalista do moderno sistema produtor de mercadorias.

Não se trata porventura de suplantar [Überwinden] a metafísica, como se supõe cada vez mais com o avanço dessa formação social. Tanto a ciência da natureza moderna como também a filosofia e a teoria social apologéticas a ela ligadas têm bases evidentemente metafísicas. Estas apenas puderam ser pouco a pouco escamoteadas e acabar por ser aparentemente deitadas borda fora porque não representam uma metafísica no sentido de uma reflexão meramente filosófica ou teológica, mas sim uma relação social real, ou seja, uma metafísica real, de certa forma encarnada ou embutida no processo de reprodução social. À medida que esta metafísica real se foi impondo historicamente e foi sendo interiorizada, a sua forma de reflexão filosófica pôde desvanecer-se, uma vez que o aparentemente evidente, axiomático e quotidiano já não tem de ser pensado à parte e já não se apresenta como uma essência distinta.

De certo modo, talvez seja lícito dizer-se que todas as constituições sociais de fetiche, portanto também já as pré-modernas, representam uma espécie de metafísica real, na medida em que a respectiva metafísica não se esgota nunca em meras ideias ou representações mentais, mas através dela ao mesmo tempo também são regulados a reprodução social real, as relações sociais e o "processo de metabolismo com a natureza" (Marx). No entanto, a metafísica real social pré-moderna das relações sociais, das condições de reprodução e das estruturas de poder é de certo modo "determinada pelo além", mediada através da projecção de uma substância absoluta simplesmente transcendente, de uma essência divina absoluta e exterior ao mundo, que é representada personalizadamente de forma mitológica ou religiosa. Como representantes desta essência transcendente projectada também as estruturas sociais reais de reprodução e de dominação se apresentam de forma personalizada; nomeadamente como um sistema de relações pessoais de dependência e obrigação.

O conceito de "dependência pessoal", no entanto, na esmagadora maioria dos casos é profundamente mal entendido (até em Marx, que não se debruçou a fundo sobre as condições pré-modernas) quando por "pessoas", neste sentido das constituições de fetiche sociais pré-modernas, se entende "pessoas naturais", ou mesmo sujeitos-do-interesse segundo o uso moderno da língua. Assim parece que a estrutura "dependência pessoal" configuraria uma forma de dominação directa e não mediada, por oposição à moderna, indirecta e mediada. Na verdade, as condições pré-modernas são igualmente mediadas; apenas de outro modo, sendo que neste caso as próprias pessoas se tornam planos de projecção e assim representações da transcendência fetichista. Tais pessoas transcendentais e relações de dependência pessoais estão neste sentido estritamente separadas das pessoas naturais e das suas relações pessoais; de resto, isto vai ao ponto de criar contradições bizarras entre a personalidade transcendental e a personalidade natural, as quais nada ficam a dever aos absurdos da moderna socialização do valor, como é o caso no conceito de "os dois corpos do rei" (Ernst H. Kanturowicz, Die zwei Körper des Königs [Os dois Corpos do Rei], Munique 1990, primeira edição 1957).

Assim sendo, as pessoas aqui, no contexto da sua constituição fetichista, não se apresentam a si próprias como portadoras autónomas de vontade e acção, mas como representações no seio do mundo da essência da substância transcendente projectada. Como a substância absoluta permanece transcendente, não assumindo uma forma terrena imediata (a não ser em representações simbólicas), ela também não pode abarcar totalitariamente o mundo real. Não há nenhuma generalidade abstracta social, mas sim uma sequência de múltiplos graus de representações pessoais e de situações relacionais a todos os níveis.

Outro é o caso da metafísica real capitalista da modernidade. Aqui a transcendência está de certo modo superada [aufgehoben]; a substância fetichista projectada ou a essência como Absoluto tornou-se imediatamente terrena e social, sob a forma da "valorização do valor" (e, apenas neste sentido de uma imanência ao mundo, "directa" e já não "determinada pelo além", isto é, já não derivada de um princípio exterior ao mundo). Embora o momento da transcendência continue a existir, na medida em que a figura essencial do fetichismo, o "valor", não constitui nenhuma essência directamente física ou social, mas sim uma abstracção não palpável, que paradoxalmente por assim dizer encarnou no "processo de metabolismo com a natureza" e nas relações sociais. Nesta medida, a relação social assim constituída representa uma abstracção real, e não uma projecção de ideias meramente ideológica ou (em sentido pré-moderno) religiosa, mitológica, etc., nem tão-pouco uma mera abstracção nominal.

De certo modo, a projecção tornou-se imediatamente real, e com isso também palpavelmente terrena, mesmo que continue mediata, na medida em que apenas se manifesta em relações sociais e em coisas reais (mercadorias e dinheiro), enquanto a essência do "valor" como abstracção não pode ser imediata, nem portanto tão-pouco palpável. O paradoxo da abstracção real consiste em que a abstracção, em si não física/material/corpórea, a coisa do pensamento, ou por outra, um produto da cabeça socialmente objectivado como projecção fetichista, se apresenta ainda assim como uma relação social real e uma objectividade física real, nomeadamente em objectos que em si não são abstractos, mas que são tornados objectos realmente abstractos pelo mecanismo de projecção social.

A "coisa do pensamento" e "produto da cabeça" não devem aqui ser mal entendidos como algo de "pensamento projectado", por exemplo no sentido de um "contrato social" (primordial) na ideologia do Iluminismo, como problema da vontade, ou como ideologia; um mecanismo de projecção fetichista é pelo contrário algo sempre já pressuposto à "projecção", que ainda tem de ser decifrado (cf. a este propósito, nesta edição da EXIT!, a análise crítica feita por Christian Höner ao conceito de ideologia de Nadja Radkowitz, que confunde esses dois planos distintos).

De certo modo quase se poderia falar de uma regressão, pois o mecanismo de projecção moderno regride a uma espécie de animismo secundário, onde já não são as pessoas transcendentalmente representativas, mas as coisas inanimadas a apresentar-se como animadas, como Marx expôs ironicamente no seu capítulo dedicado ao fetiche, no exemplo da mesa que como mercadoria é acometida por caprichos metafísicos. No entanto, neste caso já não se trata de uma animação individual das coisas, mas de uma animação reproduzida de modo idêntico na sempre igual forma do valor e do preço, em que se manifesta a sociabilidade negativa da alma da mercadoria, e a relação social como coisificada. Este animismo secundário não anima tanto as coisas (a natureza) como por assim dizer coisifica a alma (a situação relacional humana); é nesta medida a falsa imediatez da projecção metafísica real sem mais rodeios.

Na medida em que a transcendência da projecção é superada, como essa projecção agora se apresenta imediatamente nas próprias coisas e relações terrenas, ela também já não pode ser personalizada, mas tem de se apresentar sob uma forma coisificada, "objectivada", regulando deste modo sob todos os aspectos o processo de reprodução social, a mediação social. Melhor dizendo: ela "é" essa mediação, que por isso já não necessita de uma instância transcendente exterior ao mundo, nem de mediadores pessoais como representantes dessa instância absoluta; afinal ela própria já está estabelecida como absoluta. O valor, a projecção do fetiche que se apresenta como realmente objectivo no dinheiro, constitui-se como Absoluto terreno, social, através do movimento de reacoplamento do dinheiro a si mesmo como capital, como processo de valorização ou "sujeito automático" (Marx), ao qual é submetida toda a reprodução social e todo o entendimento do mundo. Qualquer coexistência colorida de situações relacionais naturais, culturais e sociais (relações) acaba e é substituída pela pretensão de Absoluto do princípio essencial abstracto único "valor" e pela sua substancialidade negativa.

Ideológica ou "filosoficamente", como forma de reflexão no seguimento ou no sentido de uma apologética de escolta e flanqueadora, o pensamento deste mecanismo de projecção da abstracção real recorre a determinados conteúdos significantes do conceito de substância religioso e filosófico pré-moderno, que no entanto se apresentam numa configuração completamente nova, correspondente à metafísica real capitalista. No lugar da divindade transcendente e absoluta é posto o princípio essencial imanente e absoluto do "valor" ou do processo de valorização. Como se trata da projecção de um processo de abstracção socialmente objectivado, este princípio essencial, no entanto, embora se apresente imediatamente nas coisas e nas relações, sendo portanto imanente, não pode ainda assim ter uma existência material e social por si. Enquanto tal continua a ser não palpável, "intangível" ou "não empírico", não obstante a sua indubitável imanência. Nesta medida, a reflexão positiva, apologética da metafísica real capitalista pode recorrer ao filão "idealista" da metafísica religiosa e filosófica primordial, particularmente de origem platónica. A idealidade transcendente das formas essenciais de Platão e seus seguidores apresenta-se agora como a idealidade imanente do princípio essencial na modernidade, particularmente no idealismo alemão.

No entanto há aqui novamente uma diferença importante no conceito dessa idealidade. Em Platão e nos seus seguidores trata-se da idealidade transcendente das formas essenciais no plural; das formas ideais das diversas coisas, que na matéria terrena se apresentam apenas como "sombras". Sob este aspecto, o idealismo formal de Platão permanece tão pluralista e, assim sendo, relativista como o conceito tradicional de substância, do qual é parte integrante. "Acima" da idealidade do mundo plural das formas, no entanto, eleva-se ainda a esfera do "pura e simplesmente bom", grau mais elevado e origem de todo o Ser, um todo-uno, que no entanto está tão afastado na sua transcendência, que já não se apresenta como tal na imanência.

A idealidade da forma imanente da modernidade, pelo contrário, já não conhece qualquer pluralismo de formas, nem por conseguinte qualquer relatividade correspondente; a forma do valor ou o "sujeito automático" não tolera nenhum outro deus junto de si. O Absoluto transcendente do todo-uno ideal desceu à terra como o Absoluto imanente do princípio essencial "valor". Tal como em Platão, as coisas terrenas empíricas não possuem uma existência independente, sendo antes a mera "expressão" da idealidade da forma; mas desde logo, em primeiro lugar, uma idealidade da forma já não transcendente, mas sim imanente, que se manifesta na socialização do valor e, em segundo lugar, uma idealidade da forma já não plural, mas monística, absoluta, totalitária. Seja como a "forma pura e simples" kantiana ou como o "espírito do mundo" hegeliano, como "vontade absoluta", etc., trata-se sempre de um princípio da imanência da forma total em última instância determinante, do qual todas as coisas e relações apenas devem ser "formas de aparência [Erscheinungsformen]". O mundo não se compõe da relacionalidade de diversas entidades, mas sim, monisticamente, do todo-uno terreno da valorização do valor.

Pode-se reconhecer à primeira vista que o universo-relógio físico de Newton, com os seus componentes atomísticos unitários e o seu contínuo unitário e absoluto de espaço e tempo, corresponde com bastante precisão a esse idealismo da forma absoluto e totalitário. A aparente contradição entre o "idealismo" da forma e o "materialismo" do mundo físico desaparece, mal ambos os constructos sejam decifrados quanto ao seu fundo histórico-social. Provavelmente o mesmo já se aplica às antigas formas incipientes da contradição entre o idealismo da forma platónico e o materialismo da substancia atomístico, na medida em que a filosofia ocidental da antiguidade já representa uma reflexão ainda inacabada, no contexto da relação não amadurecida entre a forma da mercadoria e a forma do pensamento.

Na modernidade completou-se a complementaridade entre estes dois constructos, que do ponto de vista histórico-social correspondem à constituição da formação social "baseada no valor" (Marx) do capitalismo. O idealismo formal da filosofia moderna (que nas teorias positivistas apenas manifesta o seu vulgar estado de decadência) pode ser decifrado como o princípio essencial do valor, da forma social de fetiche paradoxalmente secularizada; o materialismo substancial da física mecanicista, como o mundo natural moldado e de certo modo "executado" por esse ditado da forma. É um mundo feito de elementos e "forças" mecânicas iguais, que na sua condição física e biológica se pretende ver degradado em mera "forma de aparência" da abstracção real social. O ambiente cultural e o mundo da vida hodiernos da sociedade capitalista cada vez mais unificada à escala planetária aproximam-se fantasmaticamente do constructo newtoniano de um Universo mecânico uniforme; para a biosfera planetária, tal como para a cultura humana no sentido mais lato, porém, tal significa a aniquilação sucessiva.

O conceito filosófico clássico de substância apenas na metafísica real capitalista da modernidade se diferencia claramente em forma (forma ideal imanente–transcendente ou "transcendental", forma do valor) e conteúdo (mundo moldado de modo mecanicista, fisicamente reduzido). No entanto, nesta relação entre a forma e o conteúdo da substância real metafísica ainda falta o agente social de toda a organização da metafísica real, o momento mediador do movimento. A relação entre a forma do valor e a substância natural mecanicisticamente reduzida não pode ser estática, mas apenas um processo dinâmico, em que a natureza em si não reduzida, apenas é realmente reduzida à abstracção do valor pela mediação social, por uma força social no "processo de metabolismo com a natureza" especificamente capitalista.

Esta força é ela própria uma substância material, não porém natural, mas social. A substância natural da abstracção real moderna, como abstracção da forma do princípio essencial "valor", é a matéria abstracta física e mecanicisticamente reduzida; a substância social deste princípio da forma da metafísica real é – o "trabalho abstracto" (Marx). O "trabalho", como forma de actividade e ao mesmo tempo como substância do capital, constitui a força social-material e o processo, através do qual somente pode afirmar-se no mundo terreno o princípio da forma da metafísica real, com a sua pretensão de Absoluto negativa e destrutiva. O movimento mediador do trabalho abstracto é a automediação da substância e, assim sendo, um fim-em-si e uma auto-agregação na forma do valor (manifestando-se na forma do dinheiro) e como permanente "alienação [Entäusserung]" na matéria natural e nas relações sociais, enquanto sua moldagem até à respectiva destruição, a fim de as transformar na simples imagem da abstracção real que se processa consigo mesma.

Já aqui se torna claro que o marxismo tradicional permaneceu completamente refém da metafísica real da modernidade. O seu "materialismo", com a eterna celebração da respectiva corrente na história da filosofia ocidental, mais não representa que a reflexão afirmativa de um lado da relação de valor ou de capital, nomeadamente o materialismo substancial da redução física, em que o mundo natural já se apresenta moldado pela abstracção real capitalista. É o materialismo de aniquilação de uma forma de reprodução fetichista que vai dilacerando e triturando a biosfera terrestre. Consequentemente, no pensamento marxista, ao materialismo substancial físico positivo de uma natureza destrutivamente moldada corresponde o materialismo substancial social positivo do "trabalho" que é o agente dessa moldagem. Este "materialismo" da ontologia do trabalho marxista e da concomitante fé mecanicista na ciência da natureza está muito longe de suplantar o idealismo formal da tradição filosófica aparentemente contrária; à semelhança do que acontece no pensamento burguês e como seu prolongamento modificado, comporta-se de um modo meramente complementar relativamente a ele.

Nesta medida, Hegel não foi recolocado com os pés no chão e de cabeça para cima, mas os pés continuam sempre sob o comando da cabeça, do princípio essencial capitalista da forma ideal. Decifradas socialmente, as relações de fetiche como "metafísicas reais" são sempre ao mesmo tempo "idealismos reais", levados ao auge pelo idealismo real capitalista pela primeira vez imanente do "sujeito automático" na forma da valorização do valor, do reacoplamento cibernético da abstracção real valor a si mesma. Ironicamente, assim sendo, o materialismo real do trabalho e da ciência da natureza capitalista não é outra coisa senão a forma de aparência prática do idealismo real da forma do valor, e não o contrário. A abstracção real do valor representa uma agregação ou uma forma de existência da prática de abstracção real do trabalho e vice-versa; precisamente por isso o trabalho abstracto constitui o modo como o princípio essencial social não material deita a mão ao mundo material como um fantasma.

Deste modo, o "idealismo objectivo" de Hegel sob determinado aspecto até anda mais próximo da coisa do que o "materialismo objectivo" do pensamento marxista; mas Hegel pensa o idealismo real capitalista apologeticamente, como movimento de automediação positiva da essência da abstracção real, assim lhe escapando por princípio a sua qualidade negativa, destrutiva e aniquiladora da vida. O materialismo marxista, pelo contrário, compra a passagem à crítica (em grande medida reduzida, não indo além da imanência) de modo que, por seu lado, lhe escapa o carácter da abstracção real social. Como abstracção, o valor/trabalho abstracto mantém-se de certo modo um coisa do pensamento, e daí uma idealidade (negativa). Não se trata, porém, de uma idealidade subjectiva, apenas reflexiva, de uma idealidade constituída por meras abstracções nominais (linguísticas e mentais), mas de uma idealidade objectivada por processos históricos, "materializada" por uma prática compulsiva.

A fim de se chegar a uma crítica plena da substancialidade negativa da relação de fetiche capitalista, não é o idealismo objectivo de Hegel que tem de ser posto de cabeça para cima e pés no chão, mas sim a cabeça da abstracção real que tem de ser guilhotinada. Apenas essa seria a prática libertadora e transcendente, que deixaria de moldar compulsivamente o mundo social e natural, mas destruiria sim o próprio princípio essencial dessa prática destrutiva.

O conceito negativo de substância do trabalho abstracto na crítica da economia política de Marx

É um facto antigo e há muito constatado que o marxismo do movimento operário continuadamente abafou ou relativizou, reduziu e diluiu o conceito de crítica na crítica da economia política de Marx até chegar a uma "economia política" inteiramente positiva, no terreno acriticamente pressuposto da forma de fetiche moderna. É por isso que nas sebentas do mundo perdido do "socialismo real" sempre se falou com a maior seriedade de uma "economia política do capitalismo" e de uma "economia política do socialismo", em vez de se compreender e desenvolver o socialismo como a crítica prática da economia política enquanto tal. Por conseguinte, no entendimento do marxismo também o conceito de Marx de substância do trabalho abstracto acabou inevitavelmente por se apresentar como inteiramente positivo, como mera definição de um facto ontológico objectivo, "determinado por leis naturais" e não para transcender.

Este raciocínio no entanto não corresponde de modo nenhum à forma como Marx apresenta o conceito de trabalho abstracto, logo na página quatro do primeiro volume de "O Capital": "Ora, se abstrairmos do valor de uso das mercadorias, resta-lhes uma única qualidade, a de serem produtos do trabalho. Então, porém, já o próprio produto do trabalho está metamorfoseado sem darmos por isso. Com efeito, se abstrairmos do seu valor de uso, abstraímos também de todos os elementos materiais e formais que lhe conferem esse valor. Já não é, por exemplo, mesa, casa, fio, ou qualquer outro objecto útil. Todas as suas qualidades sensíveis lhe escaparam. Também já não é o produto do trabalho do marceneiro, do pedreiro, de qualquer trabalho produtivo determinado. Juntamente com o carácter útil dos produtos do trabalho, desaparece o carácter útil dos trabalhos neles representados e as diversas formas concretas que distinguem as diferentes espécies de trabalho. Apenas resta, portanto, o carácter comum desses trabalhos; todos eles são reduzidos ao mesmo trabalho humano, trabalho humano abstracto. Consideremos agora o resíduo dos produtos do trabalho. Deles nada restou senão a mesma objectividade fantasmática, uma mera massa de trabalho humano indistinto, isto é, do dispêndio de trabalho humano sem olhar à forma do seu dispêndio. Estes objectos já apenas manifestam que na sua produção foi despendida força de trabalho humano, que neles está acumulado trabalho humano. Enquanto cristais dessa substância social que lhes é comum, são considerados valores – valores de mercadoria." (Karl Marx, Das Kapital, vol. I, MEW 23, Berlim 1965, p. 52).

Não se pode deixar de observar que aqui o conceito de trabalho abstracto não configura uma árida definição positivista, mas sim o começo da crítica conceptual de uma realidade francamente negativa. O "abstrair do valor de uso", de modo que "todas as (...) qualidades sensíveis lhe escaparam" a fim de se alcançar uma "objectividade fantasmática", "uma mera massa do dispêndio de trabalho humano" já significa uma tendência francamente destrutiva do mundo sensível e social. Pois trata-se aqui do lado prático, activo de uma abstracção real social, e não de uma abstracção meramente linguística, que exprima coisas existentes no pensamento, sem com isso imediatamente atingir na prática o mundo físico e social. A abstracção "trabalho" representa aqui antes de mais uma referência imediata da acção, nomeadamente como um apriori da reprodução social com consequências imprevisíveis.

Marx aproxima-se aqui de uma crítica que ele próprio ainda não leva até ao fim. Ele desenvolve (contrariamente à maioria dos marxistas) uma crítica radical da abstracção real contida no conceito de trabalho moderno; mas em simultâneo mantém-se refém da ontologia do trabalho protestante e iluminista, tal como a tinha inscrita nos seus estandartes o movimento operário, surgido no mesmo contexto histórico da sua teoria. Marx viu-se assim constrangido a tentar separar o princípio supostamente ontológico do "trabalho", a abstracção assim expressa, da abstracção real especificamente capitalista; projecto esse que acabou em grande medida por perder-se nos seus seguidores, os quais se contentaram em encaixar o conceito de trabalho por inteiro na ontologização transhistórica – com poucas excepções, que assim se destacam como especialmente reflexivas, embora nunca tivessem chegado além da reprodução da aporia de Marx, com o conceito de trabalho como abstracção real capitalista e ao mesmo tempo como princípio ontológico.

Marx formula a sua aporia abertamente nos "Grundrisse", logo na introdução, onde se trata da definição do conceito: "O trabalho parece ser uma categoria perfeitamente simples. Também a concepção do mesmo desta forma geral – como trabalho em geral – é antiquíssima. Ainda assim, concebido nesta simplicidade em termos económicos, o ‘trabalho’ é uma categoria tão moderna como as condições que produzem esta simples abstracção... Foi um progresso enorme quando Adam Smith deitou fora cada uma das definições da actividade produtora de riqueza – trabalho puro e simples, nem de manufactura, nem comercial, nem agrícola, mas tanto um como outro. Com a generalidade abstracta da actividade criadora de riqueza vem de par a generalidade do objecto, do produto determinado como riqueza em geral ou, uma vez mais, do trabalho em geral, mas como trabalho passado, objectivado... A indiferença face a um determinado tipo de trabalho pressupõe uma totalidade de tipos de trabalho reais muito desenvolvida, dos quais já nenhum se sobrepõe aos outros. Deste modo, as abstracções mais gerais apenas surgem nas condições mais ricas de desenvolvimento concreto, onde uma coisa se apresenta como comum a muitas, comum a todas. Nessa altura deixa de poder ser pensada apenas sob uma forma específica. Por outro lado, esta abstracção do trabalho em geral não é apenas o resultado intelectual de uma totalidade concreta de trabalhos. A indiferença face a um trabalho determinado corresponde a uma forma de sociedade onde os indivíduos passam com facilidade de um trabalho para outro, e onde o trabalho determinado é para eles casual, sendo por isso indiferente. O trabalho aqui tornou-se, não só enquanto categoria mas na realidade, um puro e simples meio para a criação de riqueza, tendo deixado de estar estreitamente associado com os indivíduos como determinação da particularidade. Tal estado de coisas encontra-se mais desenvolvido na forma de existência mais moderna das sociedades burguesas – os Estados Unidos. Pois é apenas aqui que a abstracção da categoria ‘trabalho’, ‘trabalho puro e simples’, trabalho sans phrase, o ponto de partida da economia moderna, se torna uma realidade prática. Assim sendo, a abstracção mais simples, a que coloca a economia moderna na vanguarda, e que exprime uma relação válida para uma forma de sociedade antiquíssima e para todas as formas de sociedade, apenas se apresenta praticamente como verdadeira nesta abstracção como categoria da sociedade mais moderna... Este exemplo do trabalho demonstra de modo contundente como mesmo as categorias mais abstractas, apesar da sua validade – devida precisamente à sua abstracção – se aplicar a todas as épocas, ainda assim, na forma determinada que essa abstracção assume, são elas próprias igualmente o produto de condições históricas, possuindo a sua validade plena tão-só para e no interior dessas condições" (Karl Marx, Grundrisse der Kritik der politischen Ökonomie [Esboços da Crítica da Economia Política], manuscrito não revisto, 1857 – 1858, Berlim 1974, p. 24 s.).

Esta reflexão sobre o conceito de trabalho como categoria social é aporética sob vários aspectos. Assim, tanto a abstracção como o seu conteúdo social aparece, por um lado, como positiva, como "progresso", como uma geral "actividade criadora de riqueza", como desenvolvimento de uma diversidade; e, por outro lado, como negativa, como "indiferença" relativamente ao conteúdo. Do mesmo modo, o "trabalho" aparece, por um lado, como uma abstracção "racional", como mera designação genérica de um "rico desenvolvimento concreto" de actividades; por outro lado, Marx não tarda a corrigir-se, chamando a atenção para que essa abstracção não é "apenas o resultado mental de uma actividade concreta", mas a correspondência a uma "forma de sociedade" em que essa abstracção se torna real e assim definidora da acção. Sobretudo, porém, Marx por um lado mantém-se fiel à concepção de que a abstracção "trabalho" é uma ideia "antiquíssima" e "válida para todas as épocas"; por outro lado, porém, esclarece em simultâneo que se trata de "uma categoria tão moderna" como "as condições que produzem essa simples abstracção", de modo que essa categoria acaba por ser o "produto de determinadas condições históricas", nomeadamente das modernas, possuindo "validade plena apenas para e no interior dessas condições".

Esta argumentação aporética apenas pode ser resolvida se a categoria "trabalho" for definida como abstracção real e assim como histórica, moderna, capitalista e, por isso mesmo, a ontologia do trabalho for de todo abandonada. Se Marx designa esta abstracção (provavelmente no sentido de uma mera abstracção nominal) despreocupadamente como "antiquíssima", esta designação obviamente não se baseia em nenhuma investigação histórica. De facto, em muitas sociedades da história, entre outras também nas chamadas culturas superiores como o Egipto antigo, nem sequer existia uma categoria de actividade geral e abstracta. Mesmo nas sociedades onde parece existir um tal conceito genérico nominal (mesmo aí não há nenhuma abstracção real), trata-se de áreas de actividade muito limitadas, e nunca de uma generalidade social de "actividade em geral". Se aqui na interpretação moderna se fala sempre de "trabalho", tal é enganador, um anacronismo e no fundo um erro de tradução (o que de resto se aplica também a outras categorias especificamente modernas e associadas à relação de fetiche da valorização do valor, tais como a política, o estado, etc.).

Na medida em que a abstracção "trabalho" foi adoptada como conceito pela sociedade moderna a partir da área linguística indo-europeia, ela teve de ser sujeita a uma redefinição completa; é que nessas línguas o "trabalho" designa sempre a actividade específica dos escravos, dependentes, menores, etc; não se trata, portanto, de um conceito genérico mental para diversas áreas de actividade, mas sim de uma abstracção social (e nessa medida também de uma abstracção real, neste sentido especificamente pré-moderno), porém, precisamente por isso não de uma generalidade social, não de uma categoria de síntese social como na modernidade.

A aporia de Marx também se mantém igual a si mesma na análise de "O Capital", quando Marx apresenta as definições de "trabalho abstracto" e "trabalho concreto". Em rigor, a designação "trabalho abstracto" representa um pleonasmo lógico (como por exemplo "cavalo-branco branco"), uma vez que o atributo já está contido no próprio conceito; é que, de facto, o "trabalho" já é uma abstracção. Inversamente, o conceito "trabalho concreto" representa uma contradictio in adjecto (como por exemplo "cavalo-branco preto"), já que o atributo está em contradição com o conceito; como abstracção (mesmo conceptualmente, apenas nascendo no terreno de uma abstracção real social) o "trabalho" não pode ser per se "concreto" no sentido de uma determinada actividade.

