Robert Kurz

 

O Livro Negro do Capitalismo

 

História da Primeira Revolução Industrial

 

 

Quando teóricos como Adam Smith, Marquês de Sade, Immanuel Kant ou Jeremy Bentham construíram o edifício intelectual do liberalismo, o modo de produção capitalista tinha ampliado o seu raio de acção e aumentado o grau da sua objectivação, mas ainda não tinha de modo nenhum ultrapassado a infância. Se a ideia em rápida expansão era historicamente antecipada como já concluída, na questão social mais pesada ela estava apenas no processo de se tornar efectiva, e longe de concluída na totalidade real. A economia de mercado em sentido moderno ainda estava em grande parte confinada ao mercado mundial agrário do capitalismo de latifúndio e ao importante sector têxtil, bem como às indústrias mineiras básicas de carvão, ferro e aço. O pesadelo dos aparelhos de Estado absolutistas e os horrores da Revolução Francesa e das Guerras Napoleónicas misturaram-se com os horrores sociais do crescente capitalismo privado de um modo difícil de identificar. O longo e prolongado confronto patricida do liberalismo com o absolutismo foi tão confuso quanto a superficial filantropia dos filósofos capitalistas da felicidade e da "ética” inicialmente difícil de perceber. Quem estivesse no meio deste tumulto histórico e tivesse de passar por ele não poderia certamente reduzir o conflito social a um denominador comum com facilidade. Como resultado geral o sofrimento aumentava sem parar, mas como orientar-se?

Enquanto um número crescente de piratas do mercado das camadas médias farejava a sua oportunidade, a dinâmica do novo sistema, a ameaça da concorrência anónima, a miséria e o desespero suscitavam entre a maioria das pessoas receios quanto ao futuro. Apesar das promessas liberais de felicidade, a visível monstruosidade e a enorme avidez dessa crescente mudança sócio-económica assustavam muita gente, mesmo que ainda não tivesse sido devorada. Nesta situação, a razão capitalista iluminista estava com pressa para chegar ao fim na elaboração da grande teoria social, a fim de não comprometer os fundamentos alcançados. O espírito do mundo, explicou Hegel, teria vindo a si em sua humildade e no Estado prussiano constitucional, e assim por diante. Não mais novos revolucionamentos; a tarefa agora era expandir e moralizar a sociedade burguesa do sistema produtor de mercadorias e generalizar a ideia da sua necessidade.

Ao entrincheirar-se defensivamente, a razão iluminista tornou-se gradualmente "positivista", ou seja, tentou limitar-se aos "factos positivos" estabelecidos pelo capitalismo e remeter tudo o resto para a terra dos sonhos da metafísica infértil. Numa palavra: depois de o capitalismo e sua "canzoada" da economia de mercado terem conquistado a sua testa de ponte histórica e se terem manifestado socialmente bastante, os senhores podiam agora pregar o "realismo". Desde então, ao capitalismo nunca faltaram convencidos pragmáticos nem realistas fanfarrões. Além da economia de mercado e da república ou da "monarquia constitucional" (só mais tarde é que a fórmula "economia de mercado e democracia" pôde ser expressa) nunca mais deveria haver a ideia de outra forma de sociedade. A máquina de fim-em-si capitalista, com a sua relação básica entre "trabalho abstracto" e dinheiro, não deveria mais ser explicitamente defendida, mas tomada como certa, e qualquer crítica fundamental a ela deveria deixar de ser levada a sério, pelo menos no panteão oficial da ciência.

Por esta razão, o pensamento burguês deslocou cada vez mais o seu foco para as ciências organizativas e naturais. O famoso progresso, que já não podia continuar por causa da forma da sociedade supostamente fechada para sempre, passou a ser unilateralmente técnico-científico a partir de então. A crença no progresso do século XIX foi, portanto, apoiada com um entusiasmo superficial pela tecnologia. Esperava-se que as catástrofes sociais, eufemisticamente apostrofadas como "defeitos e erros" no "melhor de todos os mundos possíveis", fossem gradualmente remediadas pela inteligência tecnocrática. A razão rastejou perante a máquina e tornou-se maquinal: não mais de modo meramente metafórico, mas literalmente. E como era uma razão capitalista, logicamente também surgiram máquinas capitalistas.

Esta tendência estava em linha com a visão do mundo que tinha sido construída nos séculos anteriores. A imagem intelectual da máquina capitalista estava lá muito antes do início da Primeira Revolução Industrial. Depois de Newton ter declarado o universo como a máquina física do mundo, Smith ter declarado a sociedade como a "bela" máquina económica do mundo, Sade ter inventado a máquina anónima do sexo, e La Mettrie ter definido até o próprio Homem como uma máquina, era apenas lógico que o "espírito do mundo" do capitalismo se mudasse para o desenvolvimento tecnológico à sua própria imagem. Ao mesmo tempo, este momento do pensamento capitalista foi objectivado e mesmo impulsionado pela dinâmica da concorrência. Quanto maior se tornava o número de empresas capitalistas e quanto mais densa a rede de grandes mercados, mais perceptível se fazia sentir a concorrência como "coerção silenciosa" (Marx). Os participantes no mercado foram obrigados a "desenvolver permanentemente as forças produtivas", a fim de manterem os seus próprios produtos no mercado. À medida que o motor da concorrência arrancava, o avanço da Primeira Revolução Industrial tornava-se inevitável.

Para Adam Smith, a principal vantagem das novas forças produtivas continuava a residir sobretudo na divisão do trabalho nas manufacturas, apesar de ele já conhecer as máquinas. Mas logo foi o uso de máquinas que ditou o progresso da divisão do trabalho dentro da empresa. Não por acaso, a revolução industrial começou na Inglaterra, que, como país com o capitalismo mais avançado, já tinha nascido das ideias liberais. É por isso que a Inglaterra também se tornou o primeiro país dos inovadores técnicos. Já em 1733 John Kay inventou a lançadeira de tecelagem, o chamado "atirador rápido"; em 1765, James Watt, a máquina a vapor; em 1771, Richard Arkwright, a máquina de fiar algodão. No início do século XIX, a aplicação isolada das novas forças mecânicas na Inglaterra já tinha crescido no seu conjunto como o início de um sistema industrial. O fabrico de têxteis foi inevitavelmente o primeiro a ser industrializado, mas a máquina a vapor logo encontrou muitos usos também em outros ramos de produção.

No Continente, de início, era-se apenas espectador, ficando-se espantado com os poderes titânicos ali libertados pelo vizinho não amado e que traziam uma nova era à vista de todos. Por volta de 1820 Goethe descreveu em seu romance educativo "Wilhelm Meisters Wanderjahre" [Os anos de aprendizagem de Wilhelm Meister] assentamentos de fiandeiros e tecelões que ainda não tinham sido afectados pela concorrência e onde as pessoas, como o príncipe dos poetas descreveu de uma maneira um pouco sedosa e condescendente, ainda podiam cantar e conversar no trabalho, em suas casas "simples mas limpas”: "Zeisige e Stieglitze, pendurados em gaiolas, vão chilreando, e não é fácil encontrar imagem de uma vida mais animada [...]" (Goethe 1982/1821, 347). Mas a nuvem negra da tempestade da concorrência industrial já está à vista, como mostra o humor dos artesãos têxteis de Goethe:

"Eles alegraram-se [...] com a paz, embora preocupados com um perigo iminente [...], pois não se podia negar que a maquinaria se estava sempre multiplicando no país e ameaçando pouco a pouco as mãos dos trabalhadores com a inactividade. Mas todos os tipos de razões para consolação e esperança poderiam ser aduzidos" (loc. cit., 346).

Quando a industrialização na Inglaterra estava em pleno andamento, havia apenas algumas máquinas a vapor na Alemanha. Particularmente nos Estados pequenos, as corporações tinham sido capazes de manter a sua esfera de influência por um tempo relativamente longo e tinham bloqueado os inícios da maquinaria no século XVIII. No Eleitorado da Saxónia, por exemplo, o uso de máquinas era geralmente proibido até 1765 (Abendroth 1965, 13). Também a abolição das restrições corporativas inicialmente pouco mudou os métodos de produção. O impulso para a industrialização só veio depois de 1820, a partir do exterior. A concorrência do "pano inglês barato" tornou-se enorme e dolorosamente palpável nas décadas seguintes. No período que antecedeu e depois em reacção à revolta dos tecelões da Silésia em 1844, os problemas da industrialização penetraram gradualmente na consciência geral também na Alemanha.

Tal como em toda a Europa, o debate sobre a questão social do chamado "pauperismo" misturava-se inevitavelmente com a questão da introdução das máquinas. Parecia ultrajante, imoral e, de certo modo, incompreensível que a "bela" máquina social da concorrência, juntamente com o motor tecnológico da força do vapor, pudesse remover as pessoas e cilindrá-las socialmente. No entanto, o amadurecido fenómeno da concorrência já era aceite como uma espécie de força natural. Assim, em fevereiro de 1844, o jornal "Aachener Zeitung" justificava a brutalidade dos donos da obra nas empreitadas de trabalho doméstico na Silésia com as coerções da concorrência estrangeira, sem se esquecer de chorar algumas filantrópicas lágrimas de crocodilo depois:

"O preço tem de cair se de outro lugar vier uma concorrência favorecida pelas circunstâncias. Estas circunstâncias incluem sobretudo o mais baixo preço do capital. Se estas circunstâncias forem tão favoráveis que ultrapassem os direitos aduaneiros, a indústria estrangeira esmagará a indústria nacional e, se tal não for o caso, obrigará o proprietário da fábrica nacional a reduzir o salário para poder fazer face à concorrência estrangeira, mas tendo de reduzir os salários dos trabalhadores. Foi o que aconteceu na Alta Silésia. O apoio ao infeliz é nobre, e que todos os amigos da humanidade se apressem a remediar esta miséria [...]" (citado de: Kroneberg/Schloesser 1980, 74).

Começou uma espécie de "debate sobre a localização do investimento" que ainda hoje continua num nível muito mais elevado de desenvolvimento. Os constrangimentos bastante reais do início da concorrência internacional foram utilizados como meio de chantagem social para colocar os trabalhadores têxteis num nível de pobreza ainda mais baixo. A conclusão não foi a insustentabilidade do modo de produção capitalista, mas sim a esperança de uma redenção técnico-científica, que em algum momento viria das próprias forças da máquina. A ignorância dos mistérios económicos do capitalismo levou o senso comum a utilizar os efeitos benéficos da poupança mecânica de força de trabalho contra a ameaça dos efeitos sociais. Em janeiro de 1844 o "Privilegierte Schlesische Zeitung" fez considerações sobre o futuro industrial perante a miséria do tecelão:

"As máquinas estão aí, são um produto dos tempos avançados, um resultado de toda a cultura e indústria nacional [...] Se cem fiandeiros manuais não são capazes de produzir durante toda a semana tanto quanto uma máquina num dia ou numa hora, não seria loucura usar cem forças humanas numa actividade que pode muito bem ser feita por forças da natureza, por forças mecânicas? O princípio de deixar o poder da máquina fazer tudo o que pode ser feito através dele, e então usar o poder humano, o nobre poder humano, para um negócio onde nenhum poder de máquina é suficiente, é bastante humano. As máquinas são meios na mão de Deus para a redenção da humanidade, para despertar a consciência da sua dignidade [...]" (citado de: Kroneberg/Schloesser, op. cit., 70).

No que diz respeito aos tecelões em pessoa em sua situação actual, o mesmo ensaio sobre a industrialização futura tinha, por enquanto, apenas a sugestão de que eles deveriam ser realocados em algum lugar. Mas o empobrecimento e a ameaça de desemprego em massa como efeito das novas máquinas não podiam ser simplesmente ignorados. Contra a euforia técnica inicial de uma crença positivistamente castrada no progresso, há muito que se ouviam argumentar vozes de advertência, embora bastante desamparadas. Em 1840, o economista Carl von Rotteck, por exemplo, expressou alguma preocupação no "Staatslexicon" sobre as consequências sociais da revolução industrial que também era previsível na Alemanha:

"Com tudo isso, por mais que exija o elogio mais caloroso e entusiasta, resta ainda um aspecto no qual o efeito das máquinas parece um tanto ambíguo, até mesmo prejudicial. Só agora está a surgir na nação uma divisão hostil entre os ricos invejados e odiados, por um lado, e os pobres desprezados e temidos, por outro. Não só o trabalho lucrativo ao serviço dos ricos carece agora dos pobres, como também perde a possibilidade de recompensar o emprego como produtor livre ou independente. O que se consegue produzir com o trabalho mais extenuante das próprias mãos (e apenas com a ajuda de ferramentas simples) não chega mais para a alimentação do próprio e dos seus" (citado de: Treue/Manegold 1966, 194s.).