Poder-se-ia dizer que estas definições de Marx reflectem o paradoxo real da relação do capital e da sua socialização do valor, já que nas mesmas o que é em si concreto, a diversidade do mundo, é de facto ("realmente") reduzido a uma abstracção, e assim a relação entre o geral e o particular é posta de pernas para o ar. O geral já não é uma manifestação do particular, mas pelo contrário o particular já apenas é uma manifestação da generalidade totalitária; o concreto, assim sendo, também já não representa a diversidade estruturada do particular, mas não "é" senão a "expressão" da generalidade realmente abstracta, da "substância" universal.

Sem dúvida Marx não tem plena consciência do que verdadeiramente aqui está a reflectir, visto que quer ater-se a um momento ontológico e transhistórico da abstracção "trabalho". Assim tenta fundamentar isto no conceito de valor de uso: "Como criador de valores de uso, como trabalho útil, o trabalho é... uma condição existencial do Homem, independente de todas as formas de sociedade, uma necessidade natural eterna para mediar o metabolismo entre o Homem e a natureza, ou seja, a vida humana" (Das Kapital, vol. I, MEW 23, ibidem, p. 57). O conceito de "utilidade para determinadas necessidades", no entanto, não é nenhuma categoria de síntese social, e por isso não pode ser simplesmente equiparado ao do "valor de uso", como Marx faz sempre. A categoria valor de uso apenas se refere a uma utilidade abstracta (mais uma definição realmente paradoxal) e nessa medida ela própria é parte integrante da abstracção real moderna; não é um conceito do ponto de vista das necessidades, mas sim um conceito de representação da mediação da forma do valor (o valor de uso de uma mercadoria como forma equivalente apenas exprime o valor de troca da outra mercadoria).

O valor de uso como designação apenas faz sentido na mediação com o valor de troca, como a polaridade da relação de valor, e por isso está longe de ser "uma condição existencial do Homem, independente de todas as formas de sociedade". Na medida em que o "trabalho" estabelece o "valor de uso", não se trata de uma definição ontológico-transhistórica para lá da abstracção do valor, mas nada mais que o modo específico como a abstracção real se apodera dos objectos, que em si nada têm de abstractos. O que Marx designa paradoxalmente como "trabalho concreto" não constitui por isso uma "necessidade natural eterna"; pelo contrário, não é outra coisa senão o modo material específico de o "trabalho abstracto" se apropriar da "matéria" natural ou social. Uma vez que isto esteja clarificado, talvez possamos continuar a usar os conceitos de Marx, consagrados como estão, no entanto com uma compreensão alterada.

Há que antecipar neste ponto uma argumentação que só mais tarde será desenvolvida com mais pormenor. Diz respeito ao carácter material da substância do trabalho abstracto, que como se sabe foi formulada por Marx como "dispêndio de nervo, músculo e cérebro", independentemente do modo concreto desse dispêndio, seja sob a forma de trabalho de marceneiro ou de tecelão, etc. Os representantes de uma determinada linha do debate neomarxista (hoje frequentemente de colorido pós-moderno) orgulham-se de falar aqui pejorativamente de um falso "substancialismo" ou de um "naturalismo" fisiológico no próprio Marx e nos marxistas tradicionais, sendo que justamente por via desta "naturalização" o trabalho abstracto é transformado numa realidade transhistórica e ontológica, já que os seres humanos sempre têm de despender "nervo, músculo e cérebro". Aliás, também Moishe Postone adere a esta opinião, infelizmente (ibidem, p. 224 ss.).

Ora é certo que o marxismo tradicional ontologiza o trabalho abstracto, como pretendemos demonstrar com mais pormenor no próximo capítulo. Apesar disso a crítica do "substancialismo" que acabamos de esboçar parte de pressupostos totalmente errados. Aliás, para ela trata-se menos da clarificação do conceito de substância e de trabalho que da rejeição de uma teoria de crise substancial, que argumenta com a diminuição histórica da substância do trabalho como substância do valor do capital (dessubstancialização). Neste sentido o trabalho abstracto é encarado como uma relação quantitativa, como conceito de substância em sentido quantitativo. É que, para que algo possa ser aumentado ou diminuído, esse algo tem de ser substancialmente real em sentido material e de conteúdos; uma mera forma como substância não pode representar uma relação quantitativa. Por isso a crítica do carácter de substância material do trabalho abstracto serve para rejeitar a teoria de crise substancial, e assim para escamotear a existência de um limite interno absoluto do processo de valorização; a crise é então reduzida à superfície do mercado, como "erro de regulação" do mecanismo de mercado que poderia ser regulado com meios políticos, ou então desaparece por completo do debate teórico fundamental.

Como esta argumentação contra o "substancialismo" se inscreve antes de mais no âmbito da teoria da quantidade e da crise do trabalho abstracto, ela apenas é tratada exaustivamente na segunda parte do presente estudo. Aqui há que deixar uma referência preliminar no sentido do conceito qualitativo negativo do trabalho abstracto que aqui tem um papel. Os anti-substancialistas neomarxistas aparentemente reflectidos até regridem para a retaguarda do marxismo tradicional, uma vez que lhes escapa algo de absolutamente essencial. É que Marx não fala do dispêndio fisiológico de nervo, músculo e cérebro num sentido imediatamente naturalista ou transhistórico. Pois o dispêndio fisiológico de energia humana, em termos puramente "naturais", não pode ser separado da forma concreta desse dispêndio. Porém, é precisamente isso o que acontece socialmente na abstracção do trabalho. E este abstrair da forma concreta do dispêndio não é racional nem transhistórico. Se, por exemplo, disséssemos a um egípcio antigo que estivesse a pescar que não estava simplesmente a apanhar peixe, mas que estava a despender "nervo, músculo e cérebro" em sentido abstracto, ele teria todos os motivos para duvidar da nossa saúde mental. Tal afirmação apenas faz "sentido" no contexto da abstracção real moderna.

Ainda assim, a substância abstracta do trabalho não deixa de comportar algum conteúdo material ou "físico" (pois um dispêndio de nervo, músculo e cérebro sem conteúdo simplesmente não é possível), mesmo que não se trate de uma substância natural imediata, mas de uma substância social enquanto abstracção. Trata-se de um dos lados da materialização da idealidade da forma fetichista (o outro seria a própria matéria natural moldada de modo reducionista), na medida em que sob o ditado desta idealidade da forma negativa, numa determinada referência social, se abstrai, não só conceptual, mas também praticamente, da forma concreta do dispêndio (que naturalmente não deixa de acontecer), estabelecendo como essencial apenas esse mesmo dispêndio enquanto tal, independentemente da sua determinação concreta.

Na abstracção como abstracção real permanece então como resíduo um conteúdo bem material, nomeadamente o dispêndio de "energia humana em geral". Para o "sujeito automático" do processo de valorização não é nada importante se são produzidas calças ou granadas de mão; só é essencial que no acto ocorram processos de combustão físicos humanos (dispêndio de energia) que possam ser representados como um quantum de valor; um procedimento em si absolutamente absurdo. No entanto, esses processos de combustão acontecem realmente; o que é absurdo é apenas o facto de serem tratados e "representados" independentemente da sua forma concreta, e por conseguinte do seu objectivo material e de conteúdo, o que acontece porque o objectivo social é precisamente essa "representação" fetichista. A redução ao processo de combustão físico é uma abstracção social, mas lá por isso não é uma mera coisa do pensamento (como por exemplo um conceito genérico nominal), mas refere-se a um momento bem real, e é também por isso uma abstracção real.

A "representação" é um processo essencial daquilo que Marx designou por fetichismo da forma da mercadoria. Não é só que o quantum de energia humana despendida não pode ser separado da forma concreta desse mesmo dispêndio; logo que os produtos se encontram produzidos, ele também pertence ao passado e já não é tangível, e por isso evidentemente não está "contido" nos produtos em sentido natural ou físico. A "representação" como processo físico nesta medida ocorre apenas nas cabeças dos sujeitos sociais assim constituídos, nomeadamente como percepção e "tratamento" práticos fetichizados da sua própria sociabilidade. Ainda assim, tal "representação" refere-se a algo que de facto não ocorre apenas nas cabeças dos sujeitos, como forma de percepção e de acção, mas que é uma realidade física, a saber, processos de combustão passados ocorridos em corpos humanos, dispêndio de unidades energéticas.

Como o quantum de energia gasta no processo do seu dispêndio não pode ser realmente separado da forma ou determinação concreta desse mesmo dispêndio, e como, tratando-se de um dispêndio definitivamente passado, não pode literalmente estar "contido" nos objectos, a forma social de representação é de facto neste aspecto irreal em duplo sentido. Mesmo assim, esse quantum de energia teve de ser despendido realmente no passado, pelo que, por outro lado, representa uma substância física real (se bem que "representada" de modo paradoxal). A forma da representação desta substância real, porém, nada tem em si de físico, sendo antes uma abstracção real, um modo de percepção e de acção socialmente constituído, em que as substâncias naturais e os bens produzidos são realmente tratados como se fossem objectos físicos de pura representação de processos de combustão passados em corpos humanos.

O trabalho abstracto é por isso um determinado estado de agregação da idealidade da forma moderna fetichista, que no entanto não deixa de fazer referência a um quantum energético de força de trabalho realmente despendida, ou seja, a um conteúdo material quantificável (não em relação à mercadoria individual, mas à média social das mercadorias). Este conteúdo, no entanto, como abstracção é "fantasmático", não só enquanto resultado da objectividade do valor, mas já no próprio processo do dispêndio, ou seja, em termos práticos, como definição de uma massa de dispêndio de nervo, músculo e cérebro separada da sua forma material. Proceder-se a determinadas transformações de materiais naturais com base na determinação essencial apriorística de que aqui são despendidos quanta de energia humana abstracta sem olhar à forma concreta do seu dispêndio - tal determinação é substancial num sentido material, que não é um sentido natural, mas sim social, e que não é transhistórico, mas sim historicamente específico na constituição do fetiche moderno.

O conceito positivo do trabalho abstracto na ontologia do trabalho marxista

Marx aproximou-se de uma crítica do conceito de trabalho como conceito de substância do capital, mas não pôde levar esta crítica até ao fim, porque ainda estava com um pé no terreno da ontologia do trabalho moderna. Uma vez que o marxismo (tradicional ou do movimento operário) se fixou totalmente no momento ontológico da apresentação de Marx, querendo criticar o capitalismo do ponto de vista transhistórico do "trabalho", necessariamente o conceito de trabalho abstracto teve de permanecer na sombra, com o que porém também a substância do capital ficou por conceptualizar. Podemos encontrar uma tematização deste conceito que vá para além de uma mera definição positivista apenas em pouquíssimos teóricos, como por exemplo nos anos vinte em Isaak Iljitsch Rubin, que nos seus "Studien zur marxschen Werttheorie [Estudos sobre a teoria do valor de Marx]", publicados em 1924, logo teve de constatar: "Face ao grande relevo dado por Marx à teoria do trabalho abstracto, há que perguntar por que motivo a literatura marxista tão pouco se interessou por ela" (Isaak Iljitsch Rubin, Studien zur marxschen Werttheorie [Estudos sobre a teoria do valor de Marx], Francoforte do Meno 1973, primeira publicação 1924, p. 91).

O próprio Rubin, porém, de modo nenhum vai além da aporia de Marx perante o conceito de trabalho. Ele positiva o trabalho abstracto duplamente, a saber, por um lado como um progresso histórico na génese de uma generalidade social: "Somente com base na produção de mercadorias, caracterizada por um notório desenvolvimento da troca, pela reorientação massiva de indivíduos de uma actividade para outra e pela indiferença dos indivíduos face à forma concreta do trabalho, é possível desenvolver o carácter homogéneo de todas as actividades de trabalho como formas de trabalho humano em geral... Não seria de modo nenhum exagerado dizer que talvez o próprio conceito de Homem em geral e de trabalho humano em geral se tenha destacado com base na produção de mercadorias. Era precisamente isso que Marx tinha em mente, ao realçar que o carácter humano geral do trabalho se exprime no trabalho abstracto" (Rubin, ibidem, p. 99 s.). Rubin destaca aqui o papel da abstracção real (que nele ainda não aparece como tal) em um "desenvolvimento" positivamente conotado, embora de passagem (tal como Marx) refira igualmente a "indiferença dos indivíduos face à forma concreta do trabalho"; no entanto, não o faz com a mesma orientação radicalmente crítica de Marx.

Por outro lado, ele estabelece sempre uma diferenciação, para de algum modo colmatar a aporia de Marx: o trabalho abstracto da produção de mercadorias, que em Rubin ainda aparece sem mais como capitalista, deverá desaparecer com o capitalismo, devendo ainda assim restar dele um momento, que no entanto é dotado de outro carácter: "Embora o trabalho abstracto seja uma característica específica da produção de mercadorias, um trabalho socialmente equiparado encontra-se, por exemplo, numa comunidade socialista... Todo o trabalho abstracto é trabalho social e socialmente equiparado, mas nem todo o trabalho socialmente equiparado deve ser considerado trabalho abstracto" (Rubin, ibidem, p. 101).

Rubin postula, portanto, uma continuidade transhistórica do trabalho como abstracção no horizonte iluminista do progresso, em que o trabalho abstracto capitalista será apenas um caso especial da abstracção do trabalho, no sentido de um trabalho geral e abstracto enquanto "socialmente equiparado". Na realidade, porém, tudo isto não passa de uma paráfrase do trabalho abstracto no sistema produtor de mercadorias, como aliás transparece com muita clareza da definição do "trabalho socialista": "Imaginemos uma comunidade socialista qualquer, entre cujos participantes existe uma divisão do trabalho. Um determinado órgão social equipara os trabalhos dos diversos indivíduos uns com os outros, visto que sem tal equiparação não se pode realizar um plano social mais ou menos abrangente. Em tal comunidade, porém, o processo de equiparação do trabalho é secundário, complementando o processo da socialização e da distribuição do trabalho. O trabalho é antes de mais trabalho socializado e distribuído. Neste quadro também podemos incluir – como uma característica derivada e adicional – a qualidade do trabalho como socialmente equiparado. A característica fundamental do trabalho consiste em ser social e distribuído; a sua qualidade de socialmente equiparado é acessória" (Rubin, ibidem, p. 51 s.).

Em sua opinião, a única característica que distingue o trabalho "equiparado" socialista do trabalho abstracto capitalista é o carácter supostamente apenas "secundário" e "acessório" da abstracção, o que no entanto é imediatamente desmentido pelo facto de, segundo Rubin, sem essa equiparação não ser possível qualquer "plano social". Um plano, no entanto, define-se por ser elaborado antecipadamente, senão não o seria, e assim, segundo a lógica do próprio Rubin, também o "processo de equiparação" não pode ser meramente secundário e acessório, constituindo antes o pressuposto de tudo. Para mais o que alegadamente antecede o processo de equiparação, supostamente apenas acessório, é uma vez mais o "trabalho", ou seja, a abstracção (real). O que aqui pelos vistos é tão difícil de pensar é o problema de uma suplantação da própria abstracção real destrutiva, ou seja, a intuição de que "equiparação" significa desde sempre a sujeição das várias áreas da reprodução e da vida, com lógicas próprias, lógicas temporais e perfis de exigência tão diversos, a uma lógica de subsunção unitária; no entanto, é precisamente nisso que consiste a lógica unitária e totalitária da substância do trabalho abstracto.

Nem sequer interessa que um plano, no sentido de uma distribuição dos recursos pelas diversas áreas, pudesse precisamente evitar basear-se nesta equiparação, devida apenas à abstracção do valor e não a qualquer exigência objectiva. Isso revela-se de modo especialmente crasso quando Rubin não se coíbe de falar, em relação ao socialismo, de uma "massa homogénea de trabalho social" (ibidem, p. 116). Se o facto de ser o mesmo indivíduo quem, digamos, instala um cabo eléctrico, planta uma árvore, escreve uma carta ou toma conta de crianças não significa, de modo nenhum, que o mesmo trate estas suas "alienações" tão diversas como "massa homogénea" de dispêndio substancial de energia inserido na mesma lógica temporal de um contínuo abstracto, muito menos toda uma sociedade tem de se comportar desse modo mal veja a forma da mercadoria pelas costas.

Que uma sociedade se organizou como o colectivo auto-consciente duma associação livre de indivíduos significa precisamente que ela já não está sujeita a um princípio fetichista de "equiparação", e de resto também nunca pode padecer de "escassez de tempo", que é uma característica específica do fim-em-si da valorização do valor. Não haver tempo disponível em quantidades infinitas não significa de modo nenhum que "escasseie" por princípio, e que para "optimizar a carga de trabalho" tenha de ocorrer um processo de equiparação entre massas "homogéneas" de dispêndio de energia humana. Esta concepção em si completamente doida só pôde surgir sob o ditado do trabalho abstracto no âmbito da socialização do valor.

O próprio Rubin deixa claro que se trata de outra coisa, que não da necessidade material e objectiva ou social da utilização de recursos, ao tentar descrever as modalidades da ominosa equiparação: "Supomos que os órgãos da comunidade socialista equiparam os diversos trabalhos dos diversos indivíduos uns com os outros. Assim, por exemplo, um dia de trabalho simples é estabelecido como uma unidade, um dia de trabalho qualificado, como três unidades; um dia de trabalho do operário qualificado A é equiparado a dois dias de trabalho do operário não qualificado B, etc. Com base nestes princípios gerais (!), as instituições sociais de contabilização (!) sabem que o operário A despendeu vinte, e o operário B, dez unidades de trabalho (!) no processo social de produção" (ibidem, p. 116).

O problema não consiste, portanto, na realidade em uma distribuição planificada dos recursos por áreas da reprodução e da vida qualitativamente diversas, mas na contabilização das prestações de trabalho aquando da distribuição dos bens, serviços, etc. É o problema de cálculo de uma "prestação de trabalho [Leistung]" abstracta, que mesmo após uma suposta suplantação do trabalho abstracto especificamente capitalista ainda deverá obrigar a semelhante "homogeneização". Com isso, no entanto, é perpetuado um momento precisamente do trabalho abstracto sob a lógica da valorização capitalista, tal como de resto ocorre de um modo semelhante também em Proudhon e em todas as utopias da contabilização do "trabalho".

Mesmo no próprio Marx ainda se encontra um elemento desta não-lógica, quando ele fala das famigeradas "duas fases" do socialismo/comunismo, onde desde logo o princípio da prestação abstracta de trabalho, e com ele um momento da lógica da valorização, deve manter-se em vigor: "De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo a sua prestação de trabalho"; apenas no longínquo comunismo, quando de resto Marx significativamente supõe que o "trabalho" se tenha tornado a "primeira necessidade vital", será então válido: "De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades". No entanto não há qualquer necessidade que o justifique. Se nem sequer o desenvolvimento das forças produtivas no século XIX, sob a determinação da forma capitalista, pareceu suficiente a Marx para poder atirar borda fora o princípio burguês da prestação de trabalho, tal se deve antes de mais à sua fidelidade a elementos da ideologia protestante do trabalho e da prestação de trabalho. E isto sem olhar ao facto de este conceito abstracto de prestação de trabalho ser especificamente moderno, ou seja, precisamente, não está ligado à situação pré-moderna de um desenvolvimento relativamente modesto das forças produtivas, mas paradoxalmente nasceu apenas junto com o cego desenvolvimento capitalista das forças produtivas como desenvolvimento de forças destrutivas.

A aporia no conceito de trabalho de Marx foi portanto resolvida pelo marxismo de uma forma unilateral na ontologia positiva do trabalho; e foi precisamente por isso que o conceito crítico de trabalho abstracto teve de permanecer mal esclarecido e ser banalizado numa definição positivista. Rubin, com o desdobramento deste conceito na definição de uma categoria puramente capitalista (que nele ainda é idêntica à produção social de mercadorias em geral), por um lado, e na definição de uma "equiparação social" geral e abstracta, válida para todas as sociedades, por outro, prenunciou uma linha de argumentação para os teóricos reflectidos que se prolonga até ao presente. O que no entanto muito menos resolveu a aporia, elevando-a apenas a um patamar de reflexão mais elevado – para o estalinismo, porém, isso já era reflexão a mais; em 1931 Rubin, como tantos intelectuais incómodos, foi condenado ao internamento num campo de detenção e desde essa altura é considerado desaparecido.

O destino de Rubin remete para o facto de que o "socialismo", no seguimento da revolução de Outubro russa, se viu compelido a reprimir qualquer reflexão teórica que se aproximasse da aporia de Marx, porque não precisava aqui de qualquer diferenciação. É que definições teóricas como a de Rubin, que ainda se debatiam com o problema de delimitar o conceito de trabalho abstracto, por Marx claramente ligado à relação de capital, de uma "equiparação dos trabalhos" já não pensada sob a égide da forma do valor numa sociedade pós-capitalista, tinham de parecer perigosas e subversivas, na medida em que nesse "socialismo" na prática se exibia abertamente o carácter da síntese social baseada no trabalho abstracto, no valor, na mercadoria e na forma do dinheiro.

Tal remete para o carácter de toda a época que, com a devida distância temporal, pode ser decifrada como uma história de "modernização recuperadora [nachholender Modernieserung]". Os movimentos históricos na periferia do capitalismo não puderam romper o invólucro das formas de fetiche modernas, mas pelo contrário ainda tinham apenas por fim a implementação social das categorias reais do moderno sistema produtor de mercadorias. Isto também se aplica, se bem que de outro modo, ao movimento operário ocidental, o qual se esforçou principalmente por reivindicar o seu "reconhecimento" como sujeito jurídico e de cidadania, precisamente naquelas formas sociais cujo pressuposto lógico era o trabalho abstracto, sobre o fundamento deste sistema que já tomara forma nos países industriais europeus. Este contexto histórico permite explicar porque se perdeu o conteúdo crítico do conceito de trabalho de Marx e porque tanto o movimento operário ocidental como o socialismo de estado do Leste, assim como os posteriores movimentos de libertação nacional do Sul, estavam ideologicamente presos por completo à ontologia do trabalho burguesa.

Na teoria marxista tradicional, e não só nesta, os factos ainda conotados por Marx de uma forma claramente negativa, embora representados de um modo aporético, foram assim totalmente esmaecidos, na medida em que o conceito de trabalho abstracto, ou não era de modo nenhum entendido como uma abstracção real negativa, mas sim como uma mera abstracção conceptual-definidora ou, quando era entendido como uma abstracção real (em todo o caso apenas na corrente mais reflectida do marxismo ocidental), não o era como tal a priori, mas apenas como abstracção real a posteriori, a saber, referida pura e simplesmente aos produtos do trabalho enquanto mercadorias no mercado; e com isso, ao modo como o trabalho real, aparentemente sempre concreto e "útil", só é percepcionado numa forma abstracta a posteriori, nas mercadorias acabadas como objectos do mercado; de certo modo como uma qualidade do produto socialmente constituída. De modo positivo na ideologia do socialismo de estado do Leste e de modo negativo na corrente do marxismo ocidental: em ambos os casos, no entanto, a definição do trabalho abstracto limitava-se por igual a uma abstracção que apenas seria efectuada no processo de troca no mercado. E por aí se ficou a literatura marxista.

Por outras palavras: o marxismo apenas realça a sua "fundamentação na produção" no sentido positivo de uma ontológica "honra do trabalho", enquanto a sua crítica do capitalismo na realidade apenas dispõe de uma "fundamentação na circulação", permanecendo por isso mesmo reduzida. É que, entender o processo da abstracção real como algo operado apenas a posteriori no produto do trabalho enquanto mercadoria no mercado não significa outra coisa senão circunscrever a crítica da abstracção real, e com ela do sistema produtor de mercadorias, se é que é exercida de algum modo, à esfera da circulação. O problema da negatividade capitalista é assim restringido apenas à esfera da circulação e ao modo de distribuição a ela ligado, sendo percebida apenas nessa perspectiva encurtada, como Moishe Postone foi o primeiro a constatar: "Segundo esta interpretação, é o modo de distribuição que está no centro da crítica de Marx. Tal afirmação parece paradoxal, já que o marxismo é geralmente considerado uma teoria da produção. Observemos pois com brevidade o papel desempenhado pela produção na interpretação tradicional. Se as forças produtivas (que segundo Marx entram em contradição com as relações de produção capitalistas) são identificadas com o modo de produção industrial, tal implica serem entendidas como um processo puramente técnico, isto é, independente do capitalismo. O capitalismo é tratado como um conjunto de factores externos que actuam sobre o processo de produção: por exemplo, a propriedade privada e outras condições, que fazem parte da economia de mercado, mas são exteriores à valorização do capital. Em conexão com isto, a dominação social no capitalismo é essencialmente entendida como dominação de classe, que permanece igualmente exterior ao processo de produção" (Moishe Postone; Zeit, Arbeit und gesellschaftliche Herrrschaft, ibidem, p. 30).

O ponto central deste encurtamento é precisamente a redução do trabalho abstracto à esfera da circulação, uma vez que só assim a distribuição mediada pela circulação pode tornar-se o objecto central da crítica, enquanto, como demonstra Postone, a produção apenas é central na medida em que constitui o ponto de vista (em vez de o objecto) da crítica (Postone, ibidem, p. 31). Daí resulta, como perspectiva igualmente encurtada de uma suposta suplantação [Überwindung] do capitalismo, ou o paradigma de uma "troca justa", ou o de uma "produção de mercadorias planificada" pelo estado (ou uma combinação de ambos), enquanto a produção como tal, na sua forma da mercadoria, é de modo implícito ou explícito ontologicamente positivada.

Enquanto o marxismo tradicional entende mal a sua crítica como referente à "produção", na realidade ele não se refere à produção no sentido de uma actividade da forma social e da abstracção real, mas unicamente à dominação mal entendida subjectiva e sociologicamente "sobre" a produção, enquanto determinação jurídica da propriedade; ou seja, no sentido de uma determinada terminologia de Marx, apenas à "superstrutura jurídica" da produção, que como tal permanece por reflectir no que diz respeito à sua forma de actividade e à sua substância social; assim sendo, também apenas às condições de circulação, sendo que só nestas os proprietários de mercadorias se enfrentam como mónadas jurídicas abstractamente livres e "guardiães das suas mercadorias" (Marx).

Se é que aqui se vislumbra um momento de crítica da forma do fetiche, este circunscreve-se, portanto, à esfera da circulação. A forma de fetiche do valor, que abrange todo o processo da reprodução social (incluindo tanto o "trabalho"/produção, como a forma jurídica, a forma do estado, a forma da política), é assim reduzida à forma da mercadoria no sentido da mera objectividade da circulação. Paradoxalmente é por isso que o "trabalho abstracto" nem sequer figura como momento determinante da produção (esta pelo contrário é concretistamente reduzida e precisamente assim ontologizada), nem como ligado à produção, mas, completamente ao contrário, como simples momento da circulação, como processo de abstracção ex post, circunscrito ao processo da troca no mercado. Assim, para este modo de entender, o "duplo carácter do trabalho representado nas mercadorias" diagnosticado por Marx (Das Kapital, vol. I, MEW 23, ibidem, p. 56) divide-se por duas esferas diferentes, em vez de determinar o carácter de toda a reprodução: na produção não se encontra senão o trabalho "concreto" ou "útil", enquanto o produto em forma de mercadoria apenas na circulação surge como representação do trabalho abstracto.