Considerações pessimistas deste tipo, no entanto, permaneceram fenomenologicamente limitadas e sem qualquer consequência. O capitalismo, que mal tinha sido identificado como tal, tornou-se um acontecimento social natural na forma da Primeira Revolução Industrial, cujos paradoxos só então começavam a vigorar plenamente. Por que razão não foi possível que a poupança de força de trabalho através de maquinaria que até então nunca tinha sido considerada possível funcionasse como um aumento do bem-estar social e como uma solução para os problemas sociais? Esse era (e ainda é) o grande problema dos preços.

 

 

A razão da economia empresarial

 

Antes do nascimento do monstro capitalista, já havia mercados para a produção artesanal de nível relativamente baixo: Como a grande maioria de camponeses, os artesãos estavam organizados em família no seu modo de produção, ou seja, não havia uma cooperação social muito ampla entre as actividades. O baixo grau de trabalho em rede na produção tornava necessário colmatar as lacunas da socialização através da troca, ou seja, através dos mercados. Mas estes mercados não só eram em grande parte locais e regionais (devido à dificuldade dos meios de transporte), mas também sem qualquer mecanismo de concorrência. Por isso de modo nenhum podem ser comparados com a economia de mercado capitalista.

Porque é que não havia concorrência? Muito simplesmente porque estes mercados não se tinham tornado independentes enquanto sistema. Os artesãos produziam separadamente uns dos outros, cada um por si, e a socialização só poderia ocorrer através do mercado, como troca de produtos acabados; mas essa troca não era anónima nem seguia mecanismos cegos. Pois os trocadores conheciam-se muito bem, e também possuíam uma metacomunicação entre si, que era organizada em certos corpos (corporações, conselhos, etc.). Estas entidades "planeavam" o volume de mercado, por assim dizer. A procura e a produção eram conscientemente pesadas uma com a outra. Tal significava que o número de produtores tinha de permanecer estritamente limitado a uma determinada população e a um determinado nível de necessidade. Apenas de acordo com o crescimento da população poderiam ser admitidos novos produtores para os respectivos ramos de produção. O que deveria assegurar um equilíbrio constante entre a produção e o consumo mútuos, incluindo um correspondente equilíbrio do poder de compra mútuo. Em tal sistema (que existia apenas à margem de uma enorme economia natural agrária) não havia espaço para a concorrência.

Esta regulamentação rigorosa também se aplicava necessariamente aos métodos de produção. Porque na separação da produção real espreitava sempre a possibilidade abstracta da concorrência, da tentativa de assim lutar com meios de produção melhorados por uma maior quota de mercado à custa dos colegas. No entanto, era considerado desonroso tirar o pão aos outros desta maneira. A fim de dar ênfase a este consenso moral, a maioria das corporações emitiu uma proibição estrita de alterar os instrumentos (ferramentas) e métodos de produção através de inovações técnicas. Por exemplo, o regimento corporativo da cidade de Thorn diz: "Ninguém deve pensar, inventar ou usar algo novo, mas todos devem seguir o seu próximo por amor cívico e fraterno" (citado de: Eichberg 1975, 18). Deste modo, não poderia haver nenhum cálculo de economia empresarial para uma unidade de produção individual, nem sequer o que hoje se chama "economia empresarial". Em vez disso, havia apenas um processo técnico tradicionalmente codificado, uma espécie de colecção de receitas para o processamento das matérias-primas, misturada com ensinamentos morais sobre as relações sociais na produção (entre homem e mulher, pais e filhos, mestres e oficiais ou aprendizes, senhores e servos). Os comités das corporações, as reuniões de conselhos, etc. tinham de vigiar essa estrutura socioeconómica, resolver disputas e, no máximo, fazer pequenas mudanças controladas.

Este sistema, que o feudalismo deixou em grande parte em paz na sua estrutura, mas foi explorado economicamente através dos impostos, não era de modo nenhum irracional e destrutivo em si mesmo, na medida em que estava orientado para um equilíbrio social e "meios de subsistência" (embora limitados) para todos os membros da sociedade. Mas também era tacanho, estúpido, mesquinho, imbecilizado no parentesco de sangue e estático até a fossilização. No entanto, não foi destruído a partir de dentro, por um movimento emancipatório dos seus próprios membros para além do seu horizonte limitado, mas por uma tremenda repressão vinda de fora, nomeadamente pelas imposições dos aparelhos estatais absolutistas e, mais tarde, da livre iniciativa liberal. Como a instalação de mercados anónimos em grande escala e a consequente independência do dinheiro desencadearam uma concorrência que antes era moralmente criticada com severidade, nasceu ao mesmo tempo a "economia empresarial", ou seja, o cálculo da economia empresarial particular da unidade de produção individual contra todas as outras e sem instituições de metacomunicação reguladora. O Estado moderno com seus aparelhos não foi uma extensão e aperfeiçoamento dos antigos comités corporativos e reuniões dos conselhos, antes pelo contrário, como uma aberração do absolutismo, foi o poder externo e estranho que destruiu a comunicação autónoma entre os produtores para submetê-los às leis de um sistema abstracto e independente.

Neste contexto, é de crucial importância compreender a alternativa histórica que reside fundamentalmente na utilização de máquinas economizadoras de força de trabalho. A longo prazo, é impossível impedir que a imaginação e a actividade humanas façam invenções. Mas esta necessidade não tem necessariamente de conduzir a uma concorrência total. O efeito da poupança de força de trabalho também pode ser tomado literalmente a um determinado nível de produção: nomeadamente como a maravilhosa possibilidade de simplesmente trabalhar menos, de ter mais tempo para o lazer.

A timorata tacanhez das unidades de produção familiares e das corporações poderia, portanto, ter sido quebrada por um consenso consciente sobre o desenvolvimento de forças produtivas, em que a relação entre a expansão da produção e as necessidades, por um lado, e o encurtamento do tempo de trabalho e o aumento do tempo de lazer, por outro, fosse constante e repetidamente discutida e determinada em conjunto. Isto teria, naturalmente, exigido a abolição do dualismo das relações de mercado e da comunicação dos conselhos dos produtores isolados, através de uma produção planeada e convergente em termos de comunicação e, assim, em vez de determinar os volumes de mercado, a própria produção, agora directamente social, seria determinada por decisões. Só deste modo seria possível equilibrar o aumento da produção resultante do desenvolvimento das forças produtivas com uma redução das horas de trabalho para todos.

Está provado que havia a possibilidade de introduzir inovações técnicas neste sentido por acordo conjunto. Na chamada Idade Média, pode certamente observar-se um desenvolvimento técnico que poderia ter sido forçado por um movimento emancipatório autónomo de produtores. De facto, as organizações sociais medievais e mesmo as corporações não se opunham de um modo geral às invenções; mesmo durante este período, houve inovações que pouparam força de trabalho, como a azenha ou as máquinas de elevação nas minas. Só que vigorava o princípio de que o "alimento" não pode ser retirado aos outros membros da sociedade através das inovações. Em princípio, teria sido possível, portanto, controlar as forças produtivas neste sentido e desenvolvê-las conjuntamente.

Mas, antes que esta possibilidade pudesse ser considerada e experimentada, a concorrência das unidades empresariais, desencadeada pelo absolutismo no contexto dos grandes mercados anónimos, impôs-se pela força. Os latifundiários da pequena nobreza e os arrendatários privados ingleses tinham tão pouco a ver com os velhos sistemas de comunicação dos produtores como os agrocapitalistas latifundiários proprietários de escravos, os administradores das fábricas estatais ou os capitalistas donos da obra nas empreitadas domésticas da produção têxtil e os primeiros empresários "livres" do sistema industrial inicial. Para todos eles, a questão da utilização de máquinas era bastante diferente, nomeadamente do ponto de vista da razão empresarial particular de uma empresa concorrente em mercados anónimos.

Deste ponto de vista, porém, não é razoável, ou é mesmo louco, utilizar o poder das máquinas para poupar força de trabalho, para um maior lazer dos produtores. Pelo contrário, os ganhos de produtividade têm de ser gastos inteiramente na concorrência, a fim de obter quotas de mercado adicionais ou manter as existentes. Onde não há comunicação entre os próprios produtores e onde a relação entre produção e consumo não é deliberadamente regulada consciente e discursivamente, há apenas uma lei: a lei da "redução de custos" empresariais a qualquer preço, para que a "competitividade" seja estabelecida. Uma vez que todos os participantes anónimos no mercado estão constantemente sob este constrangimento, há também um desenvolvimento constante das forças produtivas, mas sem qualquer comunicação e, portanto, com efeitos paradoxais.

O paradoxo social deste desenvolvimento capitalista das forças produtivas pode ser visto em vários níveis. Em vez de reduzir as horas de trabalho necessárias para todos, a "razão" da economia empresarial exige que alguns estejam completamente "desempregados" e desprovidos de todos os meios de subsistência, enquanto para os outros, supostamente mais felizes por manterem os seus "postos de trabalho", as horas de trabalho podem mesmo ser acrescidas e a intensidade do trabalho aumentada. Pois é isto que aumenta a vantagem competitiva. Aumento da produtividade e menos força de trabalho, fazendo-a simultaneamente trabalhar cada vez mais tempo, significa uma melhoria adicional na relação económica entre, por um lado, a despesa de capital (adiantado para meios de produção e força de trabalho) e, por outro, o produto obtido, ou o dinheiro que pode ser gerado por ele. E é apenas este rácio abstracto de input-output, expresso em moeda, que é importante para o cálculo da economia empresarial.

Mas não é apenas o resultado social desse cálculo que é paradoxal e expõe a razão da economia empresarial como loucura social. O modo de produção capitalista também se torna assim uma autocontradição lógica insolúvel. Pois, por um lado, seu absurdo fim-em-si, de transformar a acumulação de "trabalho abstracto" em acumulação de "valor" económico, apresenta-se como o crescimento pulsante do capital monetário por amor de si mesmo. Por outro lado, no entanto, a mesma razão louca, com o desenvolvimento crescente das forças produtivas, substitui o trabalho humano por agentes técnico-científicos, corroendo assim a substância da própria "criação de valor". Se cada vez menos trabalhadores produzem uma massa cada vez maior de produtos, então a partir de um certo ponto este processo já não pode ser descrito como "criação de valor" e crescimento do dinheiro. Nos mercados, este absurdo deve finalmente aparecer como um desequilíbrio flagrante entre o crescimento da massa de produtos e a diminuição do poder de compra.

A "mão invisível" do capital sem sujeito – e, portanto, sem comunicação – e da máquina do mercado, que Kant e Smith tinham elevado ao estatuto de Deus terreno, não pode, em última análise, conduzir ao bem-estar geral, mas apenas a uma autocontradição fundamental e, assim, à crise social do sistema de mercado autonomizado. Este potencial de crise interno ao capitalismo está fora de qualquer dúvida. É a paga pelo facto de a comunicação humana nas instituições sociais ter sido substituída por uma paradoxal comunicação das mercadorias e dos seus preços entre si no mercado anónimo. Produtores e consumidores, compradores e vendedores já não se identificam através da mediação de uma comunicação social comum, mas desintegram-se: mesmo nos próprios indivíduos, que na sua qualidade de consumidores desenvolvem um interesse contrário a si próprios na sua qualidade de produtores (por exemplo, após a integração, a antiga população da RDA contribuiu para a destruição da sua própria base de produção através do consumo preferencial de bens ocidentais). O silencioso mecanismo do preço substitui a autocompreensão consciente dos actores humanos. E o processo sistémico cego, inacessível e inegociável daí resultante leva repetidamente como consequência lógica ao mesmo dilema, porque só pode desbobinar sempre o mesmo programa embutido. Como uma máquina.

Assim, a flagrante discrepância histórica do capitalismo entre o aumento das potencialidades humanas, por um lado, e a criação de sempre novos potenciais de pobreza e crise, por outro, é explicada pela razão socialmente irracional do cálculo da economia empresarial. O equívoco desta razão é que ela nega sistematicamente o carácter social do desenvolvimento das forças produtivas, invertendo-o no seu oposto. O desenvolvimento das forças mecânicas não conduziu, pois, como teria sido necessário e razoável, a uma comunicação prévia dos antigos produtores artesanais sobre o controlo conjunto da própria produção em rede, mas, pelo contrário, fez com que também a comunicação a posteriori fosse suprimida sem substituição.