A este respeito é prototípica a teoria de Alfred Sohn-Rethel, a primeira que introduziu o conceito de abstracção real no debate marxista. No entanto para ele a abstracção socialmente objectivada apenas é real como uma "abstracção da troca" (Alfred Sohn-Rethel, Warenform und Denkform [Forma da mercadoria e forma do pensamento], Francoforte do Meno 1978, p. 120). Apenas no mercado é que o trabalho abstracto se apresenta como a substância comum das mercadorias que as torna compatíveis: "A abstracção que tem lugar na troca decorre da própria relação de troca. Ela não decorre da natureza material das mercadorias, nem da sua natureza de valores de uso, nem da sua natureza de produtos do trabalho" (Sohn-Rethel, ibidem, 114).

O mal-entendido do materialismo vulgar, que consiste em determinar a abstracção do valor e com ela a lógica do trabalho abstracto, como a qualidade material quasi-natural da produção, aqui é utilizado como pretexto para escamotear qualquer relação da abstracção do valor com o processo do trabalho "concreto", também no sentido de uma definição social em vez de natural, sujeitando-a ao mesmo veredicto, com o que a produção é retirada à socapa do âmbito da abstracção real. O trabalho, no entanto, não é ele próprio nada de natural, e é precisamente na sua qualidade de produtos do trabalho que as coisas já são mercadorias ou produtos da abstracção real, e não apenas por força do acto da troca no mercado. Assim sendo, embora a Rethel assista o mérito de, com o conceito de abstracção real, ter desenvolvido a consciência teórica da problemática, o que constituiu um marco, ele mantém-se inteiramente refém da ontologia do trabalho e assim com o conceito de abstracção real limitado à circulação, o que tanto mais o vincula à cisão do conceito de trabalho em uma abstracção má, puramente circulatória a posteriori, por um lado, e uma concreção "boa", produtiva e supostamente ontológica, por outro. Afirma, portanto, "duas formas de síntese social – uma produzida pela troca e outra pelo trabalho..." (Postone, ibidem, p. 275).

O mainstream do marxismo do movimento operário nem sequer chegou tão longe, e assim na sua redução ao menos manteve-se consequente, na medida em que o problema da abstracção real ficou esquecido de todo e a produção e a circulação foram afirmadas lado a lado como formas, enquanto a crítica apenas se referia à apropriação de classe (com a concepção sociologicamente reduzida da mais-valia) e à "anarquia" da circulação, no sentido do "poder de disposição" jurídico. Como suplantação do capitalismo apresentava-se, assim, por um lado a planificação puramente exterior do todo do processo de reprodução na forma da mercadoria, já preparada no seio do próprio capitalismo através da concentração do capital, do controlo pelo capital financeiro e da regulação estatal, e, por outro lado, a ocupação política dos postos de decisão dessa mesma planificação pela representação política de classe do proletariado. Tal como o conceito crítico de abstracção real, também o de fetichismo nem sequer tinha cabimento neste entendimento encurtado.

De um modo quase comovente pela sua candura, um conceito toscamente positivista e totalmente irreflectido do trabalho abstracto foi-se afirmando na literatura a metro da economia política académica do "socialismo real", ficando muito aquém da consciência da problemática de um Rubin; assim, por exemplo, e para escolher um exemplo ao acaso, num calhamaço como "Politische Ökonomie des Sozialismus und ihre Anwendung in der DDR [Economia Política do Socialismo e a sua aplicação na RDA]" (1969), redigido por um colectivo de autores orientado por Günter Mittag: "O trabalho produtor de mercadorias de produtores socialistas é, por um lado, o dispêndio de trabalho planificado na sua forma útil, concreta ou criadora de valor de uso. Por outro lado, ele ocorre, devido às condições de conjunto do modo de produção socialista, ao mesmo tempo de uma forma generalizada, abstraída das suas especificidades concretas, como trabalho abstracto, criador de valor, isto é, sob a forma do valor. O trabalho produtor de mercadorias tem portanto um duplo carácter, sendo ao mesmo tempo trabalho concreto e abstracto. O trabalho concreto despendido de uma forma planificada nas empresas para a produção de mercadorias tem sempre de se realizar como trabalho abstracto, criador de valor, para cumprir a função de trabalho social... O duplo carácter do trabalho produtor de mercadorias no socialismo distingue-se de uma forma fundamental do existente no capitalismo. Enquanto o trabalho criador de valor na produção de mercadorias capitalista medeia a relação de exploração, sendo um elo no sistema de apropriação capitalista, o trabalho criador de valor no socialismo exprime o processo planificado de apropriação social dos produtores socialistas libertados da exploração... A sociedade socialista estabelece, portanto, o trabalho despendido pelas unidades de produção em regime de divisão de trabalho como relação mútua de dispêndios de trabalho socialmente iguais. Reduz assim cada parte da totalidade do trabalho ao trabalho socialmente necessário ou ao valor. O trabalho concreto é reduzido a trabalho abstracto, socialmente determinado, ao ser realizado o produto do trabalho concreto, o valor de uso..." (colectivo de autores, Politische Ökonomie des Sozialismus und ihre Anwendung in der DDR [Economia Política do Socialismo e a sua aplicação na RDA], Berlim 1969, p. 273 ss.).

Aqui passa-se grandiosamente ao lado de toda a problemática tanto do conceito de trabalho abstracto como da crítica de Marx, uma vez que se trata de uma representação ideológica já vinculada à apologética de um processo histórico irreflectido. O processo da abstractificação, analisado por Marx de modo claramente negativo, apresenta-se como um meio apenas útil para "medir" de modo optimizado em sentido puramente tecnocrático o dispêndio social de recursos e, assim sendo, como uma simples "ajuda objectiva" na "realização do valor de uso". Este pensamento ideológico nem sequer se incomoda com o facto de primeiro ter de "realizar" socialmente a utilidade (apenas abstracta no próprio conceito de valor de uso) com recurso a um processo específico. No fundo, recorre-se a nada menos que o mecanismo da "mão invisível" de Adam Smith, invocado com esta argumentação, com a única diferença que paradoxalmente essa mão invisível, que como processo de abstracção dos processos de mercado deve coordenar a "alocação de recursos", é postulada como a mão visível da planificação do socialismo de estado (e precisamente por isso teve de conduzir ao seu fracasso).

A instrumentalização absolutamente acrítica, positivista e tecnocrática do conceito de Marx de trabalho abstracto que aqui se manifesta, uma legitimação transparente de uma prática pré-existente já objectivada e irreflectida no que diz respeito à sua constituição histórica, recebeu na literatura ocidental proveniente do marxismo tradicional, mais exigente em termos teóricos, uma fundamentação ontológica secundante. Georg Lukács conseguiu mesmo a proeza de formular uma "Ontologie des Gesellschaftlichen Seins [Ontologia do Ser social]" (1973) fundada no "trabalho", onde ao conceito de trabalho é atribuída a habitual qualidade transhistórica, no sentido de uma "definição teleológica" da acção referente à natureza e à sociedade.

Ora, é um facto que se pode afirmar (explícitamente desde Aristóteles) que a humanidade se destacou do reino natural e animal com uma relação de definições teleológicas (definições de objectivos e de meios), tal como decorre, por exemplo, da conhecida sentença de Marx sobre a diferença entre o pior construtor e a melhor abelha, segundo a qual todo o processo, no caso do primeiro, tem de passar primeiro pela consciência. Lukács formula-o ontologicamente de tal modo "que um esboço mental chega à realização material, que o estabelecimento de objectivos em pensamento altera a realidade material, insere na realidade algo de material, que face à natureza representa algo de qualitativa e materialmente novo... Não existe qualquer desenvolvimento imanente das suas qualidades, das leis e forças que nelas se encontram activas, que permita ‘deduzir’ uma casa do mero ser-em-si da pedra ou da madeira. Para tal faz falta o poder do pensamento e da vontade humanos..." (Georg Lukács, Ontologie des Gesellschaftlichen Seins [Ontologia do Ser social], vol. parcial, Die Arbeit [O Trabalho], Neuwied e Darmstadt 1973, p. 21). No entanto não é de modo nenhum forçoso, nem de modo nenhum justificado por Lukács, mas axiomaticamente pressuposto, que a relação de definição teleológica enquanto prática é idêntica à abstracção "trabalho". Assim foi ontologizada a forma de praxis histórica específica da modernidade.

É por isso também que Lukács estende o conceito de substância como substância do trabalho, definida claramente por Marx como a do capital, a uma categoria ontológico-transhistórica, que apenas teria de ser "dinamizada": "Os mais recentes conhecimentos sobre o Ser destruíram a concepção estática, imutável, de substância; no entanto, daí não decorre de modo nenhum a necessidade da sua negação no interior da ontologia, mas sim o reconhecimento do seu carácter essencialmente dinâmico. A substância é aquilo que, na eterna mudança das coisas, mudando-se a si mesma, se preserva na sua continuidade... O Ser do Ser social preserva-se como substância no processo de reprodução..." (Georg Lukács, Ontologie des Gesellschaftlichen Seins, ibidem, p. 113 s.). É precisamente esta substância que é definida como "trabalho": "O trabalho pode ser... considerado um fenómeno primordial, como modelo do Ser social" (ibidem, p. 9).

A especificidade da abstracção "trabalho" como abstracção real é esmaecida na ontologização, já apenas figurando como uma "abstracção racional no sentido de Marx" (ibidem, p. 160). Aqui Lukács nem sequer deixa de fora a ideia Engels sobre a "humanização do macaco pelo trabalho", de vez em quando involuntariamente cómica; o trabalho como "fenómeno primordial" vem ontologicamente logo a seguir às "formas existenciais precedentes do inorgânico e do orgânico" (ibidem, p. 32), constitui a linguagem, etc., de modo que ao "tornar-se Homem" corresponde, além de "andar erecto", também a "aptidão para o trabalho" (Georg Lukács, Ontologie des Gesellschaftlichen Seins [Ontologia do Ser social], vol. parcial, Die ontologischen Grundprinzipien von Marx [Os princípios ontológicos fundamentais de Marx], Neuwied e Darmstadt 1972, p. 101). A realização desta aptidão para o trabalho será a seu ver o ponto de partida "para a formação das suas capacidades, entre as quais nunca deve ser esquecido o domínio sobre si mesmo (!)" (ibidem, p. 92). Isto soa muito mais a protestante do que a "fenómeno primordial", e uma pessoa mesmo sem querer lembra-se da história, divulgada com toda a candura burguesa por Locke e Kant, segundo a qual os orangotangos apenas teimariam em não falar por não quererem trabalhar.

É inevitável que Lukács (ao contrário, por exemplo, de Rubin) tenha de ontologizar junto com o trabalho também o valor; no fim de contas, uma coisa tem a outra por consequência. Assim sendo, a categoria do valor é estendida e desfocada como a categoria do trabalho, na medida em que a definição do conceito de valor, tal como acontece em Adam Smith e outros teóricos do Iluminismo do século XVIII, se confunde tanto com "critérios de valor" ético-morais como com o conceito de "utilidade". Assim, a abstracção social do valor aparece integrada num processo ontológico da substância do trabalho, que sempre se conserva na mudança e é igualmente "fenómeno primordial": "Sobretudo, no valor como categoria social não tarda a apresentar-se o fundamento elementar do Ser social, o trabalho. A sua ligação às funções sociais do valor revela ao mesmo tempo os princípios fundamentais estruturantes do Ser social, que provêm do Ser natural do Homem e simultaneamente do seu metabolismo com a natureza..." (ibidem, p. 46) Como tal, seria essencial que se definisse de um modo transhistórico "a unidade final do valor como factor real do Ser social, sem prejuízo das suas mudanças estruturais qualitativas altamente significantes no decurso do desenvolvimento da sociedade..." (Georg Lukács, Ontologie des Gesellschaftlichen Seins [Ontologia do Ser social], vol. parcial, Die Arbeit [O Trabalho], ibidem, p. 97).

Também o "valor económico" em sentido mais restrito recebe uma bênção ontológica, como lei do valor do trabalho: "A lei mais geral, a lei do valor, foi demonstrada por Marx por exemplo no capítulo introdutório da sua obra principal. No entanto é imanente ao próprio trabalho, uma vez que está ligada, através do tempo de trabalho, ao próprio trabalho como desabrochar das capacidades humanas, estando mesmo assim já implicitamente contida onde o Homem ainda apenas faz trabalho útil, onde os seus produtos não se convertem em mercadorias, e mantendo-se implicitamente ainda em vigor depois de terminada a compra e venda das mercadorias (Georg Lukács, Ontologie des Gesellschaftlichen Seins [Ontologia do Ser Social], vol. parcial, Die ontologischen Grundprinzipien von Marx [Os princípios ontológicos fundamentais de Marx], ibidem, p. 107). Lukács demonstra aqui com uma particular clareza como a transformação histórica no entendimento do marxismo do movimento operário se refere em exclusivo à circulação e à distribuição. "A compra e venda" pode ainda não se ter efectuado ou estar prestes a passar à história, mas o "trabalho" abstracto e o valor são para a eternidade. Na opinião de Lukács, com o socialismo "termina a estrutura da troca de mercadorias, a eficácia da lei do valor para o indivíduo como consumidor. No entanto vai de si que, na própria produção e no quadro do crescimento das forças produtivas, o tempo de trabalho socialmente necessário e com ele a lei do valor como regulador da produção têm de se manter em vigor inalterados" (ibidem, p. 189). A ontologização da lei do valor simplesmente como "economia de tempo", no entanto, simplesmente esquece (já acontecendo o mesmo, por vezes, no próprio Marx) que também a qualidade do tempo como tal é historicamente diversa, e que ele apenas é destrutivamente "economizado" em sentido moderno no espaço funcional capitalista.

O "socialismo" neste sentido reduzido, limitado à regulação modificada das relações jurídicas e de distribuição, não transcendendo a ontologia capitalista, também tem então de confirmar involuntariamente a qualidade social explicitamente idêntica: "O que o capitalismo tem de especial é que produz espontaneamente uma produção social no sentido próprio da palavra; o socialismo transforma essa espontaneidade em uma regulação consciente" (Lukács, ibidem, p. 182). A diferença qualitativa, que em sentido estrito não o é, limita-se à suposta transição da "espontaneidade" da regulação ("anarquia do mercado") para a "regulação consciente", enquanto o "quê" desta espontaneidade ou regulação, o conteúdo social basilar, a "produção social", é ontologicamente elevado à "continuidade do desenvolvimento humano", como "substancialidade real do processo na sua continuidade" (ibidem, p. 180). Precisamente aquilo que deveria ser abolido sem dó nem piedade, para se romper com a falsa ontologia capitalista, assim é declarado "conditio humana"; como em geral, a ideia de uma "conditio humana", de uma "autenticidade" antropológica que possa ser aferida e instituída nos seus direitos, é um sinal de todo o pensamento afirmativo por princípio.

Com o trabalho abstracto a ser deste modo ontologizado em condição humana e sendo representada como intransponível a concomitante constituição de uma "segunda natureza", Lukács também se enquadra na metafísica da história e na ideologia do progresso do Iluminismo, onde o desenvolvimento da abstracção do valor se mantém de pedra e cal como uma continuidade meta-histórica, da craveira de uma "necessidade" hegeliana: "Também o trabalho socialmente necessário (logo ipso facto abstracto) é uma realidade, um momento da ontologia do Ser social" (ibidem, p. 48). Lukács, ao mesmo tempo, está bem ciente de que esta história como ontologia "dinamizada" é uma história de vítimas: "No século XIX, milhões de artesãos independentes viveram a entrada em vigor desta abstracção do trabalho socialmente necessário como a sua própria ruína, com isso sofreram na prática as consequências concretas, sem fazerem a mínima ideia de que enfrentavam uma abstracção traduzida em factos pelo processo social; esta abstracção tem a mesma dureza ontológica da facticidade de por exemplo um automóvel que nos passa por cima" (ibidem, p. 48 s.). Porém, este conhecimento não leva o ontólogo do trabalho à crítica radical e à ruptura com a falsa ontologia, mas apenas ao "reconhecimento da necessidade". A seu ver, essa "dureza da facticidade" abarca em si o "progresso ontológico..., sendo que se destaca claramente que a essência do desenvolvimento ontológico se encontra no progresso económico (que acaba por dizer respeito ao destino do género humano) e as contradições são as suas formas de aparência ontologicamente necessárias e objectivas" (ibidem, p. 56). Ora sacrificai-vos ao "progresso ontológico" da economia do trabalho e do valor, com os seus pequenos riscos e efeitos colaterais.

Moishe Postone não se debruçou sobre a ontológica obra principal e tardia de Lukács; mas aquilo que ele diz sobre o que acaba por ser a inconsistência das suas obras anteriores, que antes de mais argumentavam na crítica do conhecimento a partir das formas do pensamento, também se aplica à "Ontologia do Ser social": "A identificação do proletariado (ou da espécie) com o sujeito histórico acaba por manter-se na mesma representação historicamente não diferenciada do ‘trabalho’ que o ‘marxismo ricardiano’. O trabalho é definido como a fonte transhistórica da riqueza social e é considerado a substância do sujeito histórico, isto é, aquilo que constitui a sociedade" (Postone, ibidem, p. 138). Assim Lukács se enquadra nesse "marxismo ocidental" (Perry Anderson) que, embora aqui e ali tenha arranhado o verniz do paradigma do marxismo do movimento operário, de modo nenhum o suplantou decisivamente. A prática histórica do "socialismo real", que passava por uma modernização recuperadora ainda por inteiro nos horizontes da ontologia capitalista da modernidade, era deste modo mais apoiada filosoficamente do que criticamente decifrada.

Quanto a Lukács, sempre se pode ainda aduzir como atenuante ter escrito num tempo em que esta prática histórica da modernização recuperadora (mal entendida como transcendente) todavia não se tinha esgotado, e ainda parecia encaminhada para o seu auge, numa segunda vaga de movimentos de libertação nacional e regimes progressistas do Sul global, segundo o "modelo" russo-soviético. A inacreditável inércia de padrões interpretativos ideológicos para além da sua fundamentação na história real, porém, evidencia-se no facto de que as teorizações legitimadoras de uma ontologização do trabalho abstracto prosseguem mesmo após a derrocada do socialismo real e da modernização recuperadora, tal como as unhas dos pés dos cadáveres ainda continuam a crescer por algum tempo embora o corpo no seu todo já esteja morto. Do mesmo modo, a continuada elaboração da ontologia do trabalho por uma obsoleta e desmoralizada esquerda ocidental de proveniência tradicional também já não se desenrola na cabeça cerebralmente morta de uma História defunta, mas apenas nas extremidades de modelos de fim de linha. A notícia do fim do seu mundo ainda não chegou às unhas dos pés ideológicas.

Esta literatura histórica "das unhas dos pés" de um marxismo do trabalho já morto e enterrado, como formação associada a uma determinada época que ainda continuará a assombrar o mundo durante bastante tempo, não raramente se apresenta com pretensões teóricas elevadas; afinal pode valer-se, contra a nova elaboração da teoria crítica do valor e da respectiva crítica da ontologia do trabalho ainda em desenvolvimento embrionário, de toda a riqueza teórica da antiga exegese do Marx da ontologia do trabalho – com o único senão que essa riqueza de outrora entretanto assumiu o aspecto de um "belo cadáver". Este género de ontologia do trabalho marxista muito documentada, mas já não mediada histórico-socialmente, é provavelmente um fenómeno mundial.

Na Alemanha enquadra-se neste lote a obra do intérprete marxista de Hegel, Dieter Wolf, com o qual a elaboração da teoria crítica do valor por assim dizer já teve várias colisões desde o fim dos anos oitenta. Não é por acaso que o livro de Wolf publicado em 1985, fundamentado na ontologia do trabalho, "Ware und Geld [Mercadoria e Dinheiro]" foi reeditado sob o título "Der dialektische Widerspruch im Kapital. Ein Beitrag zur marxschen Werttheorie [A Contradição Dialéctica no Capital. Uma achega à teoria do valor de Marx]" (2002). Esta reedição insere-se no contexto de uma talvez derradeira tentativa do marxismo académico chegado à idade da reforma, de só mais uma vez iniciar uma espécie de contra-ofensiva contra a nova crítica do capitalismo feita pela crítica do valor.

Já fala por si a forma como Wolf pretende enquadrar a crítica da economia política de Marx na história das teorias: "Marx com a sua teoria não assume uma posição independente da história das teorias, a partir do qual invalida as teorias dos seus antecessores. Como mostra um olhar à génese do socialismo científico, trata-se antes de um movimento histórico-social em que Marx, confrontando-se com as teorias anteriores e a situação economico-social mais adiantada, abre caminho através destas teorias em direcção ao trabalho social como o fundamento que tanto lhes é comum como inconsciente" (Dieter, Wolf, Der dialektische Widerspruch im Kapital. [A Contradição Dialéctica no Capital], Hamburgo 2002, p. 19).

Marx é inserido num movimento de fundo da história das teorias que se mantém no interior dos limites da ontologia capitalista. Este é um exemplo típico de um conceito errado de "imanência", na maior parte dos casos implícito nas pretensões de uma suposta "crítica imanente". O movimento centrífugo da imanência para a transcendência è devolvido à origem; a transcendência desaparece, ou então uma posição que no essencial continua imanente faz-se passar por transcendente. O que já se manifestara relativamente à filosofia iluminista no seu todo no seio do marxismo do movimento operário repete-se com relação à teoria económica em sentido mais restrito: a teoria de Marx figura como a mera continuação da construção de um edifício, de uma espécie de panteão da história da reflexão moderna, em cuja construção também participaram os seus "antecessores", nele tendo encontrado o seu lugar. A crítica de Marx não se apresenta assim sob a perspectiva da ruptura com toda a teoria que o antecedeu, ruptura que operou de uma forma incipiente no quadro da confrontação imanente (e que hoje teria de ser completada), mas sob a perspectiva da continuidade em que alegadamente se insere com a teoria precedente. Sob esta perspectiva, Marx não "rompe", mas "continua a desenvolver". E o "trabalho social" é axiomaticamente declarado o conceito essencial desta falsa continuidade, "o fundamento tanto comum como inconsciente", não só da moderna história da continuidade, como duma sociabilidade transhistórica em geral.

A partir da premissa ideológica desta falsa história da continuidade desdobra-se agora a argumentação legitimadora da ontologia do trabalho. Neste caso, Wolf é mais exigente que a superficializada literatura tecnocrática e positivista do defunto universo científico do "socialismo real", na medida em que tenta como outrora Rubin (de resto sem sequer o mencionar) proceder a uma exo-diferenciação histórica do conceito da abstracção "trabalho" ou do "trabalho abstracto", a fim de o salvar como transhistórico. Ele distingue três níveis de abstracção. A abstracção do trabalho na forma da mercadoria, como de costume deduzida na circulação da mera "abstracção da troca", é em primeiro lugar distinguida da abstracção meramente conceptual (nominal) do "trabalho", tida como "racional": "Para tornar isto claro, observemos uma quantidade de cadeiras diferentes umas das outras: podemos reter em mente a qualidade de serem cadeiras, como a qualidade geral que é comum a todas. Aqui é levado em linha de conta o facto real de a toda a cadeira, seja ela de cozinha, de sala ou de jardim, etc., assistir a qualidade de ser simplesmente uma cadeira, independentemente da sua forma concreta virada para um determinado tipo de utilização. Cada cadeira em particular, tal como qualquer trabalho em particular, pode, por um lado, ser contemplada sob o aspecto da particularidade em termos de conteúdo e, por outro, sob o aspecto de uma qualidade geral que abstrai dessa particularidade" (Dieter Wolf, ibidem, p. 55 s.)

Há algo de insólito em equiparar a abstracção do trabalho com a da cadeira. Mas é precisamente isso que chama a atenção para o contra-senso. É que no caso das cadeiras a qualidade comum a que se refere a abstracção e que a torna "racional" é por de mais óbvia. Mas não é esse o caso do trabalho. As qualidades totalmente díspares das áreas da reprodução e da vida humanas, ou das possibilidades humanas de uma "alienação" de actividade, não podem ser reunidas no mesmo plano, como no caso das cadeiras, sob um conceito genérico qualitativo comum "racional"; antes pelo contrário, esta generalização em si é tudo menos racional.

Wolf também não salva o assunto reduzindo-o à transformação das matérias naturais: "... tratar-se-á apenas de ver no trabalho útil concreto um processo de transformação da natureza, que se materializa em um pedaço de matéria a que foi dada uma determinada forma" (ibidem, p. 54). A qualidade comum dos diversos "trabalhos úteis concretos", no entanto, está aqui definida de um modo muito genérico, não tomando em conta o metabolismo dos homens consigo mesmos, a sua actividade na relação social que não se "materializa em um pedaço de matéria a que foi dada uma determinada forma" (ou seja, aquilo que no capitalismo figura por exemplo sob a designação de "prestação de serviços pessoais"). Mas se incluirmos as áreas de actividade socialmente interactivas, nada resta da abstracção "trabalho" senão o facto de se tratar de um modo de alienação humana em geral. No entanto, esta qualidade é tão genérica que já nem representa um enunciado que faça qualquer sentido. Sobretudo, a este nível exagerado de abstracção, já nem pode ser delimitada de modos de alienação humana como o jogo, o sonho, a contemplação, a sexualidade, o passeio, o prazer, etc. Precisamente por isso, o conceito abstracto de trabalho afinal não nasceu como conceito genérico "racional" deste tipo, mas primordialmente como uma abstracção social negativa (aquilo que é feito por um escravo, independentemente do conteúdo específico).

Mas, precisamente porque não foi possível estabelecer nenhuma generalidade social do conceito de trabalho deste modo de abstracção social (a não ser no sentido meramente metafórico da negatividade, do sofrimento), esta, como conceito abstracto de "trabalho", pertence unicamente ao moderno sistema produtor de mercadorias. A "qualidade geral" das alienações de energia humana de serem designadas por "trabalho" não se deve a nenhuma "abstracção racional", mas apenas faz sentido se essa "generalidade" consistir na potencialidade de dar valor; apenas através desta comunidade social (negativa), as diversas actividades podem ser subsumidas sob o conceito de trabalho, como os diversos tipos de cadeira sob o conceito de cadeira. Portanto, a abstracção nominal é apenas uma consequência da abstracção real e de modo nenhum é em si "racional".

Nada melhor é a situação do segundo nível de abstracção do conceito de trabalho, que Wolf vai buscar para ontologizar o trabalho abstracto. Este já não conteria apenas um suposto conceito genérico "racional", segundo o exemplo da cadeira , mas representaria um conceito da prática social. Wolf recorre neste caso à linha de argumentação ontologizante do próprio Marx, que afinal também serve de tábua de salvação a Lukács e a toda a ontologia do trabalho marxista. Aqui já não se trata do mero conceito genérico, do "trabalho humano abstracto como qualidade geral dos trabalhos úteis concretos" (Wolf, ibidem, p. 54), mas da relação social prática das diversas áreas de actividade e "alienações" individuais e particulares umas com as outras.