O aumento dos potenciais técnico-científicos tem de ser desperdiçado deste modo na luta geral pela sobrevivência na concorrência, enquanto as pessoas se empurram mutuamente numa grotesca autolesão em busca do resultado global cego do seu próprio cálculo egoísta limitado e economicamente associal. E como essa lógica destrutiva é inseparável da essência do capitalismo, também permaneceu válida até hoje, continuando a desenvolver os seus efeitos. Todas as tentativas subsequentes de regulação da política social e económica têm, em última análise, de sucumbir repetidamente à pressão interna, por assim dizer osmótica, da louca racionalidade da economia empresarial.

 

 

Os moinhos do diabo

 

Sob o ditame do cálculo da economia empresarial, a Primeira Revolução Industrial não poderia mitigar as catástrofes sociais do capitalismo, mas apenas agravá-las. A concorrência do trabalho escravo barato do agro-capitalismo periférico e a concorrência das manufacturas estatais baseadas na divisão do trabalho foram potenciadas pela concorrência do sistema das máquinas. Já os primeiros tempos da nova era industrial levaram, portanto, ao primeiro desemprego estrutural em massa, tecnologicamente forçado, como o que se pode observar novamente hoje em dia em escalas muito mais elevadas. Mas, no início do século XIX, este desemprego deveu-se à transformação do novo sistema industrial emergente, e afectou sobretudo os produtores artesanais em declínio, que então tiveram de capitular para sempre. Além disso, concentrou-se no único grande e ainda assim paradigmático ramo de produção da indústria têxtil, enquanto em outras áreas as velhas condições duraram muito mais tempo.

Tanto na própria Inglaterra como em toda a Europa, todo o artesanato têxtil foi arruinado pelos produtos baratos das fábricas inglesas. Os fiandeiros e tecelões do Goethe de 1820 tinham visto com razão a coisa feia, e até a revolta dos tecelões da Silésia de 1844 foi indirectamente causada pela concorrência das máquinas. Todo o sistema de trabalho doméstico por empreitada com a indústria doméstica dele dependente se dissolveu e foi substituído por fábricas com grandes agregados de máquinas, cada vez mais movidas a vapor. A "pobreza operária" dos assentamentos dos tecelões da Silésia e da Boémia, espremida pelos donos da obra, transformou-se no desemprego total e na desertificação social de regiões inteiras.

A primeira grande onda de desemprego em massa e pobreza vagabunda surgira no século XVI entre a população rural, com a concorrência dos latifúndios esclavagistas virados para o mercado mundial e as brutais acções de expulsão dos latifundiários, como na Inglaterra, que precisavam de espaço para sua lucrativa criação de ovelhas. Os camponeses arruinados e expulsos afluíram às cidades, especialmente a Londres, onde formaram um exército de milhões de sedimentos sociais "desempregados", em favelas espalhadas ("bairros de lama") que encheram as cidades em grandes aglomerações. Encontramos o mesmo processo em todo o Terceiro Mundo de hoje: alguns são forçados a condições de escravidão nas plantações do mercado mundial, outros migram para as favelas das cidades de 10 e 20 milhões de habitantes, que ainda estão em constante crescimento. A imagem horrível de tal "Terceiro Mundo" era então Londres (e voltou a ser hoje sob o regime neoliberal).

Com a revolução industrial veio a segunda grande onda de desemprego em massa, que logo se espalhou por todo o sector têxtil. À miséria dos antigos agricultores juntaram-se agora as massas dos antigos produtores têxteis desempregados; e, através da concorrência nos mercados, este processo propagou-se ao Continente em grande escala. Apenas uma parte dos desempregados encontrou uma nova vida no sistema fabril emergente. Mas em que condições! As populações completamente desenraizadas tiveram de se vender a qualquer preço, sendo sujeitas a formas de trabalho que ridicularizavam qualquer descrição. Além dos trabalhadores agrícolas semi-escravos, mendigos, vagabundos, reclusos das casas de trabalho e das casas pobres e trabalhadores ocasionais marginalizados, surgiu uma nova categoria de "trabalhadores pobres": o proletariado fabril.

Nem todos os intelectuais eram tão ignorantes e cínicos dessa humilhação do ser humano como os grandes filósofos do iluminismo. Mais ou menos na mesma altura em que a burguesa "máquina da virtude" do Dr. Guillotin entrou em acção, e o pacato liberal Bentham concebeu a sua máquina de bater a baixo custo, o místico e romântico inglês William Blake (1757-1827) atacou o pesadelo do sistema fabril inicial em versos sombrios:

 

E a face de Deus brilhou outrora

Sobre o nosso campo nublado?

E Jerusalém foi edificada

Entre negros moinhos do diabo?

 

A poesia de Blake, que os filólogos modernos (e até mesmo os contemporâneos "de alta cultura") frequentemente percebem como extravagante, era, na realidade, como observa o historiador social inglês Edward P. Thompson, "a voz única e não adulterada de uma longa tradição popular" (Thompson 1987/1963, 57); e justamente a última linha do verso do poema acima provou acertar em cheio: Os "Moinhos do Diabo" tornaram-se um rifão para designar as fábricas, que os humilhados e ofendidos do capitalismo podiam sentir no fundo do coração. Pois os "locais de trabalho" da Primeira Revolução Industrial eram de facto verdadeiros infernos. O descomedimento do cálculo da economia empresarial, justamente através de máquinas de poupar trabalho, forçou a um regime de trabalho draconiano, que chegou até ao esgotamento físico total dos trabalhadores. Isto dizia respeito tanto às condições de trabalho directas como às condições gerais de vida. O sistema fabril industrial capitalista privado continuou, superou e generalizou os piores fenómenos do sistema de manufactura estatal.

Há uma riqueza de documentos e pesquisas sobre os infernos fabris da Primeira Revolução Industrial na Inglaterra. O trabalho apresentado por um jovem intelectual alemão em 1845 é ainda insuperável a este respeito: como filho do proprietário duma fiação de Wuppertal, ele tinha passado algum tempo em negócios na Inglaterra e estudado a nova "questão operária" do sistema fabril do seu próprio ponto de vista com grande interesse. O livro de Friedrich Engels, de 25 anos, sobre A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra não só atraiu a atenção contemporânea com a sua visão incorruptível das condições das fábricas da época, mas também oferece exames fundamentais sobre os mecanismos de destruição social da racionalidade da economia empresarial em geral.

Claro que os aspectos mais marcantes são os dos "moinhos do diabo", que o homem médio capitalista da Europa Central e Ocidental considera estarem hoje ultrapassados, tomando-os displicentemente como um mau conto de fadas de um tempo há muito passado. Isto aplica-se, em particular, aos horrores de horários de trabalho desumanamente longos, ao trabalho infantil e às condições de vida de uma miséria absoluta. Se o capitalismo inicial tinha aumentado gradualmente os tempos de trabalho desde o século XVI, o sistema fabril capitalista industrial não conheceu limites a este respeito. O cálculo da economia empresarial conduziu o tempo de trabalho diário até 12, 14, 16 e por vezes mais horas, e as crianças foram as menos poupadas. O canibalístico devorar das crianças pela economia de mercado passou da forma indirecta de pobreza mendiga dos que tinham caído fora da sociedade (como em Swift) para a moagem directa de corpos infantis nas fábricas. Mesmo os comissários nomeados para investigar estas circunstâncias, que na realidade eram muito favoráveis ao empresariado liberal, recuaram perante uma tortura tão infernal. Engels cita um relatório de investigação relevante do Comissário Dr. Loudon:

"Considero estar demonstrado claramente que as crianças são obrigadas a trabalhar em jornadas cruel e irracionalmente longas e que inclusive os adultos estão sobrecarregados com um trabalho que nenhum ser humano pode suportar. As consequências são que muitos morrem prematuramente, outros sofrem por toda a vida os efeitos de uma constituição deficiente [...]" (Engels 2010/1845, 195).

Assim se apresentava o efeito social das máquinas economizadoras de trabalho na prática da economia de mercado que "aumenta o bem-estar". A fome sem limites da máquina do capital por quanta de trabalho humano abstracto não omitiu realmente nenhuma abominação, como nota o jovem Engels cheio de raiva:

"E tudo isso é pouco diante de actos singulares de barbaridade: sabe-se de crianças arrancadas nuas da cama pelos vigilantes, que as empurram a socos e pontapés para as máquinas, a que chegam com as roupas ainda debaixo do braço [...]; sabe-se de crianças mantidas acordadas no trabalho mediante pauladas; sabe-se de uma criança que, adormecendo após as máquinas pararem e sobressaltada por um vigilante, fazia, de olhos fechados, os gestos mecânicos do trabalho; sabe-se de crianças que, exaustas para voltarem para casa, escondiam-se sob a lã na secção de secagem e eram postas para fora somente a golpes de chibata; sabe-se de centenas de crianças que, exauridas, chegam a casa e nem sequer têm vontade de comer e adormecem antes de ir para a cama [...]. Quando, no relatório da Comissão que investigou as fábricas, se toma conhecimento de tudo isso, e de centenas de outras infâmias e horrores, tudo declarado sob juramento, confirmado por vários testemunhos, exposto por pessoas que os próprios inspectores qualificam como dignas de fé [...] quando consideramos que os próprios inspectores estão do lado da burguesia e só a contragosto relatam esses factos, então como não indignar-se, como não encolerizar-se contra essa classe que, travestida de humanidade e de altruísmo, se importa exclusivamente em encher os bolsos à tout prix?” (Engels, loc. cit., 203)

Talvez Engels ainda não tivesse lido Bentham o suficiente para entender tudo isso e considerá-lo "natural". Mas a desumanidade era tão impiedosa precisamente porque não provinha de um mero vício subjectivo de enriquecimento, mas das condições estruturais de concorrência e racionalidade da economia empresarial, que objectivam até mesmo o ser humano mais gentil através dos efeitos das suas acções economicamente determinadas, numa bestialidade que nem um sádico supervisor dum campo de concentração poderia pensar pior.

O facto de o trabalho infantil poder ser "utilizado" em grande escala deveu-se novamente às máquinas, que não só poupavam trabalho em si mesmas, mas também substituíam a força muscular humana pela força do vapor. As crianças não são competitivas e têm pouca capacidade organizativa. O trabalho da criança e a extensão excessiva das horas de trabalho seguiram assim como que por si o cálculo económico, cuja astúcia obrigava agora homens adultos a competir com o preço barato do trabalho infantil. A ruína dos artesãos autónomos foi assim acelerada tremendamente, porque eles não conseguiam sobreviver contra a combinação de uso de máquinas e força de trabalho infantil barata, e seu rendimento caiu vergonhosamente abaixo do nível de subsistência, como mostrou um estudo sobre os salários dos trabalhadores têxteis em Württemberg no início do século XIX: "Um fiandeiro manual de Württemberg com um tempo de trabalho das 6 às 22 horas ganhava então tanto como uma criança numa fábrica de fiação mecânica com um tempo de trabalho de 12 a 14 horas, e metade a um terço do salário de uma trabalhadora fabril adulta" (Fischer 1992, 140).

 

Em muitos casos, os homens adultos ficaram desempregados, enquanto as crianças e as mulheres eram empregadas a baixos salários nas fábricas industriais. E é uma farsa atribuir tais circunstâncias a uma mera aberração histórica e considerá-las como tendo sido fundamentalmente ultrapassadas hoje. O facto de mesmo nos países centrais ocidentais ter sido necessário mais de um século de amargas disputas para aliviar pelo menos as brutalidades mais grosseiras do sistema fabril mostra apenas uma coisa: o liberalismo, ancorado no cálculo económico, tende, por princípio e independentemente de qualquer sentimento subjectivo, a repetir as atrocidades capitalistas dos "moinhos do diabo" assim que fica à solta. A extensão excessiva do horário de trabalho e a utilização excessiva do trabalho infantil são inerentes à estrutura da racionalidade económica enquanto tal, independentemente do nível tecnológico, e podem surgir novamente a qualquer momento, enquanto esta racionalidade em si não for destruída por um levantamento emancipatório contra a economia de mercado.

Na verdade, o trabalho infantil só pôde ser eliminado em alguns dos países historicamente vencedores do mercado mundial (e mesmo nestes temporariamente). Para a maior parte da humanidade, o esgotamento da força de trabalho humana do início da industrialização e, especialmente, o trabalho infantil, com todos os seus horrores, nunca cessou; hoje, com tais métodos tenta-se manter a periferia capitalista competitiva com a alta aplicação de capital dos centros.