Neste sentido da regulação social e do "reconhecimento" mútuo, é agora introduzido um segundo conceito de "trabalho humano abstracto" em sentido social: "Existe, no contexto social em que os seres humanos despendem os seus trabalhos úteis concretos, um processo em que os mesmos, abstraindo do seu carácter concreto e útil, também sejam referidos uns aos outros como humanos, isto é, gerais e abstractos? Esse processo existe. Ele consiste na já referida distribuição do trabalho social em determinadas proporções, tal como é comum a todas as formações sociais. Se, a partir desta distribuição, for possível determinar por que os trabalhos úteis concretos também podem ser referidos uns aos outros como abstractos e humanos, nesse caso trata-se de uma situação a-histórica, comum a todas as comunidades" (ibidem, p. 48).

Esta, no entanto, é uma interrogação que como tal nem sequer existe nas sociedades pré-modernas. Wolf confunde aqui duas coisas completamente diferentes. A única coisa que vai de si é que qualquer sociedade implica uma relação com a natureza e relações sociais, que os seres humanos têm de assegurar a sua reprodução através de interacções para comerem, beberem, se vestirem, habitarem, lidarem uns com os outros, brincarem, formarem uma imagem do mundo, etc. Daí, no entanto, não decorre nenhuma abstracção de um "dispêndio de energia humana" no sentido de uma regulação de conjunto. Por exemplo, o facto de se saber que é preciso semear para colher não implica um "sistema de contabilização" geral social do dispêndio de energia, que seria implícito numa generalidade abstracta correspondente. Se e na medida em que semelhante regulação contabilística ocorre em sociedades agrárias, refere-se invariavelmente apenas à abstracção social de uma determinada actividade, nomeadamente à dos socialmente dependentes, e de modo nenhum a uma "generalidade social"; e, em determinadas sociedades, não ou não em primeira linha à reprodução da vida, mas a fins transcendentes (por exemplo na construção das pirâmides no Egipto antigo).

A questão também poderia ser formulada da seguinte maneira: todas as sociedades pré-modernas partem implicitamente do princípio de que, de qualquer modo, há sempre tempo de sobra à disposição, que se "tem tempo", e de modo nenhum é preciso colocá-lo adicionalmente numa "relação de escassez" das diversas actividades ou alienações humanas em geral. Semelhante ideia ter-se-ia afigurado pura e simplesmente absurda. Aqui se revela claramente um determinado aspecto das diversas qualidades históricas do tempo. Marx chamou repetidamente a atenção para o absurdo do facto de que é precisamente a aplicação de meios "economizadores de tempo" no capitalismo moderno que está ligada a uma eterna falta de tempo e simultaneamente à transformação do tempo de vida em "tempo de trabalho". A razão é que a economia apenas técnica do tempo (que, mesmo no plano técnico, muitas vezes se teria afigurado ridícula e grotesca à consciência pré-capitalista) é definida por uma relação social que se baseia no "descomedimento [Masslosigkeit]" (Marx) do capital, nomeadamente na incorporação desmedida do dispêndio de energia humana em unidades de tempo abstractas.

Assim, quando Wolf afirma a "relação (social) mútua dos trabalhos úteis concretos como humanos abstractos" (ibidem, p. 49), de resto entroncando directamente em Rubin e no seu conceito de "equiparação social" (como já se disse, sem referência à origem), na medida em que ela está "incluída na distribuição proporcional da totalidade do trabalho à disposição duma comunidade" (ibidem), Wolf está a cometer um anacronismo. O sistema de tributos, exacções, etc. vigente nas antigas sociedades agrárias como expressão da dominação social em determinadas constituições de fetiche não se baseava exactamente numa "contabilização" assim tão absoluta e totalitária. Elementos de semelhantes práticas apenas se encontram em trabalhos forçados periódicos, por exemplo na construção das pirâmides, da muralha de China, etc. Nesses casos, porém, invariavelmente se tratou de ocorrências de expressão limitada, que de modo nenhum abrangiam a totalidade da reprodução social.

A simples a ideia de fazer o levantamento da "totalidade do trabalho à disposição duma comunidade" já contém em si sem o saber o descomedimento capitalista e o totalitarismo da forma do valor, tal como historicamente foi pela primeira vez idealizado pelo protestantismo. O facto de as sociedades que apostaram na modernização recuperadora, com a sua lógica da planificação estatal, terem sempre procedido precisamente a esse "levantamento [Erfassung]", tendo com esse acto primeiramente definido a "população" como "força de trabalho colectiva" abstracta, não foi mais que a repetição da história da constituição capitalista da "soberania", a qual tinha seguido o mesmo percurso com outro revestimento ideológico.

Embora Wolf, contrariamente aos ideólogos do socialismo de estado, se demarque com facilidade da transformação do "valor em uma categoria a-historicamente válida" (ibidem, p. 47), vê-se obrigado, em completa sintonia com os trechos de ontologia do trabalho de Marx ou com a ontologia do trabalho de Lukács, a tentar salvar a definição do valor como transhistórica num determinado sentido, recorrendo ao conceito de "distribuição proporcional dos diversos trabalhos": "Se o valor das mercadorias não é uma categoria de validade a-histórica, e se nem sequer existiu em todas as formações sociais, tal não exclui que também se trata sempre de algo que é comum a todas as formações sociais... Este ‘algo’ é... a distribuição da totalidade do tempo de trabalho que está à disposição de uma sociedade pelos vários trabalhos úteis concretos. Esta distribuição é sempre efectuada num contexto historicamente determinado, que ao mesmo tempo decide sobre o reconhecimento social dos vários trabalhos, ou seja, sobre a sua forma historicamente específica" (ibidem, p. 47).

Para Wolf, portanto, o "trabalho" é historicamente diferente apenas no sentido de diferentes "formas de reconhecimento", sendo que a forma moderna, capitalista, está determinada precisamente pelo mercado, isto é, pela troca dos produtos do trabalho como mercadorias. O conceito de uma "forma de reconhecimento" já encerra em si a possibilidade do não reconhecimento, que é igualmente ontologizado. Uma relação de reconhecimento e não reconhecimento, a ser regulada à parte por instâncias de mediação social, é no entanto um elemento basilar das relações de dominação e por conseguinte de fetiche.

Wolf ontologiza a relação de reprodução e de submissão fundamental do trabalho abstracto, mas quer separar dela a correspondente relação de mediação do mercado, para declarar apenas esta última a característica específica do modo de produção capitalista: "Assim, embora numa comunidade não capitalista os trabalhos úteis concretos também sejam mutuamente relacionados como abstractos e humanos no âmbito da distribuição proporcional da totalidade do trabalho, o seu carácter social geral não consiste porém em trabalho humano abstracto, mas, de um modo que se explica pela natureza do contexto social, em trabalho útil concreto. Tal como nas comunidades não capitalistas, também numa comunidade capitalista os trabalhos úteis concretos são mutuamente relacionados, na distribuição proporcional da totalidade do trabalho, como abstractos e humanos... Aqui, porém, trata-se de um papel social extraordinário que é desempenhado pelo trabalho humano abstracto em apenas uma única situação social" (Wolf, ibidem, p. 49).

O que aqui vemos não é mais que rabulística conceptual. Se, numa comunidade não capitalista, o carácter socialmente geral dos trabalhos já consiste no trabalho útil concreto, já não sobra lugar para o conceito de trabalho humano abstracto, e nesse caso o conceito de trabalho como tal, que em si já representa uma abstracção, não pode ser aplicado em sentido moderno ou, nos casos onde existe de algum modo um conceito abstracto para "actividade em geral", este refere-se a tudo menos à generalidade social (actividade dos escravos, etc.). O facto de em todas as formas de alienação na sociedade se tratar de alienações humanas ou mesmo sociais não necessita de uma conceptualidade extra, uma vez que já de si é evidente. Se, portanto, Wolf opera com dois estatutos diferentes do "trabalho humano abstracto", sendo que o que se supõe ontológico e transhistórico deve desempenhar apenas no capitalismo um "papel extraordinário", enquanto o autor não consegue indicar nenhum "papel" com algum sentido para situações não capitalistas, tal apenas comprova que ele tenta a todo o custo introduzir de contrabando a especificamente moderna abstracção trabalho na história e no futuro.

As suas subdivisões do trabalho abstracto em pretensos dados ontológicos, por um lado, e factos especificamente capitalistas, por outro, tal como os esforços similares de Lukács, não passam de bizantinices. Quem se pode permitir este tipo de rabulística como mero malabarismo conceptual são os marxistas do trabalho ocidentais, porque não respondem por um processo de reprodução social real com base no trabalho abstracto e na forma do valor, enquanto os pensadores do socialismo real, no sistema de referência da "produção planificada de mercadorias" e sob a pressão das contradições intrínsecas às mesma, tiveram de afirmar bastante brutal e abertamente a categoria do trabalho abstracto nua e crua.

Os ideólogos do socialismo real não foram mais estúpidos, mas de certa maneira, com o seu modo de pensar afirmativo, mais inteligentes do que marxistas ocidentais como Wolf, ao retirarem da ontologização do trabalho abstracto a consequência de uma igual ontologização da forma do valor e da mediação do mercado ("planificada"). É que ambas estas coisas também andam na realidade associadas; o mercado não é outra coisa senão a "esfera de realização" do processo abrangente de valorização, e como tal imprescindível. Quando Wolf declara apenas a mediação do mercado no "papel" especificamente capitalista de "trabalho humano abstracto", ontologizando ao invés a situação basilar da abstracção trabalho, lança uma luz meridiana sobre o que ele entende por uma sociedade pós-capitalista, supostamente emancipada.

Um sistema de trabalho abstracto sem a correspondente mediação do mercado apenas poderia ser uma ditadura extremamente repressiva do processo de reconhecimento/não reconhecimento, contabilização e distribuição, levantamento e administração de pessoas, à moda de Estaline ou quiçá de Pol Pot; ou seja, precisamente o que os marxistas tradicionais andaram repetidamente a vaticinar como alegada consequência da crítica do valor para a denunciarem e repudiarem. No entanto, só é emancipatória a suplantação do sistema do trabalho abstracto por inteiro, incluindo a mediação do mercado; não, porém, da mediação cega do mercado sozinha (que nem poderia ser uma suplantação verdadeira, mas apenas uma ingerência exterior, estatal, que se mantém vinculada à forma categorial do valor e, com isso, do mercado).

Portanto, é precisamente a teoria supostamente mais reflectida, ocidental, de uma crítica do trabalho abstracto e do fetichismo, cuja intervenção no entanto fica absolutamente limitada à esfera da circulação, que tem de ser alvo da acusação de implicação num sistema estilo Pol Pot; e não a crítica do valor, que como crítica radical do trabalho se destaca exactamente da anterior ao pôr a descoberto a relação de reprodução subjacente no seu todo e desde a raiz. Só quando se acabar de vez com o conceito de "trabalho humano abstracto", que não assombra apenas Wolf, se ganhará uma perspectiva emancipatória que aponte um caminho para lá do modo de produção capitalista, e em especial para além do paradigma da "modernização recuperadora", que carrega sobre os cérebros de esquerda como um pesadelo.

Para a crítica do conceito de trabalho em Moishe Postone

É sem dúvida mérito de Moishe Postone ter sido ele o primeiro a romper com a ontologia do trabalho burguesa, o conceito transhistórico de trabalho e a positivação do trabalho abstracto pelo marxismo tradicional, e a ter dado início à sua suplantação; e tal aconteceu, em parte, muito antes da crítica do trabalho, tal como ela foi sendo desenvolvida desde os finais dos anos oitenta pelos princípios da crítica do valor em língua alemã. A elaboração teórica de Postone, de argumentação semelhante, remonta aos anos setenta, foi objecto de uma elaboração ulterior nos anos oitenta, e desde o início dos anos noventa foi apresentada sob uma forma mais avançada (na tradução alemã da obra principal até à data apenas em 2003). Na Alemanha, a crítica do valor e do trabalho surgiu em grande parte independente de qualquer recepção de Postone; o que constitui um indicador de que o ulterior desenvolvimento e superação da teoria de Marx sobre a crítica radical do trabalho de certo modo pairou no ar, como resposta ao debate burguês sem conceitos categoriais em torno da "crise da sociedade do trabalho", que já tinha sido teoricamente inaugurado no fim dos anos cinquenta por Hannah Arendt, e tinha ganho uma actualidade e explosividade inesperadas com o desenrolar da crise mundial da terceira revolução industrial (crescente desemprego estrutural de massas).

Segundo Postone, "o trabalho tem de ser entendido como historicamente específico e não como transhistórico. A concepção de Marx de que o trabalho constitui o mundo social e é a fonte de toda a riqueza não se refere por isso na sua crítica tardia à sociedade em geral, mas unicamente à sociedade capitalista ou moderna" (Moishe Postone, Zeit, Arbeit und gesellschaftliche Herrrschaft [Tempo, trabalho e dominação social], Friburgo 2003, p. 23). Sob este aspecto, Postone rompe decididamente com o positivismo do trabalho de todos os marxismos existentes até à data, distinguindo "entre dois processos de análise crítica fundamentalmente distintos...: uma crítica do capitalismo do ponto de vista do trabalho, por um lado, e, por outro, uma crítica do trabalho no capitalismo. O primeiro, que se baseia num entendimento transhistórico do trabalho, pressupõe que entre as determinações que caracterizam a vida social do capitalismo (por exemplo o mercado e a propriedade privada) e a esfera social constituída pelo trabalho existe uma tensão estrutural. O trabalho constitui aqui o fundamento da crítica do capitalismo, representando o ponto de vista a partir do qual a crítica é desenvolvida. Para o segundo processo de análise, porém, o trabalho no capitalismo é historicamente específico, constituindo as estruturas essenciais desta sociedade. Por isso, desta perspectiva é o trabalho que se torna o objecto da crítica da sociedade capitalista" (Postone, ibidem, p. 25).

O trabalho como o ponto de vista da crítica ou o trabalho como o objecto da crítica, é isto que resume a oposição, tal como já foi insinuado mais acima. Trata-se aqui precisamente do trabalho como categoria ou como determinação da essência, e não de uma crítica do trabalho apenas acidental, mas categorialmente afirmativa, como é o caso do operaismo (por exemplo dirigida ao carácter de dependência exterior do trabalho assalariado, às condições de trabalho deficientes, etc.). É, pois, a partir desta nova e negativa determinação da essência do trabalho que Postone consegue pôr a descoberto a redução à circulação e à distribuição da crítica marxista do trabalho pré-existente e desenvolver as críticas (já citadas) das teorias correspondentes de Lukács, Sohn-Rethel, etc. Este feito de Postone tem de ser tido em consideração tanto mais elevada, quanto considerarmos que Postone foi durante mais de uma década condenado a uma existência na solidão total; as publicações em que ele deu um desenvolvimento ulterior ao seu princípio permaneceram em grande medida sem ressonância, e mesmo em diversas colectâneas não passavam de corpos estranhos sem qualquer mediação, aos quais a comunidade académica (com destaque para os representantes alemães da teoria crítica) em grande medida negou um debate adequado, uma vez que iam para além do padrão do entendimento habitual. Tanto mais é admirável a persistência com que Postone prosseguiu o seu caminho teórico e continuou a desenvolver o seu princípio.

Talvez seja devido a este isolamento discursivo ao longo de tanto tempo que Postone ainda não pensou consequentemente até ao fim a crítica do trabalho, isto é, da abstracção "trabalho". Se, como na citação acima, fala de "trabalho no capitalismo", esta expressão também implica um "trabalho" fora do capitalismo; o problema da abstracção, relativamente a um conceito de "actividade em geral" como alienação humana, e da abstracção real, como inconsciente execução da sua actividade, não é assim suficientemente aclarado, mantendo-se a crítica incompleta.

Na análise de Postone encontramos este dilema a par e passo. Ele quer delimitar o "trabalho no capitalismo" de um conceito de "trabalho" aparentemente nada problemático, pressuposto como evidente e não mais tematizado, postulando que apenas no capitalismo "as categorias basilares da vida social... são categorias do trabalho. Isto é tudo menos indiscutível, não podendo ser fundamentado com uma remissão geral para a evidente relevância do trabalho na vida social do Homem" (Postone, ibidem, p. 50). Postone aceita, portanto, sem qualquer exame adicional, a remissão para uma "relevância do trabalho" supostamente "evidente" para a vida social em geral, mas não quer dar-se por satisfeito com este estado de coisas, realçando o papel específico do trabalho como princípio de síntese social unicamente existente no capitalismo. Nem sequer começa a colocar a si mesmo a questão de se um conceito geral e abstracto de trabalho ainda faz sentido fora desta constituição moderna e se existiu historicamente.

Nesta medida também se encontra ainda em Postone um conceito duplo da abstracção trabalho, sendo que o aparentemente não problemático permanece como dantes uma categoria transhistórica. Assim Postone afirma "que a forma do trabalho e a estrutura real das relações sociais são diferentes em formações sociais diversas" (ibidem, p. 55). O capitalismo não se distingue, portanto, de outras formações pelo facto de só ele ter produzido a "forma trabalho" (a qual tem correspondência na "forma sujeito", igualmente apenas válida para a constituição moderna), mas unicamente pela "forma do trabalho". Portanto, é suposto tratar-se novamente de uma mera diferença de forma, respeitante a um estado de coisas que apesar de tudo é uma vez mais transhistórico, e com isso ontológico, tal e qual como na argumentação aporética de Marx. A especificidade do capitalismo consistiria, portanto, segundo Postone, na função de síntese social do trabalho, sendo que como tal seria entendido apenas o "dispêndio de trabalho humano imediato" (ibidem, p. 60) no processo de produção: "Esta qualidade social – historicamente única – distingue o trabalho no capitalismo do trabalho em outras sociedades" (ibidem, p. 88).

Tal estabelece evidentemente uma certa confusão quanto à validade transhistórica ou especificamente histórica (apenas pertencente à modernidade) do conceito de trabalho abstracto. Postone intui isso mesmo, ao formular ocasionalmente o conceito de trabalho ontológico e transhistórico aparentemente não problemático, que ainda assombra o seu discurso, de um modo que apesar de tudo sem querer o problematiza: "Em todas as sociedades existem diversas expressões daquilo que nós habitualmente designamos por trabalho" (ibidem, p. 233). Esta formulação já implica que "nós" (os homens modernos socializados na categoria do trabalho) "habitualmente" também "designamos por trabalho" noutras sociedades algo que na realidade não corresponde a essa abstracção. Isso torna-se ainda mais nítido quando Postone fala de "actividades com a forma do trabalho" (ibidem, p. 233) em sociedades não capitalistas. Esta estranha expressão torna evidente o escrúpulo implícito de Postone relativamente à categoria do trabalho, que ele de certo modo ainda vai arrastando secundariamente atrás de si como transhistórica, escrúpulo que não se torna contudo explícito.

Neste contexto, Postone volta a referir-se uma vez mais à relação entre abstracção e abstracção real relativamente ao conceito de trabalho, reportando-se ao duplo carácter do trabalho formulado em Marx como concreto e abstracto: "Esta definição de partida do duplo carácter do trabalho no capitalismo não deveria ser desligada do seu contexto, por exemplo pressupondo que as diversas formas de trabalho concreto são todas elas apenas formas de trabalho em geral. Semelhante constatação não tem qualquer valor analítico, uma vez que pode ser feita para as actividades na forma de trabalho de todas as sociedades, ou seja, também relativamente àquelas onde a produção de mercadorias é de uma importância meramente marginal. Afinal todas as formas de trabalho têm em comum precisamente isso, o serem trabalho... O que torna o trabalho geral no capitalismo não é a banalidade de que ele constitui o denominador comum de todos os diversos tipos específicos de trabalho. A função social do trabalho é que o torna geral. Como actividade mediada socialmente, o trabalho abstrai da especificidade do seu produto, e assim da especificidade da sua própria forma concreta. Na análise de Marx a categoria do trabalho abstracto dá expressão a este processo de abstracção social. Ela não se baseia em um processo de abstracção meramente conceptual" (ibidem, p. 235).

Embora Postone aqui realce a índole específica da generalidade do trabalho no capitalismo, a única que dá sentido a semelhante conceito de generalidade, ele admite apesar de tudo a abstracção puramente conceptual "trabalho", no sentido de um conceito genérico aparentemente singelo (o primeiro nível da abstractificação afirmativa em Wolf, ver acima), como racional em si mesma, entendendo esta no entanto (ainda assim, ao contrário de Wolf) como "sem valor analítico" e como "banalidade", para lhe opor a com ela incompatível abstracção capitalista do trabalho como síntese social. Postone não vê, contudo, que o mero conceito genérico de "trabalho" é "destituído de valor analítico" precisamente porque também representa outra coisa que não uma "banalidade". Apenas pode surgir como tal em condições capitalistas, porque a abstracção na mera acepção conceptual não é mais que um reflexo mental da abstracção real, apenas pertencente à modernidade, e também como tal não tem qualquer paralelo histórico.

A última falta de clareza quanto ao conceito de trabalho abstracto faz-se sentir em Postone no que diz relativamente às afirmações de Marx sobre uma "economia de tempo" pretensamente transhistórica, que conteria em si um momento da determinação do valor para lá do capitalismo, e que foram invocadas com ênfase por Rubin, Lukács, Wolf, etc. Também Postone agarra este argumento, mas confere-lhe um peso claramente diferente e menos afirmativo: "O enunciado de Marx, segundo o qual reflexões sobre o tempo de trabalho continuariam a ter importância numa sociedade pós-capitalista, não... significa que a forma da riqueza teria uma forma temporal, em vez de material... De facto, uma economia de tempo conservaria alguma importância, mas provavelmente passaria a ter um carácter descritivo... por conseguinte, a relação entre reflexões sobre o dispêndio de tempo e reflexões sobre a produção de riqueza poderia ser essencialmente muito diferente daquela onde o valor é a forma social de riqueza... A concepção de Marx de uma possível economia de tempo pós-capitalista e a sua análise do capitalismo como uma forma temporal da riqueza não são por isso idênticas, devendo ser distinguidas" (ibidem, p. 570 ss.).

Ora, o que se passa é que o próprio Marx teima precisamente em não estabelecer esta diferença, designando antes a manutenção de uma "economia de tempo" expressamente como a manutenção de um momento da forma do valor, que para mais teria um carácter ontológico-transhistórico. Por outras palavras: Marx ainda não vê a diferença acima já esboçada entre conceitos e formas históricos de tempo; para ele aplica-se simplesmente o tempo contínuo abstracto de Newton, Kant e da economia empresarial moderna. A diferença que Postone estabelece com muita razão no fundo proíbe que se continue a dizer que a "economia de tempo" manteria a sua "importância". Postone lá sabe porque fala de "uma" em vez de "a" economia de tempo, mas uma espécie de definição de tempo qualitativamente diferente também já não seria abstractamente "económica", como se a "poupança de tempo" pudesse ser um valor em si, independentemente do conteúdo. O entendimento de Postone entra em conflito com a sua (pouco convicta) defesa da letra do conceito, tanto relativamente ao conceito de tempo abstracto como ao conceito de trabalho abstracto.

Este dilema repete-se na apreciação da chamada "necessidade", no sentido do "trabalho necessário". Marx, como é sabido, introduz esta definição de um modo duplo, por um lado como o trabalho socialmente necessário em média referido ao dispêndio de energia humana no capitalismo, com base em um determinado padrão de produtividade (ou seja, puramente imanente ao capitalismo), e por outro lado como a necessidade transhistórica de trabalho em geral, como "reino da necessidade", do qual teria de permanecer um resíduo mesmo após o fim do capitalismo, e para além do qual poderia então erguer-se o "reino da liberdade".

Postone não critica esta última definição, embora com base na sua própria argumentação no fundo devesse fazê-lo, mas duplica o conceito de "necessidade" do "trabalho" à semelhança do da economia de tempo, postulando que "também na observação da relação do trabalho para com a necessidade social há que distinguir entre a necessidade social transhistórica e a necessidade social historicamente determinada. Um exemplo para o primeiro género de necessidade é, para Marx, que alguma forma de trabalho concreto, seja determinada pelo que for, é necessária para mediar o metabolismo entre o Homem e a natureza, e por conseguinte a manutenção de uma vida social humana. Semelhante actividade é, segundo Marx, uma condição necessária da existência humana em todas as formas de sociedade... Como consequência do seu duplo carácter, o trabalho na forma da mercadoria para Marx está ligado a duas formas diferentes de necessidade, das quais uma é transhistórica e a outra específica do capitalismo" (ibidem, p. 572 s.)

Sob o conceito de "necessidade" relativamente ao valor de uso (cuja vinculação lógica à socialização do valor também não é tematizada por Postone) regressa pela porta do cavalo um conceito de trabalho explicitamente ontológico, para se introduzir à socapa na argumentação de resto absolutamente incompatível com ele. Isso talvez se deva também à tentativa de Postone de apresentar a crítica do trabalho e do valor como nova interpretação de um Marx coerente, por assim dizer sem contradições e "inteiro", atitude que apenas pode conduzir a inconsistências. É muito mais adequado destrinçar em Marx uma contradição entre a ontologia do trabalho, por um lado, e a crítica do trabalho e do valor, por outro, o que corresponde à sua situação histórica.

A recaída na ontologia do trabalho torna-se perfeitamente clara logo que Postone chega a falar nas perspectivas de uma sociedade pós-capitalista. Esta implica, para ele, "também a possibilidade de um outro processo de produção – um processo que se baseie numa nova e emancipatória estrutura do trabalho social" (ibidem, p. 57). Aqui tratar-se-ia de um "trabalho não alienado, livre de relações de dominação sociais imediatas e abstractas" (ibidem, p. 67). Deste modo, Postone a este respeito recai no jargão do velho movimento operário, ainda que com uma expressão paradoxal: "A emancipação do trabalho requer a emancipação face ao trabalho (alienado)" (ibidem, p. 66). Significativamente, o adjectivo que deveria resolver o paradoxo encontra-se entre parênteses, não contribuindo nada para a clarificação. Se o omitirmos, resta o paradoxo em forma pura, que reúne apenas exteriormente dois paradigmas opostos: a emancipação do trabalho não pode ser equivalente à emancipação face ao trabalho. Aquilo de que os humanos têm de se emancipar já está contido na abstracção "trabalho" como tal, como conceito essencial de uma socialização negativa. Aqui não se trata, portanto, de um paradoxo real reproduzido em conceitos, mas de uma contradição conceptual no próprio Postone (à semelhança do que aconteceu no caso da aporia de Marx a respeito do conceito de trabalho).

Esta contradição na argumentação de Postone também se prolonga no que diz respeito à totalidade da sociabilidade capitalista. Por um lado, ele enfatiza que é o trabalho abstracto que institui esta totalidade, devendo por isso aquele ser "abolido" em conjunto com esta. Ao mesmo tempo, porém, prolonga certos momentos desta totalidade para além do capitalismo, no mau sentido hegeliano de uma "superação [Aufhebung]" afirmativa (onde se mantém precisamente a essência); tal é especialmente evidente quanto à esfera política, que ele pelos vistos não entende como historicamente específica, mas uma vez mais ontológica. Em vez de formular a crítica do trabalho, com coerência lógica, também como crítica da democracia, Postone quer deste modo proceder a "uma crítica democrática renovada do capitalismo" (ibidem, p. 40) e propaga uma "democracia pós-capitalista" (ibidem, p. 78); uma contradição em si, perfeitamente na linha do conceito afirmativo de democracia no marxismo tradicional, que aí corresponde precisamente àquela limitação do conceito de capital à circulação e à distribuição, que Postone por outro lado critica com tanto acerto.