Uma vez que o cálculo económico se tornou reconhecido de vez e axiomático, a consciência social da sociedade tende a encobrir os efeitos e a percebê-los apenas distorcidos; somente as mentes mais brilhantes do pensamento afirmativo mostram, com um cinismo aberto, que vêem claramente os factos. Os primeiros empresários industriais viam-se em grande parte com seriedade como benfeitores que tiravam da rua as crianças mendigas e as levavam para uma actividade "útil" (cautela, é Bentham!). O teórico da gestão liberal Andrew Ure (1778-1857) pretendia ter visto as seguintes cenas paradisíacas, ao olhar para as crianças nos moinhos do diabo:

"Era delicioso (delightfull) observar a agilidade com que reuniam os fios rompidos em cada recuo do carreto da máquina de fiar [...] O trabalho desses elfos velozes (lively) parecia um jogo, que executavam com a encantadora destreza de um longo treinamento." (citado por Engels, op. cit., 204).

Não muito diferente é a maneira de ver as coisas hoje na periferia capitalista – e indirectamente também nas organizações de caridade ocidentais, que não sonham em atacar a economia de mercado nem o seu inerente cálculo económico. Desde que este sistema se tornou supostamente "sem alternativa" após o colapso do socialismo de Estado, ocorreu uma mudança ideológica tão surpreendente quanto conformista, mesmo em instituições cristãs de apoio a crianças. O trabalho infantil industrial nos países da periferia capitalista é agora justificado em princípio com quase os mesmos argumentos que os dos primeiros empresários industriais; a alternativa é apenas a mendicidade, a prostituição e um empobrecimento ainda maior das famílias. Isto só é verdade dentro da economia de mercado, mas quem pode aceitar tal alternativa sem se desacreditar completamente? As organizações de ajuda estão, portanto, demasiado dispostas a deixar-se guiar por "especialistas" liberais e, como alunos do modelo da economia de mercado, estão a dar lições apressadas sobre "necessidades económicas" e apenas a orientar-se para um alívio e melhoria social (ingenuamente considerados viáveis) do trabalho infantil global, que, de resto, ainda hoje está largamente concentrado na indústria têxtil. Assim, essas organizações provam involuntariamente que toda aceitação fundamental da economia de mercado como forma geral de reprodução transforma automaticamente, até mesmo o benfeitor mais convicto, num monstro objectivado do capital, que acredita na calma de Bentham a ocupar-se com a "felicidade" da humanidade.

E porque os "moinhos do diabo" continuam a girar dia a dia para milhões de crianças, e o fim deste inferno só poderia ser alcançado combinando a actividade de auxílio com a crítica radical do modo de produção capitalista e do seu sistema de mercado, mas isso é negado – por isso a palavra dos terroristas de todas as cores, que reagem irracionalmente à louca razão do iluminismo, acerta em cheio como boomerang nesta razão: "Não há inocentes". A bomba que despedaça o transeunte é tão inútil como a incessante queima de carne infantil na economia de mercado, pela qual o transeunte não tem qualquer responsabilidade pessoal, mas na qual esteve sempre envolvido sem pensar. Se a máquina social produz tais efeitos, o jovem Engels proclama no seu primeiro livro que

"isso é assim um assassinato idêntico ao perpetrado por um indivíduo, apenas mais dissimulado e pérfido, um assassinato contra o qual ninguém pode defender-se, porque não parece um assassinato: o assassino é todo mundo e ninguém, a morte da vítima parece natural, o crime não se processa por acção, mas por omissão – entretanto não deixa de ser um assassinato." (Engels, op. cit., 136).

Mas não são de modo nenhum apenas o excesso de horas de trabalho e o trabalho infantil, ainda não ultrapassados à escala mundial e inerentes ao cálculo económico, que constituem o carácter dos "moinhos do diabo". Mesmo que o horário de trabalho fosse reduzido um pouco e o trabalho infantil abolido, aqueles momentos irrevogáveis da gestão empresarial que Karl Marx designou com o termo geral de "alienação" permaneceriam: Aqueles que têm de ganhar dinheiro nos "negros moinhos do diabo" têm de se tornar estranhos para si mesmos sem sequer notar isso no final. Este não é, de modo nenhum, um assunto difícil de entender. Pois o fim-em-si objectivado da valorização do capital priva os assalariados, e também os gestores, de qualquer autodeterminação sobre a relação entre os fins e os meios do seu trabalho. Somente a desintegração da produção e do consumo, a actividade anónima para o mercado anónimo sem a compreensão consciente do significado e da finalidade do conteúdo, impulsionada pelas coerções da concorrência, transforma a actividade de todos os participantes em "trabalho abstracto". "O trabalhador", escreveu o emigrante Karl Marx, aos 28 anos, em 1844, no seu caderno de Paris, "só se sente em si fora do trabalho e no trabalho está fora de si" (Marx 1968/1844, 55). E o jovem Engels, no seu livro publicado um ano depois, resumiu pela primeira vez a atitude para com a vida que o trabalhador que ganha dinheiro nunca deixou de lado até hoje, mesmo que ela tenha caído no inconsciente:

"Nada é mais terrível que fazer todos os dias, da manhã até a noite, um trabalho de que não se gosta. E quanto mais sentimentos humanos tem o operário, tanto mais odeia o seu trabalho, porque sente os constrangimentos que implica e a sua inutilidade para si mesmo. Afinal, por que trabalha? Pelo prazer de criar? Por um instinto natural? Nada disso: trabalha apenas por dinheiro, por uma coisa que nada tem a ver com o trabalho mesmo [...]" (Engels, op. cit., 157/8).

A fábrica e o escritório tornam-se um espaço funcional do tempo abstracto e da actividade abstracta, separado de todas as expressões próprias da vida. Mesmo a disposição dos espaços e a forma como as máquinas são colocadas estão sob o feitiço da coerção objectivada, cujo executor é a concorrência. Tenho trabalhado muitas vezes em fábricas e tenho notado repetidamente como, especialmente as mulheres (de acordo com o papel de género para que foram treinadas, que as condiciona para a preparação acolhedora da "casa"), tentam, de uma maneira tocante, contrabandear algum momento de "aconchego" para o moinho do diabo, por exemplo, pendurando uma coroa de Advento numa sala de máquinas. Isto, é claro, torna ainda mais grotesca a forma desumana do espaço funcional capitalista.

Aqui nada é devido ao carácter da actividade social em si, mas tudo é devido à preparação para o fim-em-si do dinheiro. E porque a desumanização do espaço funcional não surge por si só a partir da mera interacção das pessoas, a este respeito ocorre uma luta mais ou menos oculta entre "empregados" e gestão, cuja história ainda não foi escrita. Um conhecido da antiga RDA contou-me como se tinham saído os trabalhadores de uma fábrica de brinquedos na Turíngia, que esperavam milagres do marco alemão e depois tiveram a surpresa das suas vidas: além do facto de metade dos trabalhadores terem saltado para a rua imediatamente, os restantes tiveram desde logo os seus pequenos espaços para café e "dois dedos de conversa" removidos como "perturbadores da eficiência", e a utilização de ferramentas para fins pessoais, que antes tinha sido dada como garantida, foi proibida.

Seria fácil reunir um conjunto de cartazes, avisos e regulamentos que provam todos a mesma coisa, nomeadamente a pressão directa e indirecta sobre os "empregados" para se tornarem invisíveis como pessoas no período funcional capitalista, para se transformarem tão completamente quanto possível em máquinas de gastar energia e, assim, estarem "fora de si no trabalho". Engels cita, por exemplo, um regulamento de fábrica inglês: "qualquer operário que for surpreendido conversando com outro, cantando ou assobiando pagará multa [...]; a mesma multa será devida por quem se ausentar de seu posto durante o trabalho" (loc. cit., 214). Regulamentos muito semelhantes podem ser encontrados na história da industrialização alemã. Em toda a parte a "exigência de educação" capitalista ao material humano estava associada a um sistema de penalizações na fábrica, ou seja, havia deduções salariais para "má conduta" de todos os tipos. O "Livro vermelho das penalizações" da primeira fábrica alemã de máquinas Koenig und Bauer, perto de Würzburg, fundada em 1817, sobreviveu. Com multas entre 8 Pfennig e 20 Groschen e indicação dos nomes de trabalhadores que foram punidos, entre outras coisas por causa dos seguintes "delitos":

"Entrou numa discussão a dois; pôs-se a andar supostamente à procura de uma broca; estava doente na segunda-feira manhã cedo, o resto do dia também não esteve bom; foi chamado ao tribunal distrital por causa da repreensão do pastor; por troca de carícias; por ter desaparecido 12 horas por causa do casamento, e ainda ter adormecido; por brincadeiras infantis; por desobediência; por uma briga na pousada; jogou fruta pela janela; por petulância; dormiu no trabalho" etc. (citado em Deneke 1987, 113s.).

E o "Regulamento Fabril Geral das Fábricas de Gelatina de Carl Simeons" em Höchst, de 1869, diz, entre outras coisas:

"Nenhum trabalhador deve ser autorizado a trazer bebidas para a fábrica através de parentes ou estranhos [...] Os trabalhadores não devem ser autorizados a conversar com estranhos [...] Nenhum trabalhador deve ser autorizado a permanecer nas instalações da fábrica sem autorização especial após a conclusão do trabalho ou durante as horas de descanso [...] Em todas as salas de trabalho e oficinas deve haver sempre sossego e silêncio, sem assobios, cantos ou tagarelice desnecessária e sem negócios nem jogos" (citado de Eiler 1984, 264s.).

Ainda hoje, há uma infinidade de regulamentações irracionais que são essencialmente de natureza semelhante (embora agora numa forma mais geral e abstracta) e que têm o mesmo carácter de aparelhamento e heteronomia como pano de fundo. Muitas coisas nem sequer têm de ser codificadas separadamente. Tenho visto muitas vezes capatazes e mestres, os "sargentos do capital" (Marx), ficarem inquietos quando alguém "durante as horas de trabalho" se senta, lê um jornal ou brinca; mesmo quando não há nada para fazer, aparece material para armazenar ou uma máquina que tem de ser ajustada.

Conceitos de gestão mais recentes e pós-modernos, que alegadamente visam alimentar o fim-em-si do capital através do aumento do bem-estar dos produtores, têm todos em si algo de limitado e falso. Como a finalidade da organização é externa às próprias pessoas, elas só podem estar "consigo mesmas no trabalho" na medida em que deixam de ser pessoas e internalizam o estranho fim-em-si do dinheiro. Por isso a redução funcional não pode ser evitada. Se, por exemplo, as cores das paredes são escolhidas de acordo com "considerações psicológicas" para (supostamente) aumentar a performance, então o adestramento do material humano é apenas refinado. O mesmo se aplica às formas "não hierárquicas", cujo único propósito é levar as pessoas a tornarem-se os seus próprios supervisores e motivadores, de acordo com o padrão de Bentham.

O facto de haver conceitos muito semelhantes de direcção no socialismo de Estado da RDA, por sua vez, aponta para o parentesco interno das modernas formações sociais produtoras de mercadorias. A categoria de "satisfação no trabalho" do socialismo de Estado, em cujo nome os psicólogos industriais foram lançados sobre os "empregados", é justamente a prova da presença da alienação, que é inseparável dos processos abstractos de valorização, sejam estes executados pelo cego mecanismo da concorrência ou pela burocracia estatal. Mas, involuntariamente, a administração burocrática estatal parece ter deixado mais lacunas "no trabalho" para nichos pessoais do material humano do que a silenciosa compulsão total da concorrência no capitalismo ocidental. Isso foi interpretado pelos ideólogos ocidentais como uma "falta de eficiência". O socialismo de Estado foi assim medido pela medida que se tinha imposto a si próprio na forma social de um sistema de produção de mercadorias.

É facilmente reconhecível que nos "moinhos do diabo" o sonho de um maníaco perigoso como Bentham foi finalmente generalizado socialmente. Partindo das fábricas estatais, das plantações esclavagistas para o mercado mundial, das casas de trabalho e dos manicómios, em que primeiro se praticou o "trabalho abstracto", o caso excepcional dos delinquentes converteu-se agora no estado social normal. Todos os elementos do Panóptico de Bentham podem ser encontrados no sistema da fábrica. Mesmo o termo "empregado" usado para o material humano se refere à origem do trabalho fabril e de escritório nas prisões e manicómios do século XVIII e nas loucuras dos seus moinhos de degraus e engenhosas máquinas de tortura pelo trabalho, que agora, aumentadas pelo poder do vapor, poderiam cair sobre toda a humanidade e levá-la à "utilidade" capitalista exigida por Bentham. Em Inglaterra, o material humano utilizado deste modo foi caracteristicamente designado por "hands" (mãos), o que torna clara a redução dos indivíduos a unidades de dispêndio de trabalho.