Estas críticas não devem nem podem no entanto reduzir o mérito de Postone, por ter sido o primeiro a abrir a porta para a suplantação da moderna ontologia do trabalho, que também no marxismo tradicional ainda passava por indiscutível. Não é possível exagerar o valor deste feito que abriu novos caminhos. Apesar dos momentos de ontologização que ainda vai arrastando consigo, a diferença decisiva face ao marxismo do movimento operário consiste em que Postone nega qualquer carácter transhistórico ao trabalho no capitalismo, mesmo ao trabalho concreto no processo de produção material. Ele deixa claro sem margem para dúvidas "que o trabalho que constitui o valor não deveria ser identificado com o trabalho em sentido transhistórico. Pelo contrário, ele representa uma forma historicamente específica que com o fim do capitalismo é abolida e não realizada" (ibidem, p. 61).

O conceito de trabalho ontológico e transhistórico que ainda resta em Postone já não é mais que o produto duma vã perplexidade, o espectro dum entendimento em princípio já ultrapassado; e, diga-se de passagem, também é inconsistente, porque se o "trabalho" existisse realmente em sentido transhistórico, ele também teria de existir no capitalismo, que afinal não existe fora da história. Ou uma ontologia do trabalho existe, ou não existe; mas não é possível que exista antes e depois do capitalismo, sem existir no capitalismo. Tal seria especificidade histórica a mais. Se o "trabalho no capitalismo" representa uma condição puramente histórica e negativa, não pode existir "outro" trabalho transhistórico, mas essa abstracção faz parte, como relação geral social, apenas da modernidade produtora de mercadorias e da história da respectiva constituição. Também a abstracção puramente conceptual do "trabalho", como conceito de generalidade social, está ligada a esta relação; o conceito enquanto conceito é um produto da abstracção real acontecida e não deve ser entendido separado dela como transhistórico.

O trabalho abstracto e o valor como apriori social

O que começa a manifestar-se no debate crítico do valor sobre a abstracção trabalho e é também tematizado por Postone é o problema do real apriori na constituição social. Ou melhor dizendo: o trabalho abstracto é um conceito da produção ou apenas da circulação, o ponto de partida ou apenas um ponto de passagem? Temos de retomar aqui com mais pormenor este problema já esboçado acima, da redução à circulação do conceito de trabalho abstracto no marxismo tradicional, a fim de analisar as suas implicações. No fundo é estranho que este problema não tenha ocorrido ao marxismo do movimento operário clássico, o que pode ser atribuído no essencial à sua função de ideologia da modernização. O trabalho abstracto converte-se assim por um lado numa definição positivista e irreflectida (no socialismo real, positivada para "uso doméstico" como em Günter Mittag e Cia.). Por outro lado, é tratado implicitamente como conceito da circulação, o que, como foi assinalado, se torna explícito nos teóricos ocidentais reflectidos como Sohn-Rethel, no conceito de trabalho abstracto como "abstracção da troca", apenas para além da esfera da produção. O mesmo acontece evidentemente também em Dieter Wolf: "Apenas na troca os vários trabalhos são relacionados uns com os outros como trabalho humano abstracto de modo que esse se torne trabalho na forma historicamente específica" (Dieter Wolf, Der dialektische Widerspruch im Kapital. [A Contradição Dialéctica no Capital], ibidem, p. 79).

Tal corresponde evidentemente por completo à subdivisão do processo de reprodução capitalista em uma esfera ontológica-transhistórica do trabalho concreto, do processo de produção material, por um lado, e em uma esfera especificamente capitalista da troca, ou do mercado, da regulação "anárquica" do mercado, por outro, onde se pretende "libertar" a ontologizada esfera da produção da esfera da circulação especificamente capitalista ("libertação do trabalho"). Paradoxalmente, "o trabalho" como "trabalho sob a sua forma historicamente específica", "converte-se" assim não no próprio trabalho, e por isso, também não em dispêndio efectivo de força de trabalho no processo de produção real, mas apenas no seu além social, como processo de troca ou acto de mercado fora do trabalho, quando já nem sequer se trata de trabalho activo, mas apenas do seu reflexo fetichista nos produtos como mercadorias.

Postone quebrou este padrão ao retirar o trabalho abstracto explicitamente da sua mera determinação na circulação e assim desontologizou a reprodução capitalista como um todo. Como se pode compreender sem dificuldade, semelhante princípio não poderia nascer apenas do contexto de um esforço de análise crítica da história da teoria marxista, mas teve igualmente como campo de referência o contexto do debate socio-ecológico dos anos oitenta. Nessa altura a destruição dos pressupostos naturais da vida pela "externalização dos custos" da economia empresarial estava no primeiro plano do debate e estavam em voga palavras de ordem como "Trabalhar de outro modo, viver de outro modo". Esse debate ainda permanecia totalmente irreflectido com respeito à determinação da forma social pelo trabalho abstracto e pela lógica do valor; Postone foi o primeiro a querer fazer valer nesta discussão um desenvolvimento ulterior da teoria de Marx transformado pela crítica do trabalho e do valor. Esta formulação do problema é hoje mais actual e premente do que nunca.

Se o marxismo tradicional sempre derivou de um modo reduzido a dimensão social do processo real de produção capitalista, o carácter de sujeição social da esfera funcional da economia empresarial, da determinação jurídica da propriedade apenas entendida de um modo superficial e conforme à vontade subjectiva (os meios de produção não "pertencem" aos produtores), e não da essência da própria lógica de produção concreto-abstracta como processo de valorização, o que corresponde à sua positivação e ontologização da esfera da produção pretensamente apenas "concreta", ele teve, por conseguinte, ou de escamotear por completo o carácter ecologicamente destrutivo do processo de produção capitalista (como aconteceu com alguns ideólogos do socialismo real na apologia da economia empresarial "socialista" igualmente destrutiva para os pressupostos naturais da vida), ou de reduzir este problema precisamente da mesma maneira à questão jurídica da propriedade na acepção tradicional.

A ideia no fundo óbvia de tirar proveito do conceito de Marx de trabalho abstracto, no sentido de uma crítica socio-ecológica do processo de produção capitalista mesmo no que diz respeito à sua "lógica de produção" material, ficou assim bloqueada. O marxismo, com a sua fixação tradicional na circulação (anarquia do mercado), na distribuição (luta pela distribuição na forma do dinheiro), e com isso na dimensão politico-jurídica entendida de modo superficial (relações de propriedade, intervenções do estado) teve, por isso, de passar ao lado da problemática socio-ecológica, que tinha ganho actualidade no seio da sociedade, enquanto o movimento socio-ecológico, por seu lado, permaneceu sem conceitos e concretista, ou seja, incapaz de uma crítica da "substância do capital"; o que apenas pôde agravar-se em vez de ser suplantado pelo facto de os marxistas terem falhado o tema.

O ponto decisivo consiste em saber se a abstracção trabalho ou abstracção real pode ser pensada consequentemente como lógica da produção, ou se permanece reduzida à circulação. A isso equivale a questão da prioridade do trabalho abstracto. Será que ele constitui o apriori da reprodução capitalista como totalidade, sendo assim a sua validade estabelecida já no próprio processo de produção "concreto", o será que se trata apenas de uma "abstracção da troca" secundária? O marxismo tradicional na maior parte dos casos admitiu implicitamente que este último era o caso, uma vez que apenas era capaz de pensar a forma capitalista da produção industrial de modo muito superficial e a lógica da abstracção como força destrutiva totalitária ainda não estava historicamente amadurecida; e onde a formulação foi explicitada, como em Sohn-Rethel, não passou de uma posição definidora sem referência discursiva.

O trabalho abstracto como apriori social ou apenas como "abstracção da troca" e, com isso, produto secundário da circulação, sendo que esta alternativa é idêntica àquela que inquire se o valor das mercadorias é "produzido" no processo da sua produção, ou se "surge" apenas na esfera da circulação. É que o trabalho abstracto como substância do capital afinal não é outra coisa senão a "substância formadora do valor", ou seja, aquilo que constitui o valor. À primeira vista, o problema parece desconcertante. Porque é evidente que o valor é produzido pelo trabalho, ou não será assim? Não é este o credo solene do marxismo do movimento operário, o seu "ponto de vista do trabalho", a sua glorificação do proletariado "criador de valor"? A ironia da questão é que o marxismo tradicional se vira de certo modo de pernas para o ar no seu próprio "ponto de vista", uma vez que, embora afirme a "classe criadora de valor" como sendo a produtiva, reduz ao mesmo tempo a abstracção do valor à esfera da circulação.

Por um lado pretende-se que a produção seja determinada apenas pelo "trabalho concreto", e com isso pela produção de "valores de uso", enquanto o processo de abstracção supostamente apenas é efectuado secundáriamente na esfera da circulação; por outro lado, fala-se de um modo absolutamente positivo da "produção" do valor pelo "trabalho". Por um lado temos, portanto, o orgulho dos produtores no sentido de uma criação de valor de uso supostamente superior ao reles valor de troca e a que apenas exteriormente se teria sobreposto a lógica do valor capitalista (no sentido da definição jurídica da propriedade entendida de um modo reduzido); por outro lado, é o mesmo orgulho dos produtores no sentido da própria "criação de valor", onde é logo a generalidade abstracta capitalista que figura como a "dignidade" do trabalho. É significativo que o marxismo nem tenha dado por esta sua própria contradição flagrante. Ao movimentar-se em tal contradição, assim se pode dizer, este pensamento reflecte a totalidade ou unidade negativa do trabalho abstracto e concreto, mas de um modo completamente inconsciente e sem uma concepção crítica dessa totalidade.

Entretanto o problema amadureceu de tal modo, tanto em termos objectivos, no desenvolvimento histórico das forças destrutivas do capitalismo, como em termos discursivos, pela formulação do princípio da crítica do valor, que já tem de ser formulado explicitamente mesmo pela auto-apologética do marxismo tradicional. Assim, por exemplo, o politólogo de Berlim Michael Heinrich, que preconiza uma espécie de mistura de teoria do valor feita de posições meio marxistas tradicionais e meio pós-modernas, intitula o capítulo dedicado à "fantasmática objectividade" da forma da mercadoria, na sua recém-publicada introdução à crítica da economia política, expressamente com a questão: "Teoria da produção ou teoria da circulação do valor?" (Michael Heinrich, Kritik der politischen Ökonomie. Eine Einführung [Crítica da Economia Política. Uma Introdução], Estugarda 2004, p. 51). E evidentemente decide-se pela teoria da circulação: "Assim sendo, é apenas a troca que realiza a abstracção que está na base do trabalho abstracto... As mercadorias não possuem objectividade do valor como uma objectivação de trabalho concreto, mas como uma objectivação de trabalho abstracto. Mas se, como acabamos de esboçar, o trabalho abstracto é uma relação de validade social apenas existente na troca (trabalho despendido a título privativo é considerado como trabalho abstracto, criador de valor), então também a objectividade do valor das mercadorias só existe na troca" (Heinrich, ibidem, p. 48, 51).

Para Heinrich, portanto, em absoluta sintonia com o marxismo tradicional, o trabalho abstracto não é uma relação de produção, mas apenas uma relação secundária de circulação, ou "relação de validade" neste sentido, que implica que a actividade produtiva real e propriamente dita no capitalismo é "apenas concreta", e que a "relação de produção" enquanto capitalista é unicamente determinada pela questão da propriedade jurídica estabelecida de uma forma puramente exterior. Perante a situação avançada do problema, Heinrich nem sequer derruba a barra, mas salta a uma distância segura abaixo dela. Na sua delimitação do princípio da crítica do valor, ele orgulha-se de representar o Marx pretensamente "autêntico" e "inteiro", contrariamente à historicização de um "duplo Marx" pela crítica do valor; mas precisamente neste ponto é o próprio Marx autêntico quem desmente Heinrich.

Para uma argumentação como a de Heinrich, o valor ou a objectividade do valor é idêntico ao valor de troca, isto é, relacionamento mútuo das mercadorias na relação entre "forma do valor relativa" e "forma equivalente", sendo que esta última "representa" o valor de troca da primeira na sua forma natural, até à constituição do dinheiro como a "forma equivalente geral" (a "mercadoria à parte" que assume essa forma de representação para todas as outras mercadorias). Mas se o valor, a objectividade do valor ou a "forma valor" é idêntico ao valor de troca, nesse caso o valor realmente é apenas constituído na circulação, como "forma do valor" no sentido da relação mútua de mercadorias. Neste caso o valor não "é" outra coisa senão essa relação, e uma mercadoria única não pode existir como tal sozinha – os produtos no fim do processo de produção, por exemplo no armazém da fábrica, ainda não seriam mercadorias no sentido da forma do valor, mas primeiro meros bens de uso, que apenas pela venda no mercado podem afinal assumir a forma do valor e com ela a forma da mercadoria. Heinrich di-lo de modo bem explícito: "A objectividade do valor nem sequer é uma qualidade que uma coisa possa possuir isoladamente, por si só. A substância do valor que está na base desta objectividade não chega às mercadorias a título individual, mas apenas em comum e na troca" (Heinrich, ibidem, p. 51).

Ora, esta não é nem por sombras a argumentação de Marx. Já não o é dum ponto de vista puramente lógico ou "metódico", visto que nesse caso a determinação da essência "valor" seria idêntica à forma de aparência "valor de troca", ou seja, a essência e a aparência seriam imediatamente coincidentes (o que é, de resto, típico do pensamento pós-moderno, que precisamente por isso passa sistematicamente a milhas da problemática da constituição socio-histórica). Marx, pelo contrário, estabelece a diferença entre a essência e a aparência, na qual ele vê fundamentada, antes de mais, a necessidade da reflexão teórica: "... toda a ciência seria supérflua se a forma de aparência e a essência das coisas fossem imediatamente coincidentes" (Karl Marx, Das Kapital [O Capital], vol. III, Berlim 1965, MEW 25, 825). Por isso, Marx volta sempre a fazer referência à diferença decisiva "entre todas as formas de aparência e o seu pano de fundo oculto. As primeiras reproduzem-se de modo imediatamente espontâneo, como formas do pensamento usuais, o outro tem de ser primeiro descoberto pela ciência" (O Capital, vol. I, MEW 23, p. 564).

Como é perfeitamente óbvio, Heinrich, ao fazer coincidir imediatamente a essência e a aparência, o valor ou objectividade do valor e o valor de troca, satisfaz-se com o que se "reproduz espontaneamente", com as "formas do pensamento usuais". Fica colado à forma de aparência e perde de vista o seu "pano de fundo oculto", e assim neste ponto de certo modo se revela publicamente como um economista vulgar marxista. Marx, pelo contrário, reflecte de modo perfeitamente claro, no que diz respeito ao trabalho abstracto e ao valor, a diferença em relação à forma de aparência do valor de troca. Partindo primeiro deste último, ele demonstra precisamente a impossibilidade de explicar a forma de aparência por si mesma: "O valor de troca parece, por isso, algo de fortuito e puramente relativo, um valor de troca interior, imanente à mercadoria... ou seja, uma contradictio in adjecto" (MEW 23, p. 51).

Na equiparação das diversas mercadorias existentes no mercado, porém, está implícita a sua substância comum, isto é, algo de comum que seja inerente a ambas e assim a cada uma por si, e que já tem de existir antes de serem colocadas em relação umas com as outras: "Qual é o significado desta equação? Que algo de comum e da mesma dimensão existe em duas coisas diferentes... Assim, ambas são iguais a uma terceira, que em si e por si não é nem uma nem outra. Cada uma das duas, na medida em que possua valor de troca, terá de poder ser reduzida a essa terceira" (MEW 23, p. 51). Por isso, as mercadorias como objectividades do valor "são", já antes da troca, "gelatinas" do "dispêndio de força de trabalho humano sem olhar à forma do seu dispêndio. Essas coisas já apenas representam que na sua produção foi despendida força de trabalho humano, acumulado trabalho humano. Como cristais desta substância social que lhes é comum, são valores – valores de mercadoria" (ibidem, 52). São-no, portanto, já como valores, não tão-só como valores de troca, mas já como objectos e resultados da produção, não apenas da circulação. Por isso, o valor e o valor de troca não são imediatamente idênticos; o valor é a determinação da essência, o valor de troca, a sua forma de aparência: "O elemento comum que se apresenta na relação de troca ou no valor de troca da mercadoria é portanto o seu valor. A continuação do inquérito trar-nos-á de volta ao valor de troca, como expressão ou forma de aparência necessária do valor, o qual no entanto primeiro tem de ser examinado independentemente desta forma" (ibidem, 53).

Precisamente isso, a saber, examinar primeiro a "forma valor" independentemente da sua "forma de aparência valor de troca", é tão impossível a Michael Heinrich como a todo o marxismo tradicional e a toda a economia vulgar burguesa. Todos eles consideram o valor apenas como valor de troca, apenas como um fenómeno que ocorre na relação mútua de mercadorias diversas. Marx, pelo contrário, diz expressamente que semelhante consideração é reduzida e verdadeiramente errada: "Se, no intróito do presente capítulo, se disse da maneira usual: a mercadoria é valor de uso e valor de troca, tal foi, rigorosamente falando, errado. A mercadoria é valor de uso ou objecto de uso e ‘valor’. Ela apresenta-se como o duplicado que ela é, mal o seu valor possua uma forma de aparência própria diferente da forma natural, a forma de valor de troca, e ela nunca possui esta forma quando observada isoladamente, mas sempre apenas na relação de valor ou de troca com uma segunda mercadoria diferente. Mas, uma vez que se saiba isso, o referido modo de falar não traz nenhum prejuízo, mas serve de atalho" (MEW 23, p. 75).

A mercadoria em si, também já a título individual, "é", portanto, objectividade de uso e objectividade de valor; esta última, porém, apenas "aparece" ("se apresenta") na relação de troca. Mas, para que algo possa aparecer ou apresentar-se, tem de existir em si. Por isso, Marx ainda remata reforçando: "A contradição interna envolvida na mercadoria, entre valor de uso e valor, é portanto representada por uma contradição externa, isto é, pela relação entre duas mercadorias" (MEW 23, p. 75). Cada mercadoria individual já contém em si a contradição interna entre o valor de uso e o valor, mas esta apenas pode ser "representada" pela contradição externa da relação entre a forma do valor relativa e a forma equivalente, na relação de troca. Em Heinrich, pelo contrário, a contradição interna nem sequer existe, subsistindo apenas a externa; ele confunde a "representação" da coisa com a própria coisa, a essência com a forma de aparência. Assim sendo, não sabe ou não quer saber o que Marx pressupõe de conhecimentos para que o "modo de falar" do valor de troca "não (traga) nenhum prejuízo"; e é por isso que em Heinrich não deixa de trazer prejuízo, nomeadamente o da banalização da análise conceptual de Marx.

O valor é a objectividade social da mercadoria, também da mercadoria individual, da mercadoria antes e independentemente da relação de troca secundária, na qual, sob condições capitalistas, o fenómeno do valor de troca na forma equivalente geral do dinheiro é idêntico à realização da mais-valia, isto é, ao regresso do capital à sua forma de dinheiro quantitativamente acrescida. O valor e a mais-valia, porém, já são determinações da essência da mercadoria como objectividade do valor antes desta "realização" (na medida em que a mercadoria está desde sempre determinada como a forma específica da riqueza das sociedades capitalistas), realidade que em nada se altera quando essa realização não ocorre – o carácter de valor da mercadoria, nesse caso, manifesta-se em que seja escusadamente tratada como lixo em vez de consumida, o que só é possível precisamente pelo facto de a sua essência social consistir a priori na objectividade do valor, e não na objectividade da necessidade.

A mercadoria individual é objectividade do valor, não no sentido quantitativo contabilizável isoladamente, que – como se pretende demonstrar adiante – apenas é determinado na média social, mas em sentido qualitativo, como coisa social individual, como coisa de valor. Esta não é uma determinação jurídica, política ou de outra dominação externa (a relação jurídica, interpretada erroneamente como relação de vontades apenas subjectivas, no entendimento do marxismo tradicional, só pode aparecer reduzidamente como exterior), mas a determinação da essência interna da própria mercadoria, quer chegue à troca ou não. Precisamente por isso a objectividade da mercadoria é o fantasmático, o oculto, o que não é imediatamente visível no corpo da mercadoria, como Marx deixa claro logo no início da sua análise da forma do valor: "A objectividade do valor das mercadorias distingue-se de Mrs. Quickly pelo facto de não se saber onde apanhá-la. Exactamente ao contrário da sensivelmente grosseira objectividade dos corpos das mercadorias, nem um átomo de matéria natural integra a objectividade do seu valor. Por isso, podemos olhar para uma mercadoria individual do ângulo que quisermos, que ela continua a não ser apreensível como coisa de valor. Mas se nos recordarmos de que as mercadorias só possuem objectividade de valor na medida em que são expressão da mesma unidade social (o trabalho humano), de que a objectividade do seu valor é puramente social, também vai de si que ele apenas possa aparecer na relação social de mercadoria para mercadoria" (MEW 23, p. 62).

A mercadoria individual é qualitativamente na sua essência uma coisa de valor, mas como tal "não é palpável" em termos sensíveis. Ao reduzir o problema da objectividade do valor, à laia da economia vulgar, à "palpabilidade" aparente na "relação social de uma mercadoria para com outra", Heinrich anda à volta do carácter fantasmático da objectividade da mercadoria, refugiando-se na plausibilidade aparente da esfera da circulação. É um facto que ele pressente que tal abre uma brecha na sua argumentação, nomeadamente no que se refere à produção, e neste aspecto ele tenta fugir ao assunto como um paralítico, depois de fazer uma breve referência a que segundo Marx o carácter de valor das coisas "já é relevante na sua produção". Heinrich interpreta este facto da seguinte maneira: "O facto de o valor ‘ser relevante’, de o valor futuro ser aquilatado pelos produtores, no entanto, é diferente de dizer que o valor já existe" (Heinrich, ibidem, 53 s.). Com isso, porém, o valor, a objectividade do valor, é estabelecido como algo completamente exterior à produção, como o pensamento meramente subjectivo de algo de "futuro" que se supõe apenas ocorrer na esfera da circulação.

O Marx "autêntico", por sua vez, diz precisamente o contrário. Ele divide a sua análise do processo de produção em dois subcapítulos, nomeadamente o processo de produção como processo de trabalho (MEW 23, p. 192) e como processo de valorização (MEW 23, p. 200). Na transição para este último, diz: "Com efeito, como aqui se trata da produção de mercadorias, até agora evidentemente apenas observámos um lado do processo. Tal como a própria mercadoria é a unidade entre valor de uso e valor, o seu processo de produção deve ser a unidade entre os processos de trabalho e de constituição de valor" (MEW 23, p. 201). Longe de situar a objectividade do valor apenas para lá do processo de produção, na sua forma de aparência da esfera da circulação, Marx entende o próprio processo de produção como um processo de constituição de valor. O que ainda é objecto de uma referência explícita em outro trecho: "Todo este percurso, a transformação do seu (do capitalista, R.K.) dinheiro em capital, ocorre e não ocorre na esfera da circulação. Através da mediação da circulação, uma vez que depende da compra da força de trabalho no mercado das mercadorias. Não na circulação, uma vez que esta é um mero prelúdio do processo de valorização, que se desenrola na esfera da produção" (MEW 23, p. 209). Na circulação, a constituição de valor apenas se processa na medida em que a circulação cumpre um papel "mediador", através da compra da mercadoria força de trabalho no mercado de trabalho. A relação entre produção e circulação afinal é cruzada; a qualquer produção precedem actos de circulação e a qualquer circulação precedem actos de produção. A constituição do valor como tal, porém, claramente não se processa na circulação, mas na esfera da produção. O processo de produção é um processo de constituição de valor, e no caso do capitalismo até o é de um modo essencial. Que a sua "validade" quantitativa apenas se realize na média de todo o processo social de produção e circulação (realização) não altera em nada esse facto.

Com esta definição da mercadoria individual já como objectividade do valor e do processo de produção como processo de constituição do valor também não estamos perante uma chamada "teoria do valor pré-monetária" (um conceito forjado por Hans-Georg Backhaus no debate do conteúdo conceptual da análise da forma do valor de Marx), ou seja, a presunção de uma relação de valor anterior à relação do dinheiro e independente desta em sentido histórico. Como é sabido, Marx começa explicitamente com o conceito de mercadoria como a forma de riqueza nas sociedades capitalistas modernas – as suas deduções são essencialmente lógicas e não históricas. Por isso o dinheiro sempre já está pressuposto, não só como equivalente geral, mas como forma do capital, como fim-em-si processante e como forma de realização da mais-valia. Trata-se de explicar isto, já pressuposto, em passos dedutivos lógicos; não de deduzir a génese histórica do dinheiro de uma relação de valor pré-monetária.

Tal é precisamente o pressuposto do capital, ou seja, da forma do dinheiro reacoplada a si mesma como processo de valorização, que faz do processo de produção já um processo de constituição de valor, e do produto individual como mercadoria já objectividade do valor; fora da forma de reprodução capitalista e portanto da forma do dinheiro já plenamente desenvolvida tal não aconteceria de modo nenhum. A mercadoria individual já é a priori objectividade do valor, só porque a produção é desde logo um processo de valorização, visando unicamente a realização da mais-valia incorporada. Tal como o Homem socializado no capitalismo já é sempre a priori um sujeito do dinheiro, independentemente de em dado momento estar de facto a puxar pela carteira ou por um cheque, a mercadoria produzida de modo capitalista já é sempre objectividade do valor, independentemente de em um dado momento estar de facto a ser vendida no mercado.

Heinrich não pode portanto invocar Marx de modo nenhum. Porém, o que está aqui em causa não é a letra de uma ortodoxia, mas precisamente a coisa em si. E aqui há que dar razão a Marx, em detrimento de Heinrich: o valor é produzido, é uma relação de produção e não uma mera "relação de validade" na circulação (ainda veremos na segunda parte deste estudo que este aspecto desempenha um papel decisivo na determinação do trabalho abstracto como relação quantitativa, e por isso na teoria da crise).

Mas, se o valor é regularmente produzido, então a mercadoria já antes do seu ingresso no mercado, isto é, na circulação, é uma "objectividade do valor", ou seja, uma "objectividade fantasmática", enquanto não "palpável" como tal na sua forma sensível. No entanto, para podermos compreender o valor em geral, temos de o determinar precisamente sob esta forma fantasmática, que não é imediatamente palpável, e não apenas na forma de aparência do valor de troca.

Eu já tinha tematizado este problema num ensaio de 1987 (Robert Kurz, Abstrakte Arbeit und Sozialismus [Trabalho abstracto e socialismo], in: Marxistische Kritik 4), como "Os dois níveis do conceito de forma do valor" (ibidem, p. 62), tendo descrito o valor de troca, que aparece na relação entre duas mercadorias, ou seja, na relação entre a forma do valor relativa e a forma equivalente, como "forma de uma forma": a forma social em si é a forma do valor no sentido da objectividade do valor da mercadoria individual, cujo valor foi "produzido" na esfera da produção. Esta forma essencial, que não é "palpável" na mercadoria individual, a "forma valor", "aparece" na forma secundária do valor de troca, e nessa medida como (aparente) "forma da forma" (da forma essencial "valor"). Ou seja, de acordo exactamente com a apresentação da questão em Marx, ainda que o problema não seja explícito em Marx, no sentido da confrontação com os neomarxistas com um toque pós-moderno como Heinrich; talvez por Marx não ter sido capaz de imaginar algo como um economista vulgar marxista.

Ora esta definição da "forma de uma forma" parece hoje totalmente incompreensível também a um marxista tradicional anticrítico do valor como Alexander Gallas: "... ‘forma de uma forma’?... Estes disparates pelos vistos não são um produto do desmazelo, mas sintoma de um problema de peculiaridade crítica" (Alexander Gallas, Marx als Monist? Versuch einer Wertkritik [Marx como monista? Ensaio de uma crítica da crítica do valor], trabalho de mestrado, Berlim 2003, p. 23). Tal falta de conceitos, que ainda por cima se arvora em anticrítica, remete para o facto de que, tanto para os marxistas tradicionais como para os neomarxistas (em especial para os tais com enriquecimentos pós-modernos), muito ao contrário de Marx, não existe diferença entre forma da essência e forma da aparência, entre valor e valor de troca; eles permanecem agarrados à superfície do conceito circulatório de valor de troca, uma vez que não querem entender o conceito de trabalho abstracto como apriori do processo de reprodução, mas apenas como uma "abstracção da troca" secundária.

O trabalho abstracto é precisamente um prius [antes], não apenas no sentido de, como momento do próprio processo de produção no sentido de um processo real de constituição de valor, ser anterior à abstracção da troca que aparece na circulação, ou seja, não apenas como prioridade de uma determinada esfera particular, da produção, face a uma outra esfera particular, da circulação. Pelo contrário, a determinação como apriori social do trabalho abstracto é uma determinação da totalidade (totalidade designa aqui a reprodução determinada pela forma capitalista como um todo em sentido mais restrito, que no entanto não é idêntico à reprodução total real, a qual também inclui sempre outros momentos dissociados [abgespaltene]). Isto significa que o trabalho abstracto se estende a todo o processo de reprodução capitalista, como força motriz da abstracção do valor. O que "aparece" no valor de troca da esfera da circulação é a pré-processsada objectividade do valor das mercadorias, em que se manifesta o trabalho abstracto, que define o próprio processo de produção. Trabalho abstracto e objectividade do valor não são mais que diversos estados de agregação da única e mesma abstracção real, em que se movem o processo de reprodução determinado pela forma capitalista e a respectiva história; dos quais o valor de troca é a forma de aparência quotidiana, aparentemente sem história.

O que é abstracto e real no trabalho abstracto?

Evidentemente os marxistas tradicionais, na discussão com a crítica do valor, perceberam entretanto que aqui há coisa, e entenderam que com a sua conceptualidade facilmente lhes poderia ser provada uma limitação da crítica do capitalismo à esfera da circulação, quando sempre pensaram ter uma concepção clara do capitalismo como "relação de produção". Na sua aflição tentaram uma vez mais esconder-se atrás do "Marx marxista do movimento operário", ou seja, o Marx ontológico do trabalho, embaraçado numa aporia. Gallas, por exemplo, tenta evitar a crítica da ontologia do trabalho procedendo a uma paráfrase. Segundo esta, embora exista a dimensão transhistórica, "antropológica" do trabalho, isso de modo nenhum positiva ontologicamente o processo de produção capitalista, diferentemente da esfera da circulação. Tal suposição revela-se "injustificada face à existência de um Marx em "O Capital" que pensa em conjunto dimensões transhistóricas e historicamente específicas no conceito de trabalho. Esse Marx distingue entre a ‘forma social’ e o ‘conteúdo’ ‘material’, isto é, antropológico (O Capital, vol. I, p. 50) de fenómenos da convivência humana. Assim ele observa que ‘o trabalho... é uma condição existencial do Homem, independente de todas as formas de sociedade’ (O Capital, vol. I, p. 57) para logo colocar em destaque a sua especificidade no capitalismo: ‘O operário trabalha sob o controlo do capitalista, ao qual o seu trabalho pertence’ (199). Com isso, Marx demonstra o entrosamento funcional entre realidades naturais e relações devidas a contextos históricos: a produção no capitalismo também tem uma função antropológica..." (Gallas, ibidem, p. 15). Segundo Gallas, a crítica do valor aqui mistura alhos com bugalhos, supondo que a posição tradicional, por atribuir um estatuto antropológico ao trabalho, tem "um entendimento dualista do objecto. Tal, no entanto, não é compatível com o conceito de trabalho do Marx supracitado. A forma capitalista e o conteúdo antropológico do trabalho, segundo ele, não existem independentemente um do outro. Nesse caso, porém, está excluído que o trabalho e o capital sejam percebidos como princípios estruturais sociais mutuamente contraditórios" (Gallas, ibidem, p. 16). Assim seria incorrecta a opinião dos críticos do valor, "segundo a qual com os ataques a um entendimento dualista do objecto foram atingidas todas as formas de crítica da economia política cujo conceito de trabalho não corresponda ao preconizado pela crítica do valor" (ibidem, p. 16); com isso teriam construído "um ‘espantalho’ chamado ‘marxismo tradicional’..." (ibidem, p. 17).

Segundo Gallas, portanto, podemos ter um conceito de trabalho ontológico e transhistórico ou "antropológico", e ainda assim entender com Marx o "trabalho no capitalismo" como historicamente específico; os elementos "antropológico" e historicamente específico teriam simplesmente de ser "pensados em conjunto" no cruzamento. E isso então não seria de modo nenhum um "entendimento dualista do objecto", no sentido de uma ontologia da produção ou do trabalho concreto, por um lado, e de uma especificidade histórica da circulação ou do trabalho abstracto, por outro.

Ora acontece que, em primeiro lugar, já ficou demonstrado que não só um marxismo do movimento operário de uma proveniência especialmente grosseira, por exemplo social-democrata ou leninista, releva de semelhante entendimento "dualista", mas também precisamente o exigente marxismo ocidental e até marxistas académicos de hoje como Heinrich, com a sua explícita teoria da circulação do trabalho abstracto e do valor. Em segundo lugar, também a argumentação do próprio Gallas, com a qual ele tenta justificar um entendimento não dualista da ontologia do trabalho e da especificidade histórica, em grande medida representa a prova do contrário. É que, se Gallas diz que Marx distingue entre a "forma social" e o "conteúdo" "material", isto é, antropológico de "fenómenos da convivência humana", afinal estamos precisamente perante esse dualismo, porque se o conteúdo material da produção e da reprodução é "antropológico", o momento historicamente específico da "forma social" já apenas pode referir-se ao modo de distribuição e à esfera da circulação.

A única coisa que Gallas indica de facto com referência a Marx, como característica historicamente específica da própria produção, é a referência ao facto de o operário "trabalhar sob o controlo do capitalista", ao qual "o seu trabalho pertence". Mas precisamente com isso ele não aponta qualquer lógica interna da própria produção material, mas apenas uma relação de dominação regida pela vontade subjectiva e de apropriação jurídica, entendidas de modo meramente exterior. Ou seja, tudo como dantes; o suposto cruzamento não dualista de momentos "antropológicos" com outros especificamente históricos no próprio processo de produção dissolve-se no ar, e o que resta é justamente esse entendimento "dualista" de uma dominação da classe capitalista, mediada apenas exterior e subjectivamente, neste sentido reduzido jurídico e circulatório, sobre a "eterna" e positivada produção material, de "conteúdo material". Trata-se, portanto, de publicidade enganosa quando, com um entendimento assim reduzido, se faz de conta que este implica uma crítica do trabalho no sentido de uma relação historicamente específica.

Neste sentido, de resto, também é típico o operaismo, que desligou por completo as características especificamente capitalistas do trabalho da determinação da forma abstracta e da fetichização e as ligou de modo extremamente reduzido à pura e simples relação de vontade de uma pretensão de controlo meramente exterior da "classe dos capitalistas"; e esta atitude vai até à desistência total da crítica da economia política, em benefício de uma relação de dominação pretensamente já apenas "política" sobre a produção (o que é especialmente evidente em Antonio Negri).

Agora põe-se evidentemente a questão, de que modo o trabalho abstracto se manifesta então na prática como apriori social no processo de produção. No processo de troca é a abstracção do carácter sensível e material das mercadorias, o seu tratamento prático como coisas de valor na compra e na venda, como abstracção não meramente conceptual, mas como acção social prática, o que perfaz a abstracção real. Ora, como é que se apresenta esta abstracção real no próprio processo de produção? Afinal aqui não parece existir outra coisa senão o trabalho concreto, a transformação programada de substâncias naturais; no entanto, e como já se demonstrou, o conceito é paradoxal e uma contradição em si mesmo.

Marx fala, neste contexto material e sensível, da "forma" do trabalho como trabalho de marceneiro ou de tecelão. Mas esta forma referida à matéria é outra que não a forma social. O trabalho concreto como "forma", por exemplo, do trabalho de um marceneiro, refere-se ao fabrico de, por exemplo, móveis de madeira. Mas a forma social do trabalho é, neste contexto, forma abstracta, isto é, o trabalho despendido na forma concreta e referida à matéria como trabalho de marceneiro é válido socialmente apenas como uma determinada massa de trabalho abstracto, de energia humana em geral (de "nervo, músculo e cérebro"). Esta "validade", porém, não se encontra apenas na circulação, sendo também decisiva como determinação abrangente para o próprio processo de produção; e nem se trata de uma mera "validade" no sentido de uma percepção formal (como na circulação), mas de uma marcação prática.

O fantasmático da objectividade do valor já se encontra no processo da sua produção, como a fantasmagoria do próprio processo de produção. Tal como na mercadoria acabada a sua objectividade de valor ainda não é "palpável" de modo imediato e sensível, porque não passa de uma determinação da forma social abstracta, também no processo de produção como tal a sua função de processo de constituição de valor não é "palpável" de modo imediato e sensível, pelo menos não à primeira vista, nem para um indivíduo socializado no interior desta forma social. "Há" aparentemente apenas o trabalho concreto, a transformação determinada em termos materiais e sensíveis da matéria. Mas esta não é o que parece ser, sendo apenas expressão ou forma de aparência de algo diferente. Trata-se aqui essencialmente não do fabrico de móveis com a finalidade da habitação, mas sim da constituição de valor com a finalidade da valorização.

Nesta medida, aqui no processo de produção, o trabalho não "é valido" como aquilo que parece ser, nomeadamente um processo concreto de fabrico de móveis, mas como um dispêndio de força de trabalho abstracto puro e simples, um processo de dispêndio de nervo, músculo e cérebro (a optimizar económico-empresarialmente). Este é um ponto de vista bem prático, que afecta todo o modo de organização da produção e acaba por dominá-la. É também por isso que os critérios operacionais e o regulamento económico empresarial são abstractos e universais, completamente independentes do conteúdo concreto da produção. Em nome da determinação da forma social abstracta (valor) também se abstrai na prática da forma concreta do processo de produção, no sentido do conteúdo material (conteúdo da produção de móveis = "trabalho" sob a forma da marcenaria, etc.). A coisa concreta, a marcenaria, na prática vale como "trabalho", uma mera expressão do dispêndio de energia humana puro e simples. E esta abstracção real tinge tanto a transformação da matéria em termos concretos como o seu resultado, e de modo destrutivo.

Como já ficou demonstrado, no capital a relação entre o abstracto e o concreto está posta de pernas para o ar; o concreto, o mundo real sensível, variado, já apenas passa por uma forma de aparência do abstracto, nomeadamente da determinação da essência totalitária e única do valor. Seja lá o que for, é sempre valor – ou está destinado a vir a sê-lo. O olhar do sujeito da valorização sobre o Homem e a natureza apenas os vê como objectos da valorização, e é isto que determina a acção prática. O trabalho concreto e o trabalho abstracto são precisamente o mesmo trabalho, reunidos na abstracção "trabalho" como abstracção real: "Todo o trabalho é, por um lado, dispêndio de força de trabalho humano no sentido fisiológico, e nesta qualidade de trabalho humano igual ou trabalho humano abstracto constitui o valor da mercadoria. Todo o trabalho é, por outro lado, dispêndio de força de trabalho humano na forma específica da finalidade definida, e nesta qualidade de trabalho útil concreto produz valores de uso" (MEW 23, p. 61). No entanto, em primeiro lugar "todo o trabalho" aqui apenas se refere ao trabalho moderno, que decorre nos moldes do capitalismo, e não "todo o trabalho" em sentido transhistórico (como claramente decorre do contexto em Marx). E, em segundo lugar, o "por um lado – por outro lado" não é de modo nenhum equilibrado. O lado concreto não só não pode ser separado do abstracto, como até lhe está subordinado. Por outras palavras: o valor de uso é apenas uma forma de representação ou forma de aparência do valor, o trabalho concreto é apenas uma forma de representação ou forma de aparência do trabalho abstracto. O que é abrangente é a abstracção "trabalho" como abstracção real (e, para uma vez mais o sublinhar, só no contexto de tal relação real é que a abstracção nominal conceptual "trabalho" faz de algum modo sentido, como conceito de uma generalidade social).

O trabalho concreto, pela sua essência social no fundo "é" trabalho abstracto, embora este não seja imediatamente "palpável" enquanto tal, assim como a forma sensível da mercadoria é autenticamente a objectividade do valor, embora igualmente não de imediato "palpável" enquanto tal. Este conceito de "não palpabilidade", no entanto, não designa mais que a aparência como aparência; afinal trata-se ainda assim e através da sua mediação de "registar", através do esforço de análise, por decifração, o que está oculto no fundo das coisas. No entanto, isto é válido não só no sentido de uma reconstrução teórica, mas ao mesmo tempo como denominação de um facto realmente vivenciado, realizado em termos práticos, cujo carácter contudo não se manifesta de imediato. A crítica como consequência da análise não é outra coisa senão a determinação consciente do há muito vivenciado na realidade e sabido em termos práticos, que agora através da reflexão é mergulhado numa luz reveladora, em que se tornam visíveis as suas mediações.

Ora em que consistem as mediações práticas, nas quais o trabalho concreto pode ser decifrado como mera forma de aparência do trabalho abstracto? Isto diz respeito desde logo ao espaço em que decorre o processo de produção. Tal como na produção aparentemente estamos perante processos de transformação da matéria perfeitamente inocentes, assim no caso desse espaço, por exemplo um pavilhão de fábrica, nos confrontamos aparentemente com um edifício funcional perfeitamente inocente. Mas o espaço de produção não é apenas material no sentido deste edifício funcional, mas é um espaço social, cujo carácter é tão-pouco "palpável" em termos imediatos como o da objectividade do valor.

O espaço social da produção capitalista é o espaço funcional da economia empresarial, um lugar social específico, que não se determina essencialmente pela sua forma material, mas pela sua função social, como espaço da valorização do valor (daí é que decorre a sua forma material, e não ao contrário). A determinação funcional deste espaço "abstrai" de todas as outras realizações da vida e necessidades exteriores à determinação económica de ser um local destinado à realização do processo de constituição do valor; e nesta medida esse espaço constitui uma parte integrante da abstracção real. Trata-se de um espaço totalmente "desvinculado" [heräusgelost] de todo o processo da vida, mais ou menos no sentido em que Karl Polanyi falou, com um termo bem escolhido, de uma "economia desvinculada" (mesmo que o tenha feito em parte com outra conotação, e não referindo-se ao problema do trabalho abstracto).

Esta "desvinculação" foi também um processo histórico, estreitamente ligado à revolução militar dos primórdios da modernidade, à inovação das armas de fogo e à daí decorrente "desvinculação" da máquina militar face à sociedade (exércitos permanentes, absolutismo, estado burocrático unificado, etc.), que por seu lado trouxe consigo a insaciável fome de dinheiro dos primeiros regimes despóticos militares apoiados nas armas de fogo, a monetarização das taxas feudais, e por fim, após passar por vários graus intermédios (manufacturas estatais, indústrias agrárias baseadas em mão-de-obra escrava, etc.), a transformação da população em uma massa homogénea de material de valorização do trabalho abstracto (essa "totalidade da força de trabalho nacional" que também foi ontologizada e positivada pelos marxistas no contexto da modernização recuperadora). A história de disciplinação inerente a tudo isto através de casas de trabalho, casas de correcção e manicómios, ou através de "campos", descritos por exemplo por Marx no capítulo dedicado à "acumulação primitiva" ou nos escritos de Foucault e Agamben, enquadra-se na constituição do desvinculado espaço funcional da economia empresarial.

O que nas palavras de Marx diz respeito ao dinheiro também se aplica à constituição deste espaço desvinculado: "O movimento mediador desaparece no seu próprio resultado e não deixa rasto" (MEW 23, p. 107). O Homem moderno encontra o espaço regido pela economia empresarial como uma forma acabada, cujo carácter desvinculado sente, mas já não sabe denominar. É o espaço em que, como diz o jovem Marx, "não está consigo, mas fora de si"; e não é no sentido exterior e jurídico do conceito de propriedade, mas pela funcionalidade específica deste espaço para o processo de constituição de valor. A separação da produção de todas as outras áreas da vida (por exemplo a residência, a vida conjugal, o acompanhamento dos filhos, o jogo, a cultura, etc.) não é de modo nenhum per se devida ao facto de se tratar de uma produção não destinada ao consumo próprio, mas para outros, ou seja, de produção social. A dissolução do contexto de vida em que a produção estava incluída não se deve à passagem à produção social como tal, mas à passagem à valorização do valor. Somente a usurpação do espaço social pela abstracção real do valor e do trabalho abstracto criou o espaço funcional da economia empresarial desvinculado, como um espaço social fantasmático, para lá de toda e qualquer sociabilidade.

Ao ter-se constituído como espaço funcional abstracto, desvinculado, o trabalho abstracto também apresenta uma conotação sexual. A dissociação [Abspaltung] de todas as outras áreas da vida e momentos de relacionamento (afecto pessoal, sentimentos, etc.) da produção como processo de constituição de valor e de valorização conota como "femininos" tanto os momentos dissociados como a natureza entregue à moldagem [Zurichtung] da economia empresarial, o que conduziu a atribuições e "competências" correspondentes das mulheres (exposto exaustivamente em Roswitha Scholz, Das Geschlecht des Kapitalismus [O Sexo do Capitalismo], Bad Honnef 2000; cf. a este respeito também a observação correspondente de Christian Höner na polémica com Nadja Rakowitz nesta edição da EXIT!). À abstracção real do trabalho abstracto no processo de produção encontra-se portanto ligada a dissociação do feminino, de um modo essencial e não apenas acidental. Tal corresponde igualmente à raiz histórica do trabalho abstracto, nomeadamente ao cruzamento da "economia desvinculada" com a "desvinculada" máquina militar apoiada nas armas de fogo, no processo de constituição primordial da modernidade.

O trabalho abstracto é per se definido como estruturalmente masculino, mesmo que desde o início tenha existido uma inegável participação das mulheres no processo de produção. O facto de as mulheres receberem sistematicamente salários piores, chegarem a posições de chefia apenas em casos extremamente raros, terem de dar muito mais "rendimento" que os homens para serem reconhecidas, etc., todos estes factos, que em média ainda hoje se verificam, não podem ser remetidos para o plano das manifestações históricas e empíricas, nem porventura declarados como meros resquícios de relações pré-modernas, ou como o seu regresso meramente subjectivo e regressivo, mas são expressão da relação de dissociação, como marca essencial do próprio trabalho abstracto e do seu espaço funcional da economia empresarial.

A opinião contrária, que erroneamente interpreta a relação entre a dissociação e a assimetria sexual na modernidade como mero momento histórico e empírico com tendência a desaparecer, está no fundo associada à interpretação errónea da abstracção real como mera "abstracção da troca", que no caso contudo e para variar se apresenta de repente como uma relação positiva e progressiva. É que, com efeito, na circulação observada por si só não existe a dissociação como momento da abstracção real; aqui só conta a solvabilidade, sem olhar a sexo, idade, cor da pele, etc. A circulação é por isso, e como é sabido, o eldorado da ideologia burguesa do progresso e da liberdade, embora esta implique a concorrência e a desumanização dos não solventes. Mas mesmo a concorrência de extermínio e a desumanização dos perdedores são executadas de acordo com a especificidade da esfera da circulação sob a forma do universalismo abstracto: sem ruído, sem olhar à pessoa e com um "reconhecimento" educado, no sentido da igualdade de direitos entre proprietários de mercadorias. As pessoas incapazes de concorrer ou de pagar nem sequer existem para a lógica da circulação. É também aqui que se enquadra o aparente desaparecimento da determinação sexual.

Mas evidentemente a esfera da circulação e do direito nem sequer pode ser observada por si só, e nesta medida a liberdade abstracta que aqui vigora é mera aparência em sentido duplo: primeiro, tem por base as determinações repressivas da actividade reprodutiva no metabolismo da sociedade com a natureza e consigo mesma; e, segundo, com isso ela é também no sentido circulatório apenas "liberdade" no sentido de Orwell, nomeadamente como relação auto-repressiva, como auto-sujeição formal à lógica do trabalho abstracto. Vista em conexão com o trabalho abstracto da esfera da produção, com as respectivas determinações em matéria de sexo e sujeição, e do ponto de vista da totalidade do processo, a esfera da circulação, com a sua "abstracção da troca", é ela própria algo completamente diferente do que parece quando observada em si de modo superficial e isolado, nomeadamente é em termos objectivos a esfera da realização da mais-valia e, em termos subjectivos, a esfera de execução da relação de coacção no plano formal das condições de relacionamento burguesas.

Neste aspecto surge outra contradição gritante do marxismo tradicional: por um lado, ele reduz a relação historicamente específica do capital à regulação pela esfera da circulação (mediação do mercado), o trabalho abstracto a uma mera "abstracção da troca", a relação de dominação a uma relação de distribuição das mercadorias e a "relação de produção" ao conceito jurídico exterior de propriedade. Haveria portanto que abolir a esfera da circulação ou a "abstracção da troca" como forma de mediação especificamente capitalista. Por outro lado invoca, nomeadamente evocando a "herança do Iluminismo", o idealismo da esfera da circulação, do qual nasce o postulado da igualdade, que de algum modo (talvez pela "democratização") deverá ser estendido à produção. Esta aporia encontra-se, de resto, de um modo especialmente vincado em Adorno, que neste ponto permanece inteiramente preso ao modo de pensar do marxismo tradicional.

O que aqui escapa fundamentalmente é o nexo interior da abstracção real, como relação de mediação do trabalho abstracto no processo de produção, e a sua realização ou "representação" como forma do valor ou "abstracção da troca" no processo de circulação, incluindo as determinações jurídicas concomitantes de uma "individualidade abstracta" aparentemente assexuada. Uma coisa condiciona a outra. Assim sendo, nem a circulação pode ser abolida sem se abolir o trabalho abstracto como lógica da produção, nem inversamente a igualdade ideal formal dos sujeitos abstractos pode ser estendida da circulação para a produção e a reprodução, porque aqui o mesmo processo de abstracção real se apresenta necessariamente de outro modo, nomeadamente como comando sobre a força de trabalho com conotação sexual; e o mesmo se aplica, debotando da esfera funcional da economia empresarial "desvinculada", a todas as instituições sociais do conjunto da estrutura da socialização do valor, até ao interior do mundo da vida quotidiana.

Tudo se passa de modo perfeitamente semelhante ao caso do soldado como pessoa civil (o que corresponde ainda à raiz histórica da "economia desvinculada"): nesta última figura ele é um sujeito do direito e da circulação, livre como todos os outros; na primeira, porém, é objecto do comando, peça de uma máquina, sujeito assassino e, se tiver de ser, carne para canhão. E o carácter estruturalmente masculino de toda a organização aqui apenas está mais vincado, com as mulheres ainda mais difíceis de encontrar que no processo de produção, sem falar das posições de comando (da sua parte, apenas funcionais), etc. O exemplo, que remete para a história da constituição, demonstra ao mesmo tempo o pouco sentido que faria querer reivindicar, por exemplo também sob o aspecto sexual, a igualdade abstracta da esfera da circulação para as outras esferas não suplantadas da reprodução capitalista (porventura até para as forças armadas). Semelhante intenção nada pode ter em si de emancipatório; antes tem de se tratar da suplantação da totalidade da relação composta por trabalho abstracto, dissociação sexual e circulação.

O carácter fantasmático do espaço desvinculado da economia empresarial, como uma esfera funcional realmente abstracta situada para lá do contexto de vida restante, muitas vezes foi sentido e lamentado; e repetidamente foram empreendidas tentativas, tanto na história dos sindicatos como também no movimento social-ecológico mais recente, de renovar o contexto de vida perdido, através da propagação de uma unidade de "vida e trabalho" ou (no sentido mais restrito) de "habitação e produção", etc. Mas tais ideias permaneceram sem conceitos, com respeito ao contexto da forma subjacente do trabalho abstracto e do valor. A integração no mundo da vida devia ocorrer com base nas categorias não questionadas da socialização do valor incluindo a circulação; um esforço à partida condenado ao fracasso.

O mesmo se aplica também às tentativas empreendidas "a partir de cima", através de iniciativas de política empresarial ou da burocracia estatal, no sentido de, por motivos ideológicos ou disciplinares, introduzir à socapa ou acoplar outros momentos do mundo da vida no desvinculado espaço funcional da economia empresarial. Da história das grandes empresas é conhecida a institucionalização de "comunidades de empresa", com as quais se tentava, com bairros sociais, jardins infantis de empresa, clubes de tempos livres internos, etc., vincular em termos de mundo da vida e identitários um corpo privilegiado de operários dos quadros da empresa ao respectivo nome e contribuir para a sua motivação. Se deixarmos de parte o carácter funcionalista deste tipo de medidas, no sentido de uma orientação tanto mais intensa para o processo de produção realmente abstracto e correspondente extorsão de rendimento, elas sempre se revelaram como marginais e transitórias; semelhantes instituições sempre sofreram uma decadência dramática em tempos de crise e hoje, no âmbito da racionalização de recursos e da globalização, são levadas ao desaparecimento mesmo em termos estruturais (um caso exemplar a este respeito é o conglomerado Siemens na RFA).

O mesmo se aplica às comunidades de empresa do "socialismo real", que proliferaram sob o manto protector da burocracia de estado, e nas quais a integração de momentos do mundo da vida foi essencialmente mais forte e mais profundamente enraizada; e tal aconteceu mesmo com ganhos de qualidade de vida e autodeterminação em comparação com o Ocidente, se bem que ensombrados por desaforos burocráticos. Mas foram precisamente estes momentos emancipatórios, de brecha no espaço funcional abstracto da economia empresarial, que tiveram de entrar em conflito com a base real do trabalho abstracto, acabando por conduzir ao fracasso induzido pela manutenção da valorização do valor. No fim de contas estes momentos integradores não estavam concebidos conscientemente como contra-mediação para a suplantação do trabalho abstracto, mas pelo contrário subordinados à sua afirmação; tratou-se, portanto, de meras formas de nicho sob as condições de um sistema dado à modernização recuperadora, onde a regulação dos processos de mercado pela burocracia estatal (que acabaria por não ser viável) em parte abria involuntariamente o espaço funcional da economia empresarial e em parte conferia-lhe a carga ideológica de um território do mundo da vida. Do fracasso foram retiradas consequências, não no sentido de porventura chamar à responsabilidade o trabalho abstracto e encontrar uma perspectiva conducente à sua suplantação, mas pelo contrário no sentido de se compatibilizar o espaço funcional da economia empresarial com a sua definição lógica também em termos práticos e de o "depurar" de todos os momentos do mundo da vida nesse sentido disfuncionais.