O louco sistema panóptico de Bentham pôde sedimentar-se nos agregados de máquinas do capital e, assim, aparecer como uma objectividade técnica e um pré-requisito da vida humana. Pois era isso que Bentham queria: a imposição capitalista deveria ser dessubjectivada em estruturas materiais para precisamente dessa maneira se tornar o traço de comportamento do "ser humano no seu íntimo”; e o que teria sido mais adequado para isso, para além de um aparelhamento arquitectónico e organizativo, do que uma matriz de processos técnicos que poderiam inocentemente apresentar-se como uma segunda natureza material? O fim-em-si da máquina capitalista mundial podia assim ser traduzido de um aparelho socioeconómico para um aparelho literalmente técnico que esconde a sua violência por trás de supostas "necessidades" das próprias forças produtivas aumentadas. Um guru da gestão de então como Andrew Ure estava bem ciente disso, ao contrário de muitos socialistas posteriores. Em 1835, em seu livro The philosophy of manufactures escreveu com bela franqueza, sobre o arranjo proporcionado pelas máquinas de fiar do inventor-empresário Arkwright:

"Na minha opinião, o principal problema de Arkwright não foi tanto inventar um mecanismo automático que pudesse puxar o algodão e tecer um fio contínuo, mas sim [...] fazer as pessoas esquecerem o seu dia de trabalho instável e identificarem-se com a ordem imutável de uma máquina complexa. Tratava-se de planear e gerir um sistema de disciplina fabril [...] Era preciso um homem com a coragem e a ambição de Napoleão para fazer face ao carácter recalcitrante dos trabalhadores que até então só tinham obedecido aos seus irregulares ataques de vontade de trabalhar" (citado por: Eimer 1984, 153).

Foi apenas com o sistema da máquina capitalista que foi dado o último passo para completar a redução do ser humano e da sua sociabilidade a um mecanismo funcional morto, ainda que esse acabamento passasse depois por outro longo desenvolvimento no terreno do próprio industrialismo capitalista. Em 1845, Friedrich Engels descreve o início desta última transformação.

"Vigiando máquinas ou atando fios rompidos, o operário não desenvolve uma actividade que lhe exige esforço mental, mas, por outro lado, esse tipo de trabalho impede-o de ocupar a mente com outros pensamentos […] Não pode desviar-se nem um momento: a máquina a vapor funciona ininterruptamente, as engrenagens, as correias e os fusos zumbem e tilintam sem parar nos seus ouvidos [...] O trabalhador tem de estar na fábrica às cinco e meia da manhã [...] Tem de comer, beber e dormir sob comando de outrem [...] O sino despótico arranca-o da cama, como o arranca do café da manhã e do almoço" (Engels, op. cit., 212s.).

A desumanidade deste "trabalho" parece, no entanto, resultar da própria força técnica produtiva; e neste ponto Engels, que não quer falar contra as modernas forças produtivas nem pecar contra elas, detém-se para depois se escapar, por assim dizer, argumentando lateralmente:

"Poder-se-á objectar-me que regulamentos são indispensáveis para assegurar, numa grande fábrica, bem organizada, a coordenação necessária às diversas operações – algo como uma disciplina militar. É provável. No entanto, que regime social é este, que não pode existir sem uma tão vergonhosa tirania? Ou o fim justifica os meios ou tem-se o direito de concluir que, sendo os meios tão horríveis, o fim é-o igualmente." (Engels, op. cit., 215).

Aqui aparece pela primeira vez, hesitante e ainda numa formulação negativa, a metáfora dos "exércitos de trabalho", que um pouco mais tarde já estava positivamente carregada no Manifesto Comunista: aqui se anuncia uma mentira vital do posterior marxismo que, na sua "viragem", acabaria por ter de levar a uma ideologia de modernização ela própria repressiva. O jovem Engels aqui ainda recua com horror perante tal perspectiva, mas ela já se impõe irresistivelmente, porque a abstracção social do capital materializada nas máquinas não podia ser conceptualmente separada das novas forças produtivas como potencialidade humana.

O meio intelectual em que Engels se encontrava e em que se movia (não só na Inglaterra), mesmo sob o novo signo do "socialismo", no qual a parte mais consistente da filantropia burguesa começava a transformar-se, tinha interiorizado a doutrina liberal da "disciplina do trabalho" e da sujeição do material humano à máquina de produção de valor abstracto; apenas que esta disciplina deveria ser formatada de um modo mais humano para o deus estrangeiro do "trabalho abstracto". Com toda a inocência, Engels celebra o relevante "trabalho educativo" de uma amálgama liberal-socialista, entre cujos ideólogos se destaca o filantropo da filosofia da utilidade e ideólogo da prisão do trabalho, Jeremy Bentham:

"Os dois maiores filósofos práticos dos últimos tempos, Bentham e Godwin, [...] são propriedade quase exclusiva do proletariado; embora Bentham tenha seguidores entre a burguesia radical, apenas o proletariado e os socialistas conseguiram desenvolver algum progresso a partir dele. Nesta base, o proletariado formou a sua própria literatura, consistindo principalmente em revistas e brochuras [...]" (Engels, loc. cit., 273).

Assim se reencontra uma pessoa. Em favor do jovem Engels, tem de se dizer que, em 1845, ele dificilmente ou apenas fragmentariamente conheceria os escritos e, portanto, as verdadeiras intenções de Bentham. Isso também é evidente pelo facto de que, no seu livro, algumas páginas depois, ele se indigna com a regulação e as condições das chamadas casas de trabalho para os pobres desempregados:

"Até a comida das prisões é geralmente menos ruim, e é por isso que, com frequência, os internados das casas de trabalho intencionalmente cometem um delito para serem presos. De facto, as casas de trabalho são prisões: quem não realiza sua cota de trabalho, não recebe alimentação; quem quiser sair depende da permissão do director, que pode negá-la pela conduta do internado ou com base em seu juízo arbitrário [...].Os pobres são obrigados a usar uniforme e não dispõem de nenhuma protecção em face do arbítrio do director [...] Na casa de trabalho de Greenwich, no verão de 1843, um menino de cinco anos teve por punição ficar trancado por três dias na câmara mortuária, onde teve de dormir sobre tampas de caixões. Na casa de trabalho de Herne aconteceu o mesmo com uma menina [...] Esta casa, situada numa das mais belas regiões do Kent, distingue-se das outras porque todas as suas janelas se abrem para o interior, para os pátios [...]"(loc. cit., 318s.).

Obviamente, sem o saber, Engels descreve aqui o Panóptico de Bentham, cuja realidade organizativa e arquitetónica já se tinha tornado uma coisa natural naquela época. Mas a ignorância não nos protege da pena, mesmo que esta estranha referência não interfira com o livro de Engels nem com a verdade do seu relato. Marx e Engels atacaram mais tarde, muitas vezes e com grande justificação, a lamechice fútil do "socialismo pequeno-burguês", e sempre castigaram as atrocidades liberais, sem no entanto penetrarem criticamente a constituição capitalista das novas forças produtivas também ao nível tecnológico e organizativo (por assim dizer, ao nível de Bentham). Dado que assim se deixa florescer a ideologia repressiva dos "exércitos do trabalho", encontramos aqui uma precoce ancoragem, tão inconsciente como escondida, do socialismo no liberalismo.

 

 

Destruidores de máquinas

 

As vítimas da Primeira Revolução Industrial, porém, não se deixaram levar calmamente e sem luta para o matadouro, tal como não o fizeram os agricultores e artesãos dos séculos anteriores. Durante muito tempo estas revoltas permaneceram pouco visíveis, tanto na ciência histórica burguesa como na teoria marxista. A ênfase mecanicista do progresso e da modernização bloqueou a compreensão de um grande movimento de massas, completamente independente e militante, que teve lugar "abaixo" da história oficial, e cujos contornos ainda hoje apenas esquematicamente são visíveis. Em parte, ainda que correspondendo à antiga cultura popular oral, não deixou nenhum testemunho oficial e escrito, em parte, esses testemunhos foram extintos com todo o ódio da visão do mundo mecanicista dos administradores humanos e dos chicoteadores capitalistas, em parte, porém, não se estava interessado nele, e provavelmente ainda hoje não foi feito o levantamento de muito material documental, ou este teria que ser completamente reinterpretado. Do ponto de vista do movimento operário posterior, estes foram sempre apenas "precursores" imperfeitos (não devendo, portanto, ser levados inteiramente a sério).

Só recentemente a orientação mais forte para a subcutânea história do quotidiano e do social mostrou um quadro diferente da época da imposição inicial do capitalismo que, no entanto, não foi suficientemente elaborado; e este problema está actualmente em perigo de ser novamente enterrado pela insensata orientação da corporação científica académica para a economia de mercado "sem alternativas". A recente canonização geral do sistema de irracionalidade capitalista, após o fracasso da "Nova Esquerda" ocidental e o declínio do socialismo de Estado oriental, faz com que não pareça oportuno nem promotor de carreira reabrir os mecanismos de adestramento humano de Bentham e a sua objectivação através da história da industrialização, nem processar historicamente a economia de mercado como um sistema coercivo imposto pelo sangue.

A história oficial tem pouco a ver com a história real; a imagem histórica que a sociedade burguesa moderna tem de si mesma continua a ser uma imagem distorcida. Na verdade, dificilmente aparece na consciência histórica que toda a época de transição para a Primeira Revolução Industrial foi marcada por uma permanente guerra civil, ora latente, ora aberta, em toda a Europa. A tremenda densidade e militância desse conflito tenaz foi cuidadosamente apagada nos livros de história e nas concepções da época.

Já o capitalismo pré-industrial dos donos da obra nas empreitadas domésticas e das manufacturas estatais foi acompanhado por numerosas revoltas e contramovimentos sociais; a revolta dos tecelões da Silésia não foi um caso isolado nem excepcional. Pelo contrário, foi apenas um evento médio, acidentalmente destacado no processamento literário. Muito antes dos grandes surtos da industrialização, a fórmula da desestabilização geral já estava em vigor: "O medo do caso de necessidade social permeou o século XVIII [...]. Tratava-se de insurreição, protesto, combinações, motins, tumultos, travessuras rebeldes – todos termos que, em última análise, significavam apenas diferentes formas do mesmo estado de incerteza" (Stürmer 1986, 153).

Essa rebelião social foi fomentada pela Primeira Revolução Industrial e pela consequente radicalização do cálculo capitalista. Enquanto as revoltas da fiação e da tecelagem no Continente (tornou-se famosa a revolta dos tecelões de seda de Lyon de 1831, além da revolta silesiana) ainda eram o eco do século XVIII pré-industrial, um novo movimento social desenvolvido na Inglaterra industrialmente avançada também se espalhou para a Europa Ocidental e Central no decurso da gradual industrialização, onde se fundiu com as antigas formas de revolta dos artesãos e com os "motins do pão" em geral. Também na Inglaterra houve muitos desses "motins do pão" que acompanhavam regularmente o aumento dos preços dos alimentos; e hoje esse termo tem sido usado repetidas vezes para as incontáveis revoltas espontâneas no Terceiro Mundo, enquanto elas se acendem repetidamente como reacção ao aumento drástico no preço dos alimentos básicos, que o Fundo Monetário Internacional (FMI) e seus líderes do pensamento neoliberal estão constantemente prescrevendo e impondo aos Estados altamente endividados da periferia capitalista.

O cerne das revoltas sociais desde a Primeira Revolução Industrial, no entanto, foi o novo movimento dos "destruidores de máquinas", ou "Luditas", do nome do "General Ludd", um líder lendário dos militantes fabricantes de meias, Ned Ludd ou Ludlam, sendo duvidoso se ele viveu na realidade ou se era uma "figura artificial" e mera imaginação do movimento social de massas. Numerosos relatos e ditos de e sobre este Ludd foram circulando (muitas vezes em versos e rimas chocantes), tais como o seguinte citado por Thompson:

 

Nenhum general senão Ludd.

Como bem dizem os pobres

 

O movimento dos Luditas não se caracterizava de modo nenhum por uma consciência a-histórica do momento, como o cientista político social-democrata Wolfgang Abendroth, por exemplo, afirma significativamente, insinuando que nas primeiras décadas do século XIX os activistas Luditas "mais tarde envolvidos" "não sabem nada sobre o facto de ter havido movimentos de protesto análogos na Inglaterra algumas décadas antes" (Abendroth 1985, 29). Pelo contrário, a evidência sugere que o movimento ludita foi marcado por uma tradição histórica muito forte e conscientemente se colocou na conhecida tradição da revolta social. De acordo com Thompson, já tinha havido grande agitação de vários tipos e por várias razões na Inglaterra em 1709, 1740, 1756/57, 1766/67, 1773, 1780, 1782, 1795 e 1800/01, sem contar com inúmeras acções rebeldes menores e localmente limitadas. Os meios foram greves, manifestações, incêndios, pilhagens, cartas ameaçadoras e, já no século XVIII, a destruição de máquinas e equipamentos fabris: "As primeiras máquinas de tosquia de lã foram destruídas pelos trabalhadores ingleses em 1758" (Abendroth 1965, 13), e "em 1769, em resposta à destruição de uma serração mecânica em Londres, foi aprovada pelo Parlamento inglês a primeira lei que punia a destruição de máquinas e edifícios fabris" (Wulf 1987, 20). Em conjunto com os motins do pão, desenvolveu-se um espírito militante anti-autoritário de grupos que pareciam altamente organizados, como se manifesta numa carta ameaçadora rimada de 1766 (documentada por Thompson 1980, 119):

 

Somos um pequeno exército de mais de 3000,

unidos como um só para lutar.

E, raios, vamos conseguir,

que o exército do rei se cague nas calças.

Se o rei e o parlamento não agirem melhor,

queremos transformar a Inglaterra num monte de lixo.

E se as coisas não ficarem mais baratas,

então, raios, vamos deitar fogo ao parlamento.

e tornar tudo melhor à face da Terra.

 

Esta revolta social militante foi retomada pelos Luditas na Primeira Revolução Industrial no início do século XIX e durou várias décadas, com picos em 1811/12 e 1817. Nas províncias têxteis de Nottinghamshire, Yorkshire e Lancashire, os empresários receberam grandes quantidades de cartas ameaçadoras assinadas pelo "General Ludd", muitas vezes com o endereço pouco lisonjeiro "Seu maldito filho da puta" (Thompson 1987/1963, 611) e com anúncios como "vamos reduzir os seus edifícios a cinzas" (Thompson, op. cit., 646s.). Em março de 1811 houve grandes manifestações em Nottingham por salários mínimos e contra a introdução de novos processos de produção com subsequentes "destruições de máquinas":

"Quando a manifestação dos operários fabricantes de meias foi violentamente reprimida pela polícia em 11 de março de 1811, eles destruíram 60 máquinas de fazer meias na mesma noite. Estas acções violentas duraram quase um ano. Durante este tempo, cerca de 1000 máquinas de fazer meias foram destruídas e os produtos contrários às normas foram aniquilados. Os trabalhadores estavam consistentemente organizados e procederam de acordo com um plano" (Wulf 1987, 21s.).

Em Yorkshire, o "segundo grande centro do Ludismo [...], os Luditas eram o grupo mais bem organizado de trabalhadores altamente qualificados, os tosadores" (Paulinyi 1983, 237). Aqui foi contra a introdução do gig-mill e da shearing-frame: técnicas de produção das quais os tosadores de tecidos temiam, não sem razão, a desqualificação e a queda dos salários. A luta transformou-se numa guerra civil aberta:

"Ao contrário dos operários fabricantes de meias de Nottingham, os tosadores de tecidos de Yorkshire [...] viram-se confrontados não só com pequenas empresas, mas também com empresas de grande dimensão, que não estavam de modo nenhum intimidadas e eram muito mais difíceis de abordar. Em Abril de 1812, os Luditas assumiram a prova de força e atacaram com 150 pessoas armadas a fábrica de William Cartwright, em Rawfolds. Cartwright estava preparado para o ataque e, por precaução, tinha colocado soldados e trabalhadores armados na fábrica. Quando os Luditas tentaram invadir as entradas principais, foram repelidos pela gente de Cartwright. Houve alguns feridos entre os assaltantes e dois mortos. Enquanto os Luditas se tinham limitado à destruição selectiva de máquinas até então, o movimento aumentou agora, depois de o primeiro sangue ter sido derramado. Em retaliação aos dois trabalhadores que foram baleados, assassinaram um dos empresários mais odiados, chamado Horsfall, que provocatoriamente tinha proclamado que queria ‘cavalgar com sangue ludita até à sela’ [...] Depois deste assassinato o movimento ludita perdeu a simpatia da população, o que por sua vez levou a uma maior radicalização. Agora tratava-se de pilhagens e conflitos tipo guerra civil. O movimento expandiu-se cada vez mais para uma revolta contra o empobrecimento material causado por más colheitas, guerras e crises económicas. O governo respondeu com o envio maciço de tropas e a introdução da pena de morte para a destruição de máquinas" (Wulf, loc. cit., 23s.).

Obviamente, o "Exército dos Justos", como os luditas também se autodenominavam, continuou a ter um forte apoio entre a população; e Thompson é da opinião de que mesmo depois dos pesados confrontos militares "o isolamento a que os operários fabricantes de meias e os tosadores foram levados não deve ser sobrestimado. Durante todo o tempo dos ‘tumultos’ luditas os destruidores de máquinas nas Midlands e West Riding tiveram o apoio da opinião pública" (Thompson 1987/ 1963, 635). Apesar do envio de tropas regulares contra a sua própria população (um ponto alto na implementação da economia de mercado "laisser faire") e da derrota militar do "General Ludd", ainda houve revoltas, greves, incêndios e destruição de máquinas até à década de 1840 – basicamente acompanhando toda a história da Primeira Revolução Industrial na Grã-Bretanha.

Em 1818, incendiaram-se greves em massa de tecelões e fiandeiros de algodão; estes últimos "recolheram e encerraram todas as lançadeiras em capelas ou oficinas, não só em Manchester mas em todas as cidades de tecelões [...] A greve terminou com concessões temporárias dos empresários e com a perseguição e prisão de vários líderes dos tecelões" (Thompson 1987/1963, 303s.). O infame "Massacre de Peterloo" ocorreu em 1819, quando os militares atiraram sobre uma grande manifestação; em 1826 os teares mecânicos foram destruídos novamente e, em 1831, 23 homens acabaram por subir ao cadafalso pela destruição de uma máquina de papel. Igualmente tenaz foi a resistência militante dos trabalhadores agrícolas contra o uso "poupador de força de trabalho" de máquinas, e contra cortes salariais, agravamento das condições de trabalho, etc. Mesmo 20 anos depois das revoltas luditas, como Friedrich Engels constatou, camponeses e assalariados agrícolas usavam os mesmos meios contra o agro-capitalismo:

"Seu método preferido para travar a guerra social é provocar incêndios. No inverno [...] de 1830-1831 […] proprietários e arrendatários viram arder em seus campos, sob suas barbas, montes de trigo e de feno e estábulos e granjas. Praticamente todas as noites eram provocados incêndios, que aterrorizaram proprietários e arrendatários. Os autores nunca, ou quase nunca, foram identificados e o povo passou a atribuir o fogo a um personagem mítico, a que deu o nome de Swing. E o personagem começou a ser procurado [...] A partir daquele ano, os incêndios tornaram-se repetitivos em todos os invernos […] No inverno de 1843-1844, os incêndios foram, de novo, excepcionalmente frequentes.” (Engels, loc. cit., 298s.).

"Swing" era obviamente uma figura aparentada com o "General Ludd", e a lenda mostra como a rebelião contra o capitalismo e a sua Primeira Revolução Industrial estava profundamente enraizada nas massas populares. Mesmo 40 anos após a derrota dos Luditas, ainda se falava de "reuniões à meia-noite, exercícios militares e discursos rebeldes" e de armas luditas enterradas em 1812 que "foram desenterradas novamente nas crises posteriores" (Thompson 1987, 579). Esta história de resistência militante e heróica é geralmente considerada pela teoria liberal e pela marxista (embora com diferentes ênfases) como uma rebelião "voltada para trás" e "sem sentido" contra a "modernização inevitável".

Por um lado, aparece aqui novamente a visão mecanicista do mundo comum aos "modernizadores", que consideram os sacrifícios humanos normais, como uma espécie de idólatras comprometidos com o robótico Moloch modernizador do "trabalho abstracto"; ainda hoje se volta a falar impassivelmente da "necessária reforma estrutural", que é interpretada e executada completamente de acordo com a tradição liberal, como "lei da natureza" de um desenvolvimento cego para além das necessidades humanas. Por outro lado, a "destruição de máquinas" parece, à primeira vista, ser a mera estupidez de um "movimento imaturo" (como Karl Marx o havia de arrumar um pouco mais tarde), que tinha desenvolvido uma imagem do inimigo redutora e "falsa" contra a "máquina" a partir da sua experiência imediata. No entanto, esta experiência também não pode ser posta de lado "cientificamente". O jovem Engels cita em seu livro o poema "Rei vapor" de Edward P. Mead, de Birmingham, que documenta a identidade entre a experiência real e a indignação contra o sistema das máquinas:

 

Existe um rei, um príncipe furioso,

não a imagem de rei sonhada pelo poeta,

mas um tirano cruel, bem conhecido dos escravos brancos.

Esse rei impiedoso é o vapor.

 

Ele tem um braço, um braço de ferro,

e, embora só tenha um,

há nesse braço uma força mágica

que destrói milhões.

 

É feroz como Moloch, seu antepassado,

que por um tempo viveu no vale de Himmon:

fogo ardente são suas entranhas

e crianças seu repasto.

 

Seus sacerdotes, desumanos,

sequiosos de sangue, cheios de soberba e fúria,

guiam – ó vergonha! – sua mão gigantesca

e transformam o sangue em ouro.

 

E seus capatazes ferozes, os orgulhosos senhores das fábricas,

locupletados de ouro e manchados de sangue,

a cólera do povo tem de liquidá-los,

como tem de liquidar o seu deus monstruoso.

 

Estaremos aqui realmente perante uma ingenuidade selvagem? Segundo Engels, este poema expressa a opinião dos trabalhadores da época sobre o sistema fabril, o que é algo diferente da mera imediatidade das máquinas. E, de facto, é facilmente reconhecível que aqui o "rei vapor" significa muito mais do que uma causalidade científico-tecnológica "erroneamente" entendida ou negativamente mitologizada. Pelo contrário, trata-se da abstração social do capital, que é pensada como idêntica à forma concreta do sistema de máquinas. E não sem uma boa razão, pois o aparelho de produção capitalista é uma forma concreta das novas potências industriais já "traduzidas" no absurdo fim-em-si da economia empresarial. E é por isso que esta manifestação capitalista das forças produtivas mais desenvolvidas não pode, de modo nenhum, ser certificada como tecnologicamente "inocente", como mais tarde se deveria tornar uma evidência interiorizada.

A este respeito, os Luditas não tinham, de certo modo, uma "consciência superior", mas, no entanto, tinham um sentimento mais fino do carácter social do sistema fabril do que o posterior movimento operário "oficial", com a sua obsessão burguesa pela ciência. Claro que seria errado idealizar e romantizar o "General Ludd" (isso a longo prazo é mau para qualquer movimento social histórico e obscurece o seu possível estatuto positivo). Neste ponto, pode-se concordar com Thompson, que elaborou a (inevitável) ambivalência da revolta ludita: não foi nem "reaccionária" nem "progressista" no sentido liberal ou socialista; não se enquadra de todo no sistema de categorias da ciências sociais que está arraigado há mais de cem anos.

Em nenhum caso essas revoltas sociais foram acções espontâneas primitivas de analfabetos "irracionalmente reactivos", como ainda parece, por exemplo, em Abendroth. Em vez disso, eram organizações de grande alcance, com sentinelas, mensageiros e correspondências, que não só apareciam mascaradas e disfarçadas como grupos armados em inúmeros raides ousados, como também realizavam discussões programáticas sobre o futuro da sociedade. De acordo com relatos e testemunhos, seus líderes secretos eram "perspicazes e cheios de humor; alguns deles pertenciam segundo os operários londrinos aos mais letrados das ‘classes trabalhadoras [...]’ (Thompson 1987/1963, 630).

Houve, sem dúvida, um aspecto de retrocesso nesses movimentos e revoltas. A causa dos luditas, orientada para o passado, era, naturalmente, como pode ser facilmente provado, o velho mundo do artesanato e, em parte, também as suas limitações sociais. Isto reflectiu-se, por exemplo, nas exigências para se respeitar o período de aprendizagem integral (sete anos para os tosadores) e para não serem empregados trabalhadores não qualificados. O objectivo era travar o rápido declínio dos níveis salariais através do sistema das fábricas. Em termos sociais, o movimento consistia em artesãos degradados ou ameaçados de degradação e trabalhadores da fábrica ou manufactura que, no entanto, ainda tinham uma referência de artesãos; os luditas eram apoiados por pequenos mestres, pequenos comerciantes, trabalhadores de outros ramos de produção fora da indústria têxtil, até mesmo clérigos, soldados, académicos, etc., sugerindo que essas revoltas não se limitavam a articular interesses particulares.