Enquanto o trabalho abstracto constituir o apriori da mediação e da reprodução sociais, por si só estabelecerá, sempre de novo e com cada vez maior veemência, o espaço funcional da economia empresarial como um espaço "desvinculado", separado de todos os outros momentos da vida, realmente abstracto. É no fundo este o problema a que se refere Marx no fim do capítulo quarto do primeiro volume de "O Capital", quando define a relação entre a esfera da circulação e a esfera da produção do capital, em relação à mercadoria "força de trabalho": "A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, entre cujas balizas se processa a compra e venda da força de trabalho, foi de facto um autêntico Éden dos direitos humanos inatos. O que aqui vigora é só liberdade, igualdade, propriedade e Bentham. Liberdade! É que o comprador e o vendedor de uma mercadoria, por exemplo da força de trabalho, são movidos unicamente pela sua livre vontade. Contratam como pessoas livres, iguais perante a lei. O contrato é o resultado final em que as suas vontades se dotam de uma expressão jurídica comum. Igualdade! É que ambos se referem um ao outro apenas como proprietários de mercadorias, trocando equivalente por equivalente. Propriedade! É que cada um dispõe apenas do que é seu. Bentham! É que cada um dos dois está apenas preocupado consigo mesmo. O único poderio que os reúne e faz entrar em uma relação é o da sua propriedade, do seu privilégio, dos seus interesses particulares. E precisamente porque assim cada um apenas se move por si e ninguém pelo outro, todos juntos contribuem, em função de uma harmonia das coisas pré-estabelecida ou sob os auspícios de uma providência sumamente previdente, apenas para a obra da sua vantagem mútua, da utilidade comum, do interesse geral" (MEW 23, p. 189 s.).

O mesmo se diga da esfera da circulação, com seu idealismo do sujeito do direito igual e livre. Na continuação da totalidade do processo de reprodução, porém, há que despedir-se da circulação. Por isso, Marx prossegue: "Na despedida desta esfera da simples circulação ou da troca de mercadorias, de onde o livre mercador retira opiniões, conceitos e critérios vulgares para o seu juízo sobre a sociedade do capital e do trabalho assalariado, as fisionomias das nossas dramatis personae já parecem transformar-se sob alguns aspectos. O antigo proprietário de dinheiro avança como capitalista, o proprietário de força de trabalho segue-o como seu operário; um a sorrir misteriosamente e repleto de zelo empresarial, o outro tímido, relutante, como alguém que levou para o mercado a sua própria pele e que agora não pode esperar outra coisa senão – a fábrica de curtumes." (MEW 23, p. 190 s.).

Após o que se disse até aqui, é possível que tenha ficado claro como o marxismo tradicional tem de ler esta exposição, a saber, não precisamente como a relação entre o trabalho abstracto como "abstracção da troca", por um lado, e a lógica realmente abstracta da produção, por outro, mas apenas como uma relação exterior e jurídica entre o capitalista (proprietário dos meios de produção) e o operário assalariado (proprietário da força de trabalho), que nem sequer atinge o conceito de trabalho abstracto como abstracção real. Esta leitura das palavras de Marx bem poderá ter alguma plausibilidade, mas ainda assim ele circunscreveu aqui a relação jurídica à esfera da circulação. O que agora se segue sob a forma da "fábrica de curtumes", não é exactamente a mera exploração subjectiva de uma pessoa portadora de uma vontade jurídica pela outra, a ser entendida como exterior e do foro da distribuição, mas sim o ingresso na esfera funcional realmente abstracta, "desvinculada", do fantasmático espaço da economia empresarial. De certo modo o mesmo se aplica também ao próprio capitalista ou aos funcionários do comando da valorização (gerência, etc.).

Uma vez que o entendimento tradicional do "carácter explorador" do modo de produção capitalista permanece limitado à grosseira definição da apropriação de sujeitos de vontade jurídicos, escapa-lhe sistematicamente o carácter do espaço funcional da economia empresarial. Assim sendo, porém, também tem de lhe escapar a divisão do moderno sistema produtor de mercadorias em esferas de reprodução e funcionais separadas. É que esta divisão apenas é estabelecida pelo facto de se ter constituído o desvinculado espaço funcional da economia empresarial da valorização do valor, que como tal implica o carácter separado de todas as outras áreas da vida em esferas especializadas, mas que ao mesmo tempo se converte no centro que domina todas essas outras "esferas", conferindo-lhes a aparência de "derivadas". Por outro lado, tudo o que não tiver cabimento na lógica do espaço funcional central desvinculado e das suas "derivações" (sobretudo determinadas actividades da reprodução) é deixado por conta da relação de dissociação sexual e assim socialmente conotado com o "feminino".

Esta conexão também se apresenta como desenvolvimento histórico: "A dissociação do valor... não é uma estrutura rígida, como a encontramos por exemplo em alguns modelos estruturais sociológicos, mas sim um processo. Por isso não pode ser entendida como estática e invariavelmente igual a si mesma" (Roswitha Scholz, Das Geschlecht des Kapitalismus [O Sexo do Capitalismo], p. 118). Este processo parece culminar na crise da terceira revolução industrial. Por um lado, na penúria da crise de acumulação e financeira, a lógica do espaço funcional da economia empresarial, em tempos desvinculado, vai-se impondo a todas as esferas dele derivadas da reprodução social: a política, a cultura, a saúde, a educação, etc. perdem a sua própria lógica e são tratadas segundo os critérios de funcionalidade próprios da economia empresarial, ou seja, são submetidos directamente à lógica do trabalho abstracto, o que até à data apenas acontecia indirectamente e em formas derivadas.

Por outro lado, esta expansão da lógica funcional da economia empresarial para além do seu espaço próprio e específico não pode suster a crise, e muito menos pode substituir as actividades reprodutivas dissociadas como "femininas": "Em vez disso ocorre um asselvajamento do patriarcado produtor de mercadorias, em que este se solta das suas amarras institucionais" (Roswitha Scholz, ibidem, p. 133). A dissolução da família tradicional e o desmantelamento das estruturas do estado social não deixam a dissociação de conotação sexual sem objecto, mas antes a agravam. Na mesma medida em que o espaço realmente abstracto, desvinculado, do processo de valorização quer totalizar-se e nisso está necessariamente condenado ao fracasso, os momentos dissociados conotados com o "feminino" estão sujeitos a uma pressão cada vez mais insuportável. O facto de, em resultado, a reprodução social se desmoronar por completo é precisamente a prova prática de que a lógica funcional do espaço da economia empresarial é totalmente inimiga da vida e misantrópica, ou seja, que esse espaço é tudo menos um local neutro, inocente, transhistórico-ontológico de produção "concreta" e material de bens "úteis", apenas desviados para um destino imundo por um poder de disposição jurídico exterior de sujeitos exploradores.

Ao espaço funcional da economia empresarial "desvinculado", realmente abstractificado (separado das necessidades da vida e do mundo da vida), corresponde um tempo igualmente "desvinculado" e abstractificado, por assim dizer o tempo funcional específico do trabalho abstracto. Trata-se aqui de uma forma de tempo ou definição de tempo historicamente específica, que apenas ocorre no moderno sistema produtor de mercadorias. Esta forma de tempo ou definição de tempo é o tempo contínuo [Fliesszeit] astronómico abstracto do Universo mecânico de Newton, em analogia com os idênticos componentes atómicos fisicamente reducionistas desse Universo.

Em termos sociais, é a forma de tempo do descomedimento, isto é, um tempo ilimitado, indefinido, a nada ligado (a dimensão astronómica serve apenas de medida exterior e arbitrária); um tempo contínuo infinito, que apenas serve a pretensão desmedida do "sujeito automático", de uma incorporação infinita de energia humana abstracta, despendida na medida de unidades de tempo igualmente abstractas (segundos, minutos, horas de "trabalho" desvinculadas de qualquer conteúdo), ou seja, a transformação de todo o tempo de vida em tempo de trabalho. Nesta medida, o tempo astronómico contínuo é a medida paradoxal do descomedimento, um tempo insaciável, já não ligado a qualquer necessidade (sempre finita, condicionada); a medida do tempo de um fim-em-si irracional, que já não afere um movimento limitado no tempo para um determinado fim ou processo, mas que funciona como uma correia de tempo infinitamente reacoplada a si mesma, como forma de tempo do infinito movimento de valorização do valor reacoplado a si mesmo. O "trabalho concreto" do processo de produção capitalista não ocorre apenas no espaço funcional da economia empresarial "desvinculado"; também decorre em termos reais segundo a medida desmedida do tempo contínuo abstracto "desvinculado", e não segundo a medida de uma transformação da matéria temporalmente definida (e por essência limitada).

Moishe Postone interessou-se menos pelo carácter específico do espaço "desvinculado" e mais pelo carácter específico da forma de tempo capitalista e também neste âmbito alcançou conhecimentos pioneiros. Ao longo da história da modernização o lúgubre carácter do "tempo abstracto" foi repetidamente tematizado explicita e implicitamente, mas nunca foi referido ao trabalho abstracto e às formas de mediação categoriais da socialização do valor. Postone, apoiando-se em historiadores sociais como Thompson, Gurjevich, Needham, etc., foi o primeiro a distinguir o "tempo concreto", que foi determinante em termos de qualidade do tempo nas sociedades pré-modernas (e que tem de ser de outro modo essencial para uma sociedade pós-capitalista), do "tempo abstracto" da moderna produção de mercadorias: "Como ‘concretos’ designarei os diversos tipos de tempo que dependem de acontecimentos: estes referem-se a ciclos naturais e periodicidades da vida humana, assim como a tarefas ou processos específicos (por exemplo, o tempo que se demora a cozinhar arroz ou a dizer um padre-nosso) e são entendidos através dos mesmos... Antes do advento e desenvolvimento da sociedade capitalista moderna na Europa ocidental foram várias as formas de tempo concreto a marcar as concepções de tempo prevalecentes. O tempo não era uma categoria autónoma, independente de acontecimentos, e por isso era dado a definições qualitativas, como bom ou mau, como sagrado ou profano... O tempo concreto é uma categoria mais ampla que o tempo cíclico, uma vez que existem concepções do tempo lineares que na sua essência são concretas... O tempo concreto é menos caracterizado pela sua direcção que pela circunstância de ser uma variável dependente" (Postone, ibidem, p. 308 s.).

A concepção usual do tempo pré-moderno como meramente cíclico (ligado a estações, ritmos da vida, etc.), aparentemente limitado à forma de reprodução agrária e às respectivas formas de fetiche, em grande medida apenas dá um contributo à crítica da modernidade produtora de mercadorias num sentido reaccionário; pelo contrário, a concepção mais ampla do tempo concreto de Postone é completamente diferente, como "concepção do tempo orientado por tarefas" (ibidem, p. 329), dependente de acontecimentos, não separado daquilo que são os processos finitos no tempo (seja ele cíclico ou linear). A este opõe-se a outra qualidade do tempo, negativa, da modernidade, isto é, do espaço funcional da economia empresarial desvinculado: "..., o ‘tempo abstracto’, porém, que entendo como um tempo uniforme, contínuo, homogéneo, ‘vazio’, é independente de acontecimentos. A concepção do tempo abstracto, que se foi impondo progressivamente na Europa ocidental entre os séculos XIV e XVII, encontrou a sua expressão mais pungente na formulação de Newton do ‘tempo absoluto, verdadeiro e matemático (que) corre de um modo perfeitamente uniforme sem qualquer relação com algo de exterior’ (Isaac Newton). O tempo abstracto é uma variável independente. Ele constitui um enquadramento independente, em que ocorrem movimentos, acontecimentos e acções. Este tempo pode ser subdividido em unidades iguais, constantes e não qualitativas" (Postone, ibidem, p. 309 s.).

O "enquadramento independente" deste tempo, de que Postone aqui fala, no entanto também pode ser entendido como um "espaço independente", ou precisamente o espaço funcional da economia empresarial "desvinculado". O tempo contínuo, astronómico e abstracto do processo de valorização constitui esse espaço fantasmático, tal como inversamente é constituído por este como tempo fantasmático. Postone chama a atenção para "que esta forma de alienação temporal significa uma transformação do carácter do próprio tempo. Não só o tempo de trabalho socialmente necessário é constituído como norma temporal ‘objectiva’, que exerce uma coacção exterior sobre os produtores, mas mesmo o próprio tempo é constituído como tempo absoluto e abstracto. O quantum de tempo que determina a dimensão do valor de uma mercadoria individual é uma variável dependente. O próprio tempo, porém, tornou-se independente da actividade – seja esta determinada individualmente, socialmente ou pela natureza. Tornou-se uma variável independente, medida em unidades constantes, contínuas, comparáveis e permutáveis, estabelecidas por convenção (horas, minutos, segundos), que serve de referência absoluta do movimento e do trabalho enquanto dispêndio. Os acontecimentos e as acções em geral, assim como o trabalho e a produção em especial, ocorrem agora no seio do tempo e são determinados por ele – um tempo que se tornou abstracto, absoluto e homogéneo" (ibidem, p. 327).

No entanto, o tempo começou por se tornar abstracto, independente e absoluto apenas num espaço social determinado, que é precisamente o espaço funcional da economia empresarial desvinculado, em que o que está em causa já não é o tempo "de algo", mas o tempo simplesmente, no sentido do "trabalho" simplesmente, ou da combustão de energia humana simplesmente. O espaço desvinculado e o tempo que no seu seio se tornou absoluto constituem em conjunto um espaço-tempo [Raumzeit] especificamente social, um contínuo de espaço-tempo para lá de todas as necessidades humanas e de todo o mundo da vida social. No processo da história da imposição do capitalismo esta determinação espaço-temporal tinge as esferas derivadas, e por fim mesmo o próprio mundo da vida quotidiana; é a intervenção espaço-temporal usurpatória do "deus estranho" (Marx), do "sujeito automático" (Marx), portanto daquela pretensão totalitária de valorização, que proveio da fome de dinheiro da economia das armas de fogo e da revolução militar dos primórdios da modernidade, e que evoluiu para máquina social.

A origem e o centro, no entanto, é e continua a ser o espaço-tempo específico do processo de valorização da economia empresarial, do trabalho abstracto, que apenas ao preço da autodestruição completa da sociedade poderia ser estendido a todo o processo da vida; o processo de crise contemporâneo da terceira revolução industrial aproxima-se desse estado de dissolução de uma forma cada vez mais nítida.

Uma vez evidenciado o carácter do espaço-tempo social abstracto da economia empresarial, torna-se claro quão grosseira é a concepção de que toda esta relação pode ser reduzida ao poder de disposição jurídico de meros sujeitos da vontade da exploração. Portanto, o que se passa não é que a "propriedade privada dos meios de produção" constitui o sistema do trabalho abstracto e a constituição espaço-temporal do mesmo, mas exactamente ao contrário é o modo de produção do trabalho abstracto, o fim-em-si do "sujeito automático", que constitui a forma jurídica da propriedade privada dos meios de produção (tal como o movimento de auto-mediação do trabalho abstracto/valor através da esfera da circulação). Portanto, a mera colocação da (jurídica) "questão da propriedade" é tudo menos radical, mas sim põe o carro à frente dos bois: tal não afecta nem o carácter espaço-temporal do processo de reprodução social, nem a forma de sujeito dos seus portadores. Quando, por exemplo, sujeitos do trabalho abstracto, ou seja, sujeitos do espaço-tempo da economia empresarial (e assim da concorrência na mediação através da esfera da circulação) "votam democraticamente" sobre questões da reprodução, deste modo eles apenas podem reproduzir, exprimir e viver as contradições do seu modo de existência social, mas não emancipar-se das leis funcionais desse espaço-tempo abstracto, ou seja, da relação de fetiche que este continua a ter por base.

A intervenção emancipatória tem de começar mais fundo, para romper e destruir o espaço-tempo do próprio trabalho abstracto, enquanto a abolição da propriedade privada dos meios de produção seria apenas uma consequência lógica desta revolução, mas não a revolução propriamente dita. A opinião contrária do marxismo tradicional apenas pode conduzir sempre a que a forma jurídica da propriedade privada, que de modo nenhum está ligada a indivíduos ou famílias, se reproduza sob qualquer forma institucional (burocracia estatal, ditadura partidária, instâncias de democracia empresarial, instituições cooperativas, etc.). A propriedade privada dos meios de produção (e igualmente da força de trabalho como mercadoria) não é um "poder de disposição" subjectivo ou mesmo arbitrário no sentido de um mero "enriquecimento", mas apenas a forma jurídica do sistema do trabalho abstracto e do seu espaço-tempo abstracto específico. Melhor dizendo: é a forma jurídica necessária dos sujeitos funcionais deste espaço-tempo, e não o fundamento social de toda a organização.

No espaço-tempo abstracto da economia empresarial ocorre, de um modo paradoxal, um processo de abstracção triplo, real e prático. Embora sejam eles próprios que "trabalham", os sujeitos funcionais têm de começar por abstrair de si mesmos, de certo modo têm de se apagar a si mesmos como seres humanos, para obedecer aos imperativos do trabalho abstracto. Isso não decorre apenas do carácter no fundo objectivo de por exemplo a produção (social) ser para outros em vez de para consumo próprio, mas da coisa fundamentalmente "estranha" que é o fim-em-si capitalista, a valorização do valor. Não se trata de produzir objectos de uso para si próprio ou para outros, mas trata-se essencialmente de produzir valor e mais-valia, ou seja, de queimar no interior do espaço funcional do espaço-tempo da economia empresarial o máximo da própria energia humana abstracta, de se transformar enquanto ser humano numa máquina de combustão social.

Por isso, os sujeitos do trabalho abstracto como funcionários do "sujeito automático" (incluindo os de gerência) não têm influência sobre o conteúdo concreto da produção (que é ditado pelo fim-em-si da valorização), cujo sentido ou falta de sentido não é da sua competência, nem eles podem organizar a evolução do processo de produção ou o seu ambiente consoante os seus desejos e necessidades. O espaço-tempo abstracto da economia empresarial não permite que uma pessoa se ponha "à vontade" na actividade; não se trata do seu próprio tempo de vida nem do seu próprio espaço vital em que uma pessoa se instale, mas de um espaço-tempo estranho – "estranho" não no sentido da propriedade privada estranha, de outro sujeito de vontade (do capitalista), mas "estranho" no sentido da lógica funcional do trabalho abstracto como tal. O tempo contínuo abstracto deve ser interrompido o menos possível, precisamente porque o que está em causa é o dispêndio máximo de energia humana por unidade do tempo, e não os objectos necessários, nem as necessidades das produtoras e dos produtores; os regulamentos que regem os intervalos, por exemplo, não obedecem ao critério das próprias produtoras e produtores e tendem para a minimização (até à questão de se ainda é lícito ir fazer xixi).

Do mesmo modo os meios de produção, ferramentas, etc. não devem ser utilizados paralelamente pelas produtoras e produtores para fins pessoais, mas um regulamento rígido mantém-nos reservados para o fim da valorização. Também aqui a remissão para a propriedade privada jurídica está longe de constituir uma explicação satisfatória, uma vez que a falta de poder de disposição das produtoras e produtores também neste aspecto não decorre de uma relação de vontades exterior entre pessoas, mas da lógica interna do próprio espaço-tempo da economia empresarial. Onde esta lógica é infringida, por exemplo pelo carácter lacunar e pelo "laxismo" do regime de economia empresarial nas burocracias socialistas de estado, tal é invariavelmente punido pela perda de funcionalidade sistémica. Enquanto a própria lógica do trabalho abstracto e do seu espaço-tempo específico não for conscientemente abolida, a afirmação das produtoras e produtores no âmbito do próprio processo de produção como seres com necessidades apenas pode conduzir a defeitos e quebras funcionais.

Em segundo lugar, os sujeitos funcionais do trabalho abstracto também têm de abstrair uns dos outros na prática, embora ao mesmo tempo tenham de cooperar uns com os outros no processo de produção concreto. No entanto, como Marx o descreveu muitas vezes, esta cooperação não lhes pertence, não é pessoal, e mais uma vez não obedece meramente ao comando exterior do proprietário privado/capitalista como sujeito de vontade, mas é estruturada pelo espaço-tempo abstracto do próprio processo de valorização. O que as produtoras e produtores não podem como indivíduos, não o podem tão-pouco na sua cooperação, nomeadamente determinar o conteúdo e a evolução do processo de produção. Mesmo ao cooperarem, eles permanecem unidades mutuamente isoladas de dispêndio de energia humana abstracta, uma vez que, embora a cooperação obedeça de facto às necessidades de transformação concreta e material de matérias naturais, esta transformação é apenas a "expressão" de algo diferente, nomeadamente do processo de valorização. E o processo de produção capitalista é na essência precisamente um processo de valorização, ao qual o "trabalho concreto" permanece subordinado. O lado cooperativo no plano do trabalho concreto não é portanto essencial; o que é essencial é o lado não cooperativo de um dispêndio quase autista de energia humana abstracta no plano do trabalho abstracto.

Neste sentido, as produtoras e produtores são determinados como concorrentes monádicos mesmo no próprio processo de produção, e não apenas na circulação no mercado de trabalho como vendedores concorrentes da mercadoria força de trabalho. O espaço-tempo abstracto da economia empresarial reduz o momento cooperativo estritamente ao carácter instrumental dos processos técnicos, enquanto qualquer cooperação social se apresenta como sistemicamente disfuncional e "perigosa". A lógica fundamental do trabalho abstracto tende para a eliminação de qualquer momento de cooperação não funcional; mesmo os mini-intervalos informais para café e conversa se apresentam cada vez mais como "incómodos" e são erradicados. Este facto também é o calcanhar de Aquiles das máximas tão invocadas do "trabalho de equipa" e da "competência social", que na sua redução funcionalista apenas podem reduzir-se a si mesmos ad absurdum. É o próprio espaço-tempo da economia empresarial, em que as produtoras e produtores permanecem separados uns dos outros como por paredes de vidro, que paralisa qualquer comunicação horizontal, e que automaticamente volta sempre a reproduzir estruturas de comando verticais. Também aqui a remissão para a "autoridade" pessoal de proprietários privados jurídicos está longe de constituir uma explicação satisfatória e passa fundamentalmente ao lado do carácter do problema.

O mesmo se aplica à estrutura arquitectónica dos edifícios funcionais do trabalho abstracto, às divisões espaciais e à sua organização. A abstracção dos indivíduos que "trabalham" e da sua cooperação aqui ainda se torna mais palpável. O funcionalismo desesteticizado e ofensivo à vista e à sensibilidade espacial dos edifícios funcionais, das zonas industriais e comerciais (que já há muito também marcou o mundo da vida e as construções habitacionais e culturais) decorre tão-pouco de uma necessidade objectiva do "trabalho concreto" como todos os outros momentos do espaço-tempo da economia empresarial, resultando antes unicamente do carácter do processo de produção como processo de valorização. Que as produtoras e produtores têm de abstrair de si mesmos como seres humanos, que o espaço funcional da economia empresarial não é o seu próprio espaço vital e o tempo funcional da economia empresarial não é o seu próprio tempo de vida, tudo isto também se reflecte no ambiente da sua actividade, que tão-pouco obedece à sua autodeterminação como o sentido, o objectivo e a evolução da própria produção.

Em terceiro lugar, por fim, as produtoras e produtores, sob a égide do espaço-tempo da economia empresarial, de certo modo também têm de abstrair dos objectos concretos, materiais da sua actividade, embora sejam estes que são moldados em sentido técnico pelo trabalho concreto. No entanto, no próprio processo de produção a sua actividade concreta afigura-se às produtoras e produtores apenas como uma combustão abstracta e indiferente da sua energia. Por conseguinte, a "matéria" a trabalhar tanto como a sua transformação concreta permanece-lhes essencialmente indiferente e estranha, já não se podem identificar com ela no espaço-tempo da economia empresarial, como o artesão pré-moderno ainda se podia identificar com o seu objecto. As identificações com a actividade já apenas dependem de pontos de vista secundários, na maior parte dos casos socialmente concorrentes, desligados do objecto; por exemplo da posição na hierarquia "militar de empresa", do comando sobre outros, ou do êxito de vendas, do orgulho do rendimento abstracto em unidades de tempo/quantidades de peças, da qualificação em know-how puramente funcionalista, estranha à matéria, e do respectivo reconhecimento, da "aura" do nome da empresa, etc. Apenas em áreas recônditas como por exemplo a arte, que não são profundamente dominadas pelo espaço-tempo da economia empresarial, ainda se encontram, apesar da mediação do dinheiro e da abstracção real no mínimo circulatória daí decorrente, elementos de identificação com a matéria e a sua transformação qualitativa; mas mesmo sobre esta área está a debotar cada vez mais a indiferença do trabalho abstracto no processo de comercialização.

A "abstracção real produtiva" nos objectos do trabalho aparentemente apenas concreto de modo nenhum se deve apenas à considerável indiferença subjectiva das produtoras e produtores em termos individuais face à matéria da sua actividade, que no espaço-tempo da economia empresarial se lhes apresenta essencialmente como um processo abstracto de combustão da sua energia. É muito mais o próprio processo de produção, na sua lógica intrínseca como trabalho realmente abstracto, que estabelece esta indiferença como apriori. Portanto é a objectividade social que impõe o carácter de sujeitos indiferentes ao conteúdo, como portadores de processos abstractos de combustão de energia humana, e não o contrário (e muito menos qualquer "avidez de lucro" dos proprietários).

Esta objectividade social da indiferença face à matéria e ao conteúdo decorre do carácter essencial do processo de produção como processo de valorização. Ocorre aqui uma inversão peculiar na relação entre a abstracção do valor e o chamado valor de uso; melhor dizendo, o famigerado valor de uso revela-se, tal como já se insinuou, como uma mera determinação da forma da própria objectividade do valor e da sua realização como valor de troca.

A inversão, em que o valor de uso se apresenta imediatamente como função de constituição do valor e do valor de troca, é desde logo determinada pelo carácter específico da mercadoria força de trabalho. É apenas o carácter de mercadoria da força de trabalho que torna de todo possível a generalização da produção de mercadorias em forma de reprodução social pelo capitalismo. No caso desta mercadoria tão constitutiva como específica, porém, as determinações da forma da mercadoria ficam, por assim dizer, de pernas para o ar. No caso de todas as outras mercadorias o chamado valor de uso consiste, pelo menos à primeira vista, na sua utilidade material. Não é o que se passa com a mercadoria força de trabalho. O seu valor de uso para o processo de produção capitalista não está precisamente na sua capacidade de produzir determinados bens destinados a satisfazer necessidades materiais ou imateriais. Antes pelo contrário: "A fim de extrair valor do consumo de uma mercadoria, o nosso proprietário de dinheiro teria de ter a sorte de descobrir, no interior da esfera da circulação, no mercado, uma mercadoria cujo valor de uso possuísse ele próprio a qualidade peculiar de ser fonte de valor, cujo consumo real portanto seria ele próprio objectivação de trabalho e daí criação de valor. E o proprietário de dinheiro encontra no mercado uma tal mercadoria específica – a capacidade de trabalho ou a força de trabalho..." (MEW 23, p. 181). Portanto, o que é decisivo é "o valor de uso específico desta mercadoria, que consiste em ser fonte de valor, e de mais valor do que ela própria possui" (MEW 23, p. 208).