Obviamente, a Primeira Revolução Industrial foi geralmente vivida como uma deterioração, assim como o capitalismo pré-industrial tinha sido anteriormente percebido como uma deterioração e uma ameaça. Mesmo que a vaga memória das condições de vida pré-capitalistas tenha sido idealizada como uma "idade de ouro", permanece um facto real que as pessoas abominavam de todo o coração o amanhecer do industrialismo capitalista, porque "todas as testemunhas concordavam na rejeição geral do sistema fabril" (Thompson 1987/1963, 613), e não deixavam que essa rejeição, sua própria experiência e seus próprios sentimentos fossem impedidos de se expressar pelos "especialistas" liberais e pelos exploradores de escravos benthamistas.

Ainda hoje, a historiografia conformista adere obstinadamente ao mito burguês de que as revoltas sociais da Primeira Revolução Industrial (que, além disso, são minimizadas no seu significado) foram elas próprias assentes num simples mito, e que grandes massas de pessoas arriscaram as suas vidas de livre vontade em nome de uma mera "fantasia". Thompson cita um desses apologistas modernos como um apoiante confiável, que acredita que as condições de vida das pessoas no sistema fabril capitalista não eram "piores do que as de um período anterior" (loc. cit., 294). Um argumento verdadeiramente retumbante!

No entanto, não se tratava apenas da memória mais ou menos idealizada de um passado que ainda não tinha sido perseguido pelas restrições da economia de mercado, nem se tratava apenas das reduções salariais registadas em termos reais ou da deterioração das condições de trabalho. Pelo contrário, os contramovimentos sociais também afirmavam um padrão positivo, que Thompson assinalou na famosa formulação de "cultura plebeia e economia moral" (Thompson 1980). Os Luditas e outros eram "herdeiros dos direitos tradicionais das aldeias, das ideias de igualdade jurídica", orientavam-se por um "sentido moral de justiça" e um "padrão cultural" que incluía um "ritmo de trabalho e lazer", bem como a ideia de um "preço justo" e um "salário adequado" (Thompson 1987/1963, passim), o que era completamente incompatível com as cegas leis mecanicistas do chamado mercado de trabalho. O povo não queria render-se a nenhum "livre jogo de forças", não via o liberalismo económico como liberdade, mas como uma tremenda fraude, e por isso lutava contra a "perda de estatuto e sobretudo de independência para o trabalhador, sua completa dependência dos meios de produção do empresário, [...] a disciplina e a monotonia do trabalho, [...] a perda do tempo livre e das comodidades; e a redução do ser humano a um ‘instrumento’ [....]" (loc. cit.), 218).

Estas normas não são, de modo nenhum, meramente retrógradas, mas reivindicam condições elementares e universais de liberdade humana que foram fundamentalmente destruídas pelo mercado capitalista e pelo sistema fabril. Quanto este processo foi sentido não só como uma violação das normas morais, mas também como uma intolerabilidade existencial, é o que se vê também repetidamente nos relatórios sobre as condições alemãs. Por exemplo, um estudo sobre o início da industrialização nos Estados de Baden e Württemberg:

"O caminho para a fábrica, no entanto, na medida em que tais possibilidades se ofereciam, era facilmente considerado pelos artesãos qualificados como um passo contrário à sua 'honra' e ao qual eles preferiam a pobreza autodeterminada (!). Embora o trabalho fabril desse salários mais elevados em média do que o ‘trabalho’ nas próprias quatro paredes, estava sob supervisão e controlo constantes e exigia uma maior intensidade de trabalho em geral durante um longo dia de trabalho" (v. Hippel 1992, 178s.).

Além do facto de os salários na fábrica serem "mais altos" apenas por causa da ruína em massa dos produtores artesanais, isto mostra um impulso fundamental contra a total determinação externa, como se pretendia que fosse natural para todo ser humano. Os "constrangimentos factuais" capitalistas ainda não tinham sido interiorizados e, portanto, podiam ser rejeitados com repugnância. O facto de motivos semelhantes terem sido também inerentes à revolta silesiana dos tecelões é demonstrado indirectamente por uma reprimenda do "Deutsche Allgemeine Zeitung", em junho de 1844:

"Os tecelões não sofreram mais dificuldades do que todos os outros trabalhadores ao dia, que viviam de mão na boca, numa época em que o trabalho era pouco, a concorrência era grande e a comida excepcionalmente cara. Se a sua aflição era maior do que a das outras classes, ela veio em grande parte [...] da sua relutância em fazer qualquer outro trabalho. Centenas de tecelões e tecelãs teriam sido de boa vontade colocados ao serviço pelo agricultor, teriam sido levados ao trabalho, teriam encontrado emprego na construção de estradas e outras coisas; mas teriam de trabalhar com rigor e obedecer, e só queriam trabalhar quanto e enquanto quisessem [...]" (citado de: Kroneberg/Schloesser 1980, 185).

Com tais declarações enviesadas e indirectas, torna-se claro que os Luditas eram apenas a ponta de lança de uma atitude de oposição fundamental dos produtores espalhada por toda a Europa, pois não queriam que a espinha dorsal lhes fosse quebrada. Naturalmente, a "cultura plebeia e economia moral" ainda estava relacionada com a unidade familiar de produção, mas não excluía de modo nenhum à partida formas superiores de organização; isto já é indicado pela união amplamente ramificada das próprias revoltas luditas. O que foi amarga e "visceralmente" rejeitado foi a disciplina e a heteronomia que apenas seguiam a lei do dinheiro. O conceito de "honra" neste sentido social parece hoje antiquado, e a maioria das pessoas apenas abana a cabeça e toma nota do facto de haver gente que prefere morrer à fome e revoltar-se em vez de se sentir confortável num "local de trabalho" capitalista. Isso só mostra, é claro, como as pessoas ficaram sem honra nem dignidade, ansiando por "empregos", porque não podem mais imaginar uma reprodução organizada colectivamente e autodeterminada da sua vida.

As mulheres não eram, de modo nenhum, fundamentalmente excluídas deste conceito de honra social. Naturalmente, o método de produção rural, artesanal e familiar também não pode ser idealizado a este respeito; era essencialmente patriarcal. No entanto, isto não significava de modo nenhum uma falta de direitos ou, acima de tudo, de poder das mulheres, uma vez que elas podiam ter uma palavra a dizer devido ao seu próprio lugar na produção. Assim como o desenvolvimento autodeterminado das forças produtivas não estava fundamentalmente excluído, também a participação e a codeterminação das mulheres era, em princípio, concebível.

Foi somente o capitalismo que negou às mulheres um lugar independente na sociedade "oficial", obrigando-as a uma existência de donas de casa que as degradou, por um lado, à maternidade e, por outro, a "máquina do sexo" no sentido de Sade. As mulheres permaneceram fixadas nestes papéis, mesmo depois, quando foram sujeitas ao trabalho assalariado (geralmente menos bem pago) em paralelo; é, portanto, extremamente enganador retratar a ascensão da economia de mercado como condição para a emancipação feminina. Talvez as mulheres das classes mais baixas estivessem muito mais próximas da emancipação do que nos processos posteriores de domesticação e adaptação da "modernização" naquela fase de turbulência em que o capitalismo ainda encontrava resistência maciça nas revoltas sociais – ainda que, em sua consciência, elas estivessem, naturalmente, no nível de seu tempo, tal como os homens. O papel militante das "mulheres inferiores" é conhecido nos movimentos populares da Revolução Francesa. Nos tumultos do pão e nas acções contra a disciplina da fábrica, as mulheres estavam muitas vezes na vanguarda. Ao longo da história inicial da industrialização, as mulheres actuaram como instigadoras da agitação. Os relatórios policiais desses tempos estão cheios de pistas relevantes. Assim, um procurador, também em França, queixa-se por ocasião de uma destruição de máquinas em 1831 (não em Lyon, mas em Saint-Etienne):

"E é extremamente doloroso notar que as mulheres lutaram arduamente contra a Guarda Nacional. Tinham aventais cheios de pedras, e ora as atiravam elas mesmas, ora passavam as pedras para serem atiradas [...] Há criaturas terríveis [...] especialmente entre as mulheres" (citado de: Perrot 1981, 82).

Também na Inglaterra de antes e durante o movimento ludita, as mulheres são mencionadas como actores bastante autoconfiantes, como mostra Thompson com o exemplo de uma das numerosas revoltas do pão, que em muitos lugares foram directa ou indirectamente mediadas pela revolta dos Luditas:

"Em Nottingham as mulheres marcharam pelas ruas em 1812 com um pão de forma numa vara pintado com listras vermelhas e coberto com crepes pretos: um símbolo duma ‘fome sugadora de sangue [...] vestida de serapilheira’" (Thompson 1980, 128s.).

Estes documentos não devem, evidentemente, levar-nos a concluir que existia uma emancipação generalizada das mulheres nas revoltas sociais. O patriarcado ocidental especificamente cristão, intensificado pela primeira modernização desde a Reforma, provavelmente estava implantado nas famílias de artesãos, "trabalhadores pobres" ou moradores de favelas em revolta tão profundamente quanto em outros estratos sociais. No entanto, no emaranhado da autolegitimação através do "antigo direito" (que de maneira nenhuma determinava a posição das mulheres de modo claramente negativo) e da rebelião social com a participação das mulheres, pode ser vista a possibilidade de uma "abertura para a frente". Houve também uma persistente tradição minoritária em relação à crítica ao patriarcado "entre os artesãos radicais das grandes cidades, que fizeram exigências muito mais ambiciosas do que alguma vez se viu antes da Revolução Francesa" (Thompson 1987/1963, 443s.). E isto também se aplica a todas as outras questões de desenvolvimento social futuro.

As revoltas dos Luditas e de outros "destruidores de máquinas" europeus, com a sua oposição e insurreição contra a heteronomia capitalista, já atravessavam as fronteiras de um pensamento socialmente apenas conservador. Os padrões de valor da "cultura plebeia e economia moral", que antes tinham adormecido em tradições semiconscientes, tornaram-se conscientes e assumiram pela primeira vez uma forma programática através da defesa contra as imposições capitalistas; e, nesse sentido, a referência ludita às tradições sociais (não técnicas) do artesanato poderia apontar para além de si mesma. Isto também se aplica à mentalidade de revolta, que se tornou uma tradição desde o século XVIII, porque o espírito anti-autoritário, "rebelde" e irónico do "Exército dos Justos" provavelmente pouco tinha a ver com o velho artesanato da "reverência".

Foi precisamente neste sentido de um despertar, de uma consciência mais ampla, como Thompson não foi o único a apontar, que os Luditas não foram cegos inimigos das máquinas e da indústria; o tosador quis explicitamente concordar com a introdução da gig-mill "desde que fosse acompanhada de medidas compensatórias, ou seja, medidas para assegurar a sua existência profissional" (Wulf 1987, 23), e a destruição das máquinas foi realizada de forma bastante selectiva contra os instigadores da redução salarial e da escravidão da fábrica, portanto não foi dirigida contra o equipamento como tal.

Basicamente, os Luditas queriam que "o crescimento económico fosse regulado segundo princípios éticos e subordinado [...] às necessidades humanas" (Thompson 1987/1963, 640). Se esta revolta, portanto, "poderia ter-se desenvolvido a qualquer momento num movimento com objectivos revolucionários de longo alcance" (loc. cit., 641), foi porque estava à beira de desmascarar a irracional "razão" económica e exigir uma mobilização alternativa das novas forças produtivas, diametralmente oposta aos adestramentos benthamistas, num sentido de "poupança de trabalho" e "aumento do bem-estar". Talvez por isso ela tenha sido tão brutalmente reprimida e lhe tenha sido negada até a menor concessão, a fim de sufocar e extinguir para sempre esse pensamento que germinava pouco claro.

Com a luta contra a autonomização capitalista do dinheiro e da máquina do mercado, a "propriedade dos meios de produção" jurídica capitalista privada também foi, naturalmente, objecto de discussão, embora num sentido completamente diferente do dos socialistas posteriores com a sua ideologia da autoridade estatal. Os Luditas não podiam sequer imaginar um "planeamento estatal"; queriam um auto-entendimento autónomo dos produtores, ainda que este permanecesse completamente imaturo, e o movimento não tivesse tido tempo para desenvolver tal ideia de forma mais concreta, de modo a ultrapassar, através da experiência e da reflexão, a ideologia do "preço justo" ou do "salário justo", fixada no passado e, em última análise, ilusória.