Na produção e no seu resultado não se trata do valor de uso (material) aparente dos produtos, mas deste valor de uso social específico da mercadoria força de trabalho, que consiste unicamente na imposição do valor e da mais-valia. O valor de uso da mercadoria força de trabalho, porém, pura e simplesmente constitui o conceito de valor de uso no contexto da forma de produção de mercadorias generalizada de modo capitalista. Dito isso, o próprio Marx desmente a sua definição ontológica e antropológica de uma "produção de valor de uso" transhistórica, na qual também a abstracção "trabalho" se deve perpetuar. Tal como o valor de uso da mercadoria força de trabalho consiste socialmente em produzir valor que ultrapassa os custos da própria reprodução, também o valor de uso social dos produtos consiste em "representar" essa mais-valia como fim-em-si processante e de seguida "realizá-la" na venda. Ambos os aspectos são indissociáveis. Portanto o valor de uso social dissocia-se neste sentido da utilidade concreta, material ou imaterial.

O facto de esta utilidade, no sentido concreto palpável de uma objectividade da necessidade, constituir também para a produção capitalista por assim dizer um mal necessário e uma espécie de condição residual não lhe confere ainda assim um carácter em si transhistórico-ontológico, nem mesmo nesta dissociação de valor de uso social. Pelo contrário, a determinação qualitativa abstracta, destrutiva e negativa do valor de uso como fim-em-si social da valorização do valor afecta também a objectividade da necessidade dissociada e a sua própria produção.

Tal diz respeito antes de mais ao "quê" da produção, ao conteúdo objectivo. Como é sabido, por motivos que se prendem com as relações de concorrência e o constrangimento da rentabilidade, tanto aos proprietários do capital, como à gerência e mesmo aos operários assalariados tem de ser indiferente o que produzem ao certo, sejam maçãs ou componentes para bombas nucleares; o que interessa é que se produza e realize o valor de uso social negativo da riqueza abstracta, da mais-valia como fim-em-si. Não existe qualquer instância social que pudesse determinar o conteúdo objectivo da produção conscientemente e segundo critérios de sensibilidade às necessidades. A remissão para o pretenso "poder dos consumidores" não passa de ideologia pura. Na realidade, o apriori do trabalho abstracto e do valor determina também as estruturas das necessidades sociais e submete-as à coacção da sua específica lógica de valor-de-uso abstracto de produção de mais-valia.

Sob o ditado desta produção e realização de riqueza abstracta, todos os dias são descontinuadas produções destinadas mesmo a necessidades elementares por falta de rentabilidade e solvabilidade, enquanto a produção de produtos destrutivos para necessidades destrutivas (não apenas através da indústria de armamentos) até ainda é reforçada. Mas não é só neste sentido que a abstracção do conteúdo das necessidades se afirma massivamente no próprio processo de produção. Também os conteúdos da produção em si aparentemente não destrutivos são destrutivamente moldados no sentido do trabalho abstracto. Se são criados tomates sem olhar ao sabor e em função de normas de acondicionamento para redes de distribuição à escala continental, ou maçãs são tratadas com radioactividade para prolongar a sua duração, ou se de um modo geral alimentos são desnaturados exclusivamente no interesse do objectivo da valorização, e toda a riqueza historicamente acumulada de uma multiplicidade de plantas e animais úteis se perde a favor de uma "pobreza de variedades" reduzida em nome da simplificação económico-empresarial, se na construção de casas sob o ditado da redução de custos imposto pela economia empresarial são utilizados materiais prejudiciais para a saúde, ou surge uma divisão disfuncional do espaço e desaforos estéticos: é o conteúdo material que se orienta pela determinação da valorização, e não o contrário; e, com o crescente desenvolvimento capitalista, numa medida historicamente crescente.

O "sujeito automático" da valorização do valor cria por assim dizer à sua imagem um material humano para o trabalho abstracto também no sentido de uma moldagem das necessidades. A lógica da produção e a lógica do consumo cruzam-se sob o ditado do apriori social do trabalho abstracto. Enquanto por um lado necessidades elementares (até mesmo aquelas que de certo modo poderiam ser definidas como transhistóricas, como por exemplo a necessidade de água potável limpa, espaço habitacional suficiente, etc.) são brutalmente menosprezados, a mesma abstracção real desperta, até ao quotidiano, necessidades destrutivas, puramente compensatórias, agressivas ou simplesmente absurdas e infantis. O sistema do trabalho abstracto inverte assim a relação entre as necessidades e a produção: já não são as necessidades a gerarem a produção como fim, mas o fim-em-si de uma produção desvinculada gera cada vez mais necessidades negativas como seu simples meio. Até nos países capitalistas mais ricos cada vez mais gente se vê condenada a passar fome, enquanto ao mesmo tempo se pretende criar a "necessidade" já difícil de conceber de ao caminhar ver um filme num mostrador do tamanho de um selo postal.

O apriori social do trabalho abstracto como lógica da própria produção implica, portanto, o menosprezo de necessidades elementares, a produção de bens puramente destrutivos e a redução qualitativa de todos os bens (falta de diversidade, "refugo industrial", produção de usar e deitar fora, normalização estética e desesteticização, etc.), por fim a moldagem geral das necessidades em função dos imperativos do processo de valorização, até à redução ou mesmo destruição da capacidade de fruição. A moldagem da produção em função da lógica do trabalho abstracto, no entanto, não diz respeito apenas ao "quê", à determinação dos bens em termos de conteúdo, cujo carácter material é subordinado e adequado à fantasmática objectividade do valor, mas também ao "como" do próprio processo de trabalho, à forma de intervenção da actividade transformadora sobre a matéria natural ou sobre um semelhante humano (serviços).

O espaço-tempo abstracto da economia empresarial requer uma adequação do "trabalho concreto" ao espaço abstracto e ao tempo abstracto de uma produção contínua infinita, no sentido de uma optimização da lógica da valorização: "Tempo é dinheiro". Tal significa que no processo do trabalho concreto, como processo contínuo do espaço-tempo da economia empresarial, tem de ser negado e eliminado tudo o que de algum modo obstrua este fluxo contínuo de uma combustão optimizada de energia humana e ocasione perdas de fricção. No entanto, o processo do fluxo contínuo corre melhor com objectos de matéria física morta (o que é simbolizado por exemplo na "clássica" linha de montagem da indústria automóvel). Assim sendo, o espaço-tempo da economia empresarial implica um reducionismo específico, que corresponde a um fenómeno muito similar nas ciências da natureza modernas.

Pode-se falar de um reducionismo físico das ciências da natureza modernas, que almeja uma explicação monística do mundo a partir dos componentes atómicos elementares do Universo mecanicista de Newton. Tal significa necessariamente um duplo passo de redução. Num primeiro passo, o mundo social, cultural e histórico do Homem tem de ser reduzido a mecanismos funcionais biológicos; um topos da ideologia burguesa desde o século XVIII. O arco deste reducionismo biológico estende-se desde a pseudo-naturalidade das condições de produção e relacionamento capitalistas na economia política a partir de Adam Smith (ampliada na mais recente pseudo-cientificidade e "matematização" da economia política), passando pela biologização do social (darwinismo social), até à suposta programação e determinação genética da "natureza humana". Num segundo passo, o mundo biológico tem de ser depois reduzido a mecanismos funcionais químicos e físicos, a matéria viva tem de ser reduzida a matéria morta. O descomedimento da procura de uma "fórmula do mundo" total, da qual pudesse ser monisticamente "derivado" tudo o que existe, ainda hoje se baseia sobre este modo de pensar reducionista, e com ele na imagem mecanicista do mundo, embora a física quântica pareça de facto contradizê-la.

O reducionismo físico das ciências da natureza modernas na teoria apresenta-se no entanto no espaço-tempo da economia empresarial como prática universal abstracta, como tratamento real do mundo dos objectos em função de semelhante reducionismo. É só este modo de proceder que permite de todo uma lógica de intervenção universal e abstracta, independente do objecto do processo de trabalho, como processo de valorização. A negação da lógica própria e do tempo próprio de áreas objectivas e de vida qualitativamente diversas pode apenas ocorrer pela via da redução física. Seres humanos são tratados como animais e plantas, enquanto animais e plantas são tratados como pedras e metais. Assim se opera na prática da economia empresarial uma redução abrangente da matéria social e da matéria viva em geral a uma objectividade física morta. A fantasmática objectividade do valor da mercadoria apresenta-se no processo da sua produção como a redução física da sua materialidade. O processo de produção como processo de valorização é no essencial o processo de matar dos seus objectos.

As consequências extremas desta lógica da redução já há muito se tornaram visíveis, por exemplo nas agro-indústrias monísticas, nos horrendos transportes de animais para abate à escala continental, assim como nas práticas do comércio de apoio social e cuidados pessoais, por exemplo quando pessoas idosas e doentes são tratadas segundo o padrão das instalações de lavagem automática de automóveis, ou o "trabalho afectivo" com moribundos está sujeito à gestão de tempo da racionalização económico-empresarial. Em semelhantes práticas de fábricas agrárias, hospitais e gulagues de "cuidados pessoais" que em todo o mundo se vão tornando cada vez mais notórias, e cujo escândalo entretanto já é só cansaço, surge no entanto apenas a ponta do icebergue de uma lógica de redução física, que domina profundamente todo o espaço-tempo da economia empresarial até aos poros do processo de reprodução social.

A este reducionismo pertence também a destruição secundária da biosfera planetária pelos "excrementos (físicos) da produção" (Marx) e a em tudo similar destruição secundária das condições de relacionamento social pelos "excrementos da produção" por assim dizer psíquicos. A indiferença face ao conteúdo qualitativo imediato do "trabalho" implica uma igual indiferença face ao "ambiente" do processo de valorização, tanto em termos biológicos como em termos sociais. O espaço-tempo da economia empresarial "desvinculado" conhece e admite apenas a sua própria lógica interna; é insensível a tudo o que no exterior do seu campo de acção está sujeito a outra qualidade de espaço ou de tempo. É por isso que fracassam não só todos os protocolos do clima e outros esforços de um ecologismo impotente, para por assim dizer reintroduzir os seus "custos externalizados" nas contas da economia empresarial segundo as regras da sua própria lógica, sem romper essa lógica enquanto tal. Igualmente impotentes permanecem também todos os apelos à compaixão, à responsabilidade social, à "sociedade civil", etc., que pretendem reivindicar um comportamento não reducionista em relação às condições sociais, sem pôr em causa fundamentalmente o espaço-tempo da economia empresarial como centro do reducionismo.

Tal como gente totalmente asselvajada em guerras de extermínio já não é capaz de se integrar numa vida "civil", tão-pouco os indivíduos condicionados no espaço-tempo da economia empresarial a modos de comportamento reducionistas podem comportar-se no exterior dele de um modo "socio-ecológico"; isto sem mencionar que esse "exterior" está a ser deglutido e aspirado pelo espaço-tempo da economia empresarial a uma velocidade crescente – sem que este consiga realmente totalizar-se e incorporar os momentos dissociados; pelo contrário, estes "ficam ao abandono". Já é apenas absurdo, quando as instâncias oficiais do capitalismo de crise global invocam, por um lado, a "moral" socio-ecológica e ao mesmo tempo propagam, por outro lado, a extensão do espaço-tempo da economia empresarial e da sua lógica reducionista a todas as áreas da vida. Sermões domingueiros situam descomprometidamente a racionalidade como respeito pelas lógicas próprias da biosfera e do relacionamento social na esfera da responsabilidade pessoal dos indivíduos isolados e por assim dizer no seu "comportamento de tempos livres", enquanto ao mesmo tempo a racionalidade social negativa do espaço-tempo abstracto da economia empresarial determina o processo real de reprodução social em toda a sua amplitude e profundidade, o que até ainda reforça a intervenção reducionista a ela associada.

O resultado é fácil de adivinhar e consiste na transformação do mundo terreno da biosfera e da cultura social humana num deserto físico. A literatura popular da ficção científica já há muito antecipou este resultado no topos do mundo de robôs, em que uma "inteligência" mecânica e auto-reprodutiva de máquinas mortas governa um mundo química e fisicamente reduzido. Talvez o amor à redução física teórica e prática também explique por que a anti-cultura capitalista está tão fascinada pelo planeta Marte, que o torna o alvo predilecto de expedições espaciais com máquinas de combustão e veículos robotizados. Marte é precisamente o deserto físico em que o trabalho abstracto e o seu espaço-tempo ainda têm de converter a Terra. O facto de andar com robôs a vasculhar esse deserto em busca da mais pequena vida bacteriana simboliza involuntariamente a desesperada lógica auto destrutiva de uma humanidade dominada pelo apriori social do trabalho abstracto.

O tempo histórico concreto do capitalismo

A destruição real do mundo pelo trabalho abstracto como processo de produção é evidente. Quando o marxismo tradicional como ideologia imanente da modernização pretende restringir os conceitos de trabalho abstracto e abstracção real à esfera da circulação, com isso demonstra não apenas a sua contaminação pela ética protestante, pelo produtivismo capitalista e por uma falsa ontologia do trabalho transhistórica, mas ainda a sua completa limitação ao espaço interior do moderno sistema produtor de mercadorias e ao seu espaço-tempo abstracto. Claro que assim também lhe escapa o conceito de historicidade capitalista. Pois de facto o capitalismo é, por um lado, o regresso do sempre igual, o tempo abstracto sem história do contínuo economico-empresarial desvinculado; por outro lado, porém, é um processo histórico concreto cego, uma história irreversível de constituição, imposição e crise, que se manifesta em estádios de desenvolvimento qualitativamente diferentes.

Daí que Moishe Postone distingue consequentemente duas espécies de certa maneira opostas de definição de tempo no processo de reprodução capitalista; o que segundo Postone significa "que a dialéctica do desenvolvimento capitalista é, num plano lógico, uma dialéctica de duas formas de tempo constituídas na sociedade capitalista e portanto não pode ser compreendida adequadamente no sentido da substituição de todas as formas de tempo concreto pelo tempo abstracto" (Postone, ob. cit., 329). Uma é a substituição do primitivo tempo concreto do dia a dia, como tempo sempre condicionado, limitado "por algo" ou "para algo", como expressão de tempo orientado por tarefas, pelo espaço-tempo desvinculado, abstracto, da economia empresarial. Mas através desta transformação é criado simultaneamente, num diferente segundo plano do tempo, um novo tipo histórico concreto de tempo, uma cega dinâmica histórica de "desenvolvimento" e crise.

Além do espaço-tempo abstracto, homogéneo e sem história da economia empresarial e deste derivado, o capitalismo como socialização do valor estabelece contudo também um tempo histórico concreto completamente diferente. Postone deduz em termos completamente elementares a relação destas duas formas de tempo das duas dimensões da mercadoria, como materialidade e como objectividade do valor: "A interacção entre as duas dimensões da forma da mercadoria também pode ser analisada quanto ao tempo, do ponto de vista da oposição entre o tempo abstracto e uma forma de tempo concreto própria do capitalismo" (Ob. cit., 439). Também se pode dizer assim: o tempo sem história, abstracto, da socialização do valor é a lógica temporal do processo de valorização; o tempo histórico concreto da socialização do valor, pelo contrário, é a lógica temporal da materialidade mobilizada por este processo de valorização, tanto no sentido da matéria natural transformada, como também no sentido do desenvolvimento social a isso ligado.

O problema que aqui aparece é outra vez a "dimensão de valor de uso" (Postone) do trabalho abstracto, agora observado sob o ponto de vista da forma do tempo. A determinação do valor de uso da mercadoria força de trabalho como produção de mais-valia estabelece uma determinação social do valor de uso das mercadorias como simples materialização do valor/mais-valia e da respectiva realização, enquanto a concretude material e com ela também a qualidade material é dissociada e permanece secundária, um simples apêndice (indiferente) da valorização do valor. Contudo o capitalismo não consegue livrar-se desta materialidade concreta, e o valor de uso social da produção de mais-valia e da sua realização, perante crescentes níveis de produtividade forçados pela concorrência universal, tem que "encarnar" sempre de novo em sempre novas formas concretas e ultra-desenvolvidas de transformação da natureza e da sociabilidade.

É precisamente nesta tensão entre a indiferença quanto aos conteúdos e a abstracção do "trabalho" e do valor, por um lado, e o "desenvolvimento" de conteúdos materiais promovido pelo próprio processo de valorização, por outro, que se funda a dialéctica das duas formas de tempo. O espaço-tempo abstracto da economia empresarial não conhece qualquer "desenvolvimento". Aqui uma hora é sempre uma hora de tempo independente, sem conteúdo, sem qualidade, homogéneo. Este tempo corresponde à dimensão de valor da reprodução, ao tempo abstracto e com ele à objectividade de valor da matéria, portanto ao valor de uso do fetiche social de produção e realização de mais-valia. O conteúdo materialmente indiferente com ele transportado porém transforma-se, é determinado sempre de novo, e na realidade não em simples mudança aleatória, mas com crescentes cientificização e produtividade, num processo histórico concreto. Nesta referência ao conteúdo, indiferente ao fim-em-si da valorização do valor, mas que se valida na prática, uma hora não é sempre a mesma hora, mas sim é progressivamente preenchida de novo, transforma-se em tempo de algo diferente, em tempo de "desenvolvimento".

Postone assinala no plano lógico a oposição e o cruzamento destas duas formas de tempo: "A constante temporal abstracta é ao mesmo tempo constante e não constante. Vista como tempo abstracto, a hora de trabalho social permanece constante como medida de todo o valor produzido. Concretamente expressa, contudo, varia em correspondência com a variação da produtividade. No entanto, uma vez que a unidade de tempo abstracto continua a ser a medida do valor, ela não se exprime, na sua nova determinação concreta, na unidade de tempo enquanto tal… Que o quadro temporal abstracto permanece constante, mas é determinado substancialmente como novo, é um paradoxo… Este paradoxo não pode ser solucionado na base do tempo abstracto newtoniano. Pelo contrário, ele remete para um outro tipo de tempo de nível superior. Este movimento resultante da nova determinação substancial do tempo abstracto não pode ser expresso em conceitos de tempo abstracto; reclama outro quadro de referência. Pode-se imaginá-lo como uma espécie de tempo concreto…Assim, este movimento do tempo é uma função da dimensão valor de uso do trabalho e da sua interacção com o enquadramento do valor e pode ser entendido como uma espécie de tempo concreto" (Ob. cit., 439 sgs.)

A dimensão valor de uso significa aqui a materialidade concreta dissociada, que de resto não tem que ser "útil" num sentido enfático, mas que também e sobretudo inclui o desenvolvimento das forças produtivas como forças destrutivas. Por um lado, portanto, estamos perante um "quadro de tempo homogéneo, abstracto, que é imutável e serve de medida do movimento" (Postone, ob. cit., 442). Por outro lado, é promovido precisamente por este espaço-tempo da economia empresarial, no plano material concreto do desenvolvimento de forças produtivas/forças destrutivas, o tempo histórico concreto de um processo social de desenvolvimento dinâmico e irreversível: "Isto inclui contínuas mudanças na natureza do trabalho, da produção e da tecnologia, tal como a acumulação das formas de saber conexas. Visto na generalidade, o movimento histórico da totalidade social tem como consequência transformações massivas, contínuas, do modo de vida social da maioria da população – nos padrões sociais de trabalho e de vida, na estrutura e distribuição das classes, na natureza do estado e da política, nas formas de família, no aperfeiçoamento do sistema cultural e educativo, nas formas de circulação e de comunicação, etc. O tempo histórico no capitalismo pode portanto ser visto como uma forma de tempo concreto, que é socialmente constituído e dá expressão a uma continuada transformação da vida social em geral, tal como das formas de consciência, do valor e da necessidade, pelo trabalho e pela produção. Ao contrário do "fluxo" do tempo abstracto, este movimento não é uniforme, mas varia e até pode acelerar-se" (Postone, Ob. cit., 443).

O tempo abstracto, homogéneo e autonomizado, como medida da combustão pretensamente infinita de energia humana, corresponde e colide com o tempo histórico concreto do desenvolvimento cegamente dinamizado e igualmente independente, mas de outra maneira, em cujo decurso não só a face do mundo é historicamente transformada, mas também as categorias reais da socialização do valor mudam qualitativamente a sua forma. É o desenvolvimento, não só desde a diligência postal, passando pelo caminho de ferro, até à "automobilização" da sociedade, mas também desde a estrutura familiar estável da produção, passando pela concentração dos "exércitos do trabalho", até à individualização abstracta, simultaneamente com o desenvolvimento das relações de dissociação sexual que lhe estão ligadas; é o processo que vai da subsunção formal das estruturas de produção pré-encontradas até à subsunção real do processo de produção e de vida sob o capital, com base nos fundamentos próprios deste; a história da ciência moderna em cruzamento com a dinâmica capitalista, da relação entre a acumulação empresarial e a crescente necessidade de condições de enquadramento do conjunto da sociedade (infra-estruturas), etc.

Observando as duas formas de tempo do ponto de vista da consciência dos sujeitos, dos indivíduos e instituições, poderíamos definir o espaço-tempo abstracto da economia empresarial como a forma de tempo subjectivamente estabelecida e o tempo histórico concreto do desenvolvimento capitalista como a forma de tempo que objectivamente se manifesta. Pois a acção social própria dos sujeitos realiza-se sempre apenas no quadro do tempo abstracto, homogéneo, da economia empresarial desvinculada e sob pressão dos seus imperativos ou (por exemplo do lado do estado e da política) em relação com este quadro de tempo pressuposto; esse tempo é independente, mas fixa o quadro imediato de acção dos sujeitos. O tempo histórico concreto pelo contrário é a resultante cega, a dinâmica objectivada de uma história do "sujeito automático" e ela própria apenas indirectamente feita pelos seres humanos, contudo por maioria de razão sem o seu controlo social. É uma relação paradoxal de tempo: o tempo subjectivo, consciente, é vazio e abstracto, tempo de combustão de energia humana indiferente a qualquer conteúdo; o tempo histórico concreto do real desenvolvimento de conteúdo material, pelo contrário, é tempo objectivo, inconsciente e portanto fatalidade histórica.

Daí que a emancipação social, em consequência, só pode consistir em conseguir o controlo social sobre o tempo histórico concreto, de modo que o espaço-tempo desvinculado da economia empresarial seja conscientemente destruído, suprimido e com isso suplantada a lógica da valorização do valor. Só a inclusão da reprodução no mundo da vida, a dissolução do trabalho abstracto e com ele da dissociação sexual pode pôr fim também à dissociação e à cada vez maior indiferença aos conteúdos materiais do processo de produção. Seria o fim da separação entre vida e produção, conteúdo e forma, produção e circulação, economia e política. Assim sendo, o processo capitalista de destruição do mundo só será detido quando se conseguir uma integração social, em que pela primeira vez na história os membros da sociedade organizem conscientemente o emprego dos seus recursos comuns (por exemplo numa organização de conselhos escalonada e abrangente) e deste modo também pela primeira vez definam o seu próprio tempo histórico concreto – o desenvolvimento social deixa assim de ser um cego processo de fatalidade.

O marxismo tradicional nem sequer é capaz de pensar nesta tarefa, muito menos lutar por uma via para a sua resolução. Se, no passado, para os teóricos do marxismo do movimento operário o tempo histórico concreto do capitalismo surgia, se bem que não como conceito, mas ao menos indirectamente na discussão mais ou menos positivista dos "estádios de desenvolvimento" do capitalismo, hoje os representantes remanescentes deste pensamento baniram por completo da sua reflexão o problema do tempo histórico concreto e, com ele, o da historicidade do capitalismo. O que quer dizer que a história interna do capitalismo, a história do seu desenvolvimento e crise, esbarra hoje nos seus limites. Daí que também já não é possível estabelecer o tempo histórico concreto como resultante do espaço-tempo abstracto da economia empresarial de modo categorialmente imanente, no sentido de uma interpretação "crítica" do próximo surto de desenvolvimento. O tempo histórico concreto agora só pode ser ainda pensado criticamente no sentido de uma crítica categorial do espaço-tempo desvinculado do próprio trabalho abstracto.

O que sobra do marxismo tradicional, completamente incapaz de semelhante feito, refugia-se por isso, no que diz respeito ao conceito de capital, na concepção de um "eterno retorno do mesmo"; converte-se numa espécie de "marxismo budista". Esta caracterização ainda nem sequer é polemicamente exagerada. Assim se diz, para citar apenas um exemplo significativo, num tratado de resto particularmente pretensioso sobre o assunto, que contudo não consegue encobrir as orelhas de burro do velho pensamento marxista tornado obsoleto: "Manifesta-se… como é difícil encontrar qualquer coisa de substancialmente novo, mesmo original, na realidade capitalista, que esse Marx não tivesse há muito antecipado…Isto não pretende ser uma homenagem a Marx: trata-se nem mais nem menos do que a constatação de que… no essencial o capital representa o eterno retorno do mesmo" (Initiative Sozialistisches Forum [Iniciativa Fórum Socialista], Der Theoretiker ist der Wert [O teórico é o valor], Friburgo 2000, pág. 79). Explícita ou implicitamente esta rejeição do pensamento de um desenvolvimento histórico na relação de valor constata-se hoje quase sem excepção entre os náufragos sobreviventes de uma época chegada ao fim de crítica categorial imanente do capitalismo.

Por outras palavras: este pensamento agora limita-se por completo ao quadro temporal do tempo contínuo abstracto e homogéneo da economia empresarial. Neste quadro temporal ocorrem diversos acontecimentos, mas não há desenvolvimento nem história. Corresponde-lhe a redução estrutural do conceito de capital ao plano do capital isolado e à sua pretensa eterna capacidade de reprodução ("há sempre um vencedor, seja lá quem for"). A dimensão social total da socialização do valor desaparece do campo de visão, juntamente com o tempo histórico concreto. Assim se funde o marxismo tradicional no seu próprio estádio final com a perspectiva económica e histórica burguesa (fim da história, ponto de vista "micro-económico"). Ao já não conseguir pensar mais nenhum novo estádio de desenvolvimento do capitalismo "de esquerda", porque já não há mais nenhum, ele deixa de pensar de todo o tempo histórico concreto. Com isso, o marxismo tradicional comprova apenas a sua imanência categorial na socialização do valor, que ele descreveu esforçadamente como ontologização do trabalho abstracto. Daí que ele esbarra inevitavelmente num limite histórico, juntamente com o seu objecto.

Isto já remete para o problema da crise categorial. O tempo histórico concreto do capitalismo, tal como ele é libertado como processo cego pelos resultados do espaço-tempo abstracto da economia empresarial no plano social material concreto, constitui de facto uma história não só de desenvolvimento, mas também de crise. A irreversibilidade deste processo desemboca num "estádio de desenvolvimento" que já não o é, mas em que se manifesta um limite histórico absoluto. Crítica categorial e crise categorial condicionam-se reciprocamente. Para se poder fundamentar este nexo no plano do tempo histórico concreto, é necessária uma análise do trabalho abstracto do ponto de vista das suas relações quantitativas. A histórica dessubstancialização do valor ou desvalorização do valor apresenta-se como problema de quantidade do trabalho abstracto, o que constitui o cerne da teoria da crise de Marx. Esta relação quantitativa do trabalho abstracto, no sentido de um limite interno do espaço-tempo económico-empresarial desvinculado, será debatida na segunda parte do presente estudo.

 

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ISBN: 3-89502-183-0, editora Horlemann Verlag, Postfach 1307, 53583 Bad Honnef, Tel 0 22 24 - 55 89, Fax 0 22 24 - 54 29, http://www.horlemann-verlag.de/

Tradução de Lumir Nahodil e Boaventura Antunes, 09/2005

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