Que o poder do dinheiro extorquido das massas durante a época absolutista estava entre elas e as novas forças produtivas foi expressamente lamentado por um camarada tecelão de algodão, em 1818: "As máquinas a vapor entraram em uso, e para comprá-las e construir edifícios suficientemente grandes [...] era necessário muito capital" (citado por Thompson, op. cit., 217). No início da Primeira Revolução Industrial, as pessoas empobrecidas e degradadas, saqueadas com impostos e inflação até ficarem sem nada, já não tinham os meios, mesmo colectivamente e em (concebíveis) associações cooperativas, para abordar legalmente as novas forças produtivas e dominar a tarefa de moldá-las autonomamente, para além da economia de mercado e de empresa herdada do absolutismo.

Na ambivalência da rebelião, com os seus motivos meio retrógrados orientados para a tradição do artesanato e a sua crítica meio-futurista ainda bastante confusa da falsa racionalidade económica e da "lei do mercado", reside uma possibilidade histórica até hoje não cumprida: nomeadamente, recusar as leis pseudonaturais da máquina do mercado e da ideologia liberal, para encontrar uma socialização autodeterminada através do entendimento humano directo, para além dos cegos mecanismos dos preços.

 

 

A lei da população: Desaparecei da face da Terra!

 

Os Luditas foram simplesmente a revolta social e o movimento de massas relativamente mais conscientes e poderosos contra o sistema fabril e as imposições capitalistas. Os referidos movimentos no Continente, marcados ainda mais por "motins do pão" do que por "destruições de máquinas", não ficaram, no entanto, a dever nada em impulsos anti-autoritários nem em motivos de autodeterminação. Mesmo na conservadora província alemã, não havia só orgulho social passivo, também havia artesãos rebeldes, operários de fábricas e manufacturas e partes da população rural que se defendiam da degradação social, da "pauperização" e da tributação do pão, muito para além do evento silesiano selectivamente enfatizado. Em abril de 1847, por exemplo, ocorreu em Berlim a chamada "Revolta da Batata" (Price 1992, 27), e numerosas revoltas semelhantes foram documentadas a nível local e regional. Também nos Estados alemães os "protestos colectivos e as ameaças de protesto estavam enraizados nas tradicionais imagens de uma ordem justa" (Langewiesche 1992, 433). O que significa que também aqui o capitalismo e o início da industrialização foram vividos como uma deterioração permanente. Num surpreendente paralelo com a Inglaterra, também na Alemanha daquela época se encontra documentada a carta ameaçadora como meio utilizado na revolução social. Em 1847, o Conselho Municipal de Ebersbach, no sudoeste da Alemanha, recebeu a seguinte carta:

"Caros cidadãos, já não posso deixar de vos dizer, a quem ainda não sabe, que o conselho municipal e o prefeito estão a dormir, porque não cuidais dos cidadãos pobres, porque temos meios comunitários, mas seguem outro caminho. Conselho municipal, dizemos-vos que como não cuidais do pão, da fruta e da batata sereis espancados até à morte em plena luz do dia" (citado em Langewiesche 1992, 432s.).

Com um profundo ressentimento dos "trabalhadores pobres", cartas de ameaça social, a revolta dos tecelões na Silésia, motins de pão em muitas partes do país, rejeição da livre concorrência e a continuação da ausência de qualquer "efeito de aumento do bem-estar" da economia de mercado à vista para uma grande parte da população: é significativo que esta época tenha sido mais tarde chamada "a época Biedermeier" na Alemanha. Originalmente este era um nome zombeteiro (inventado pelo escritor Ludwig Eichrodt, que publicou a partir de 1850 poemas parodísticos de um fictício professor de escola suábio chamado "Gottlieb Biedermaier") que conseguiria, no entanto, tornar-se o mais sério conceito da época nas ciências históricas e culturais. Isso expressa a ignorância social da sociedade burguesa na Alemanha de duas maneiras: ou seja, tanto o recalcamento filisteu e "de classse média” da crise, próprio da burguesia proprietária e cultural dos contemporâneos "defensores de progresso" através da economia de mercado e da industrialização, como o posterior encobrimento da história real nas ciências académicas, em que a real existência do estado social de guerra e cerco é degradada a fenómeno marginal das "necessárias" vítimas da modernização.

Ludwig Uhland (1787-1862), advogado em Tübingen desde 1811, ideólogo liberal e membro do parlamento pelos liberais em Württemberg, pode ser considerado um representante típico do período literário Biedermeier, naturalmente patriota burguês ("Nos bosques de carvalhos frescos / O Deus alemão tece e sussurra") e sobretudo patriota local de Württemberg ("E onde com vinho velho e bom / Os de Württemberg vão bebendo"), sendo como poeta ao mesmo tempo "o mais importante representante do romantismo suábio tardio" (Gero v. Wilpert, Deutsches Dichterlexikon, Dicionário Alemão de Poetas). Os versos do seu poema "Lied eines Armen" (Canto de um pobre) mostram como este autor de chauvinistas baladas alemãs e de pretensioso sentimento militarista de longo efeito ("eu tinha um camarada") foi "significativo" em termos de ideologia social e representativo da visão de mundo biedermeier:

 

Vejo florir os jardins dos ricos,

Vejo a sementeira dourada;

O meu é o caminho estéril,

Onde entraram o cuidado e o esforço.

 

Mas porque gosto do sofrimento silencioso

Na multidão de pessoas felizes

E desejo a todos bom dia

Tão cordial e calorosamente.

 

Ó rico Deus, pois me deixaste

Não totalmente vazio de alegria:

Um doce conforto para todo o mundo

Se despeja pelo céu adentro.

 

O Sol, a Lua e a Estrela ainda brilham

Tão amorosamente para mim,

E quando tocar o sino do fim da tarde,

Estou a falar contigo, Senhor.

 

Um dia abre-se para todos os bons

O vosso grande salão de festas,

Então também vou em traje festivo

E sento-me para o banquete.

 

Se considerarmos que isto foi escrito numa época de revoltas de fome e de guerra social, então já quase volta a ser bom, na sua simplicidade atrevida. Comparado com a "Canção do tecelão" de Heinrich Heine, o poema do "Rei vapor" ou os versos rebeldes da Inglaterra do século XVIII, aqui nos confronta o espírito burocrata e ignorante do social patriota liberal alemão do século XIX. A pobreza em massa e o desemprego em massa causados pela economia de mercado geram sentimentalismo barato nestas mentes, desde que os humilhados e ofendidos se aguentem nas regras capitalistas do jogo, se resignem com a sua sorte e "digam bom dia a toda a gente", esperando alegremente e com indizível paciência pelo melhor depois desta vida (ou pelos efeitos benéficos do infelizmente necessário "ajustamento estrutural").

Até hoje nada mudou nesta mentalidade da classe média alemã, que ainda reagiu a cada crise da sua religião da economia de mercado e dos seus santuários, por um lado, com mais violenta defesa dos direitos adquiridos, por outro, com minimização e recalcamento sentimentais. O mundo deve ser uma economia de mercado, mas também nobre, útil e boa. Há algum tempo atrás, uma menina de uma casa protegida disse-me que gostaria que o conto de fadas do Capuchinho Vermelho fosse lido novamente, "mas, por favor, sem o lobo mau". A boca da criança revela a verdade, porque isso poderia ser um lema para duzentos anos de biedermeierismo e história da crise capitalista na Alemanha.

Infelizmente, porém, o capitalismo não existe sem lobo mau. A segunda dura alma no peito biedermeier, menos sentimental, está bem consciente disso. As massas, que foram afastadas do controlo das suas próprias condições de vida pela economia de mercado e pela industrialização, mas que no entanto não podem ser suficientemente "empregadas" – elas "perturbam" e são sentidas como uma ameaça obscura, precisamente porque a economia de mercado já não se contenta com populações de pobreza relativamente inofensivas, mas está agora a atacar em grande escala:

"Como mostra a rápida expansão da literatura sobre o pauperismo anterior à Revolução de Março de 1848, [...] entre a esmagadora maioria de todos os funcionários públicos, padres, cientistas políticos, escritores, economistas nacionais, proprietários de terras, etc. que constantemente se expressavam sobre este estado de necessidade, havia consenso de que se tratava de um fenómeno historicamente novo de pobreza em massa, não mais de pobreza tradicional" (Wehler 1987, 283).

Que fazer com este aumento da pobreza em massa e do desemprego em massa, que tinha de aparecer como uma ameaça permanente e uma acusação contra a maravilhosa economia de mercado? O insulto aos pobres, nascido do medo, logo se tornou parte do bom tom dos melhores círculos. O barão prussiano vom Stein (1757-1831), por exemplo, um reformador da economia de mercado e da política nacional, que por razões incompreensíveis (ou simplesmente bem compreensíveis) a RDA estatal-socialista incluiu na sua galeria de antepassados inspirada pelo passo de ganso, irritou-se com a "corrida da multidão imoral e sem raízes" que surgia "do crescimento do número e das reivindicações das classes mais baixas" e da "populaça sem propriedade", alimentava "a inveja e a ganância" e ameaçava a propriedade e a ordem (Wehler 1987, 282). O barão falava pela alma dos que ganham mais dinheiro. Até que ponto a massa dos pobres e "caídos" apareceu como um verme irritante e ameaçador a uma burguesia que, no entanto, acreditava inabalavelmente no mercado é o que mostra a carta de leitora de "uma senhora" ao Manchester Guardian, que Friedrich Engels cita em seu livro sobre a "situação da classe trabalhadora":

"Já há algum tempo, nas ruas principais da nossa cidade se encontra uma multidão de mendigos que, ou vestindo farrapos e aparentando aspecto doentio ou expondo chagas e deformações repugnantes, procuram despertar a compaixão dos transeuntes de um modo desagradável e até indecoroso. Penso que, não só quando se paga o imposto para os pobres, mas ainda quando se contribui generosamente para as instituições de beneficência, tem-se o suficiente direito de ser poupado de cenas tão molestas e impertinentes. E mais: indaga-se para que serve o pesado imposto pago para manter a polícia municipal, se ela não garante o direito do público de caminhar pela cidade sem ser perturbado” (citado em Engels, loc. cit., 310).

Mesmo a tempo veio a resposta burguesa definitiva para este problema, naturalmente novamente da Inglaterra avançada, onde a Primeira Revolução Industrial foi mais fortemente acompanhada por um profundo desemprego estrutural em massa. A solução do problema dos "trabalhadores pobres" tinha agora de ser complementada por uma solução para o problema dos "supérfluos", de preferência uma solução final. Somente um padre economicamente liberal poderia conceber esta solução social final com uma preocupação a pingar moral, e ele apareceu na figura de Thomas Robert Malthus (1766-1834). Este clérigo anglicano tornou-se um economista nacional e inventou com toda a simplicidade a chamada lei da população.

Se Bentham tomou a seu cargo o adestramento dos "empregados", Malthus tratou de lidar com os "supérfluos". Ele tenta dar ao mundo da economia de mercado e do capitalismo uma nova e terrível justificação. E mais uma vez a natureza ou "naturalidade" das relações capitalistas deve servir como justificação científica. Enquanto a pseudonaturalização do social no século XVIII, e em Adam Smith em particular, foi justificada com metáforas bastante físicas no sentido da visão mecanicista do mundo de Newton, Malthus dá agora o primeiro grande passo para a biologização da crise social, continuando as fantasias do Marquês de Sade. Pois a sua lei da população ideologicamente construída funciona como uma lei básica alegadamente biológica do desenvolvimento social. Da natureza biológica ele toma arbitrariamente a "tendência permanente de todos os seres vivos de se multiplicarem muito para além da quantidade de alimento disponível" (Malthus 1924/1826, Vol. l, 14). Isto também se aplica necessariamente ao ser humano: "Onde quer que haja liberdade, então o poder de propagação activa-se, e as suas consequências excessivas são depois submetidas à falta de espaço e de alimento" (loc. cit., 15). Se não for inibida, a população duplica a cada 25 anos e assim aumenta em progressão geométrica, enquanto na melhor das hipóteses os alimentos podem ser aumentados em série aritmética.

Malthus retira assim o problema da estrutura das relações sociais para levar a pobreza artificial gerada pelo capitalismo, até mesmo a "superfluidade" das pessoas, ao nível de coelhos ou castores que "se multiplicam demasiado" sob certas condições. De acordo com Malthus, "os seres vivos" sempre fazem isso quando estão muito bem. E a partir dessa constatação o Sr. Malthus infelizmente tem que confessar, com toda a filantropia liberal, "que a pobreza e a miséria que reinam entre as classes mais baixas da sociedade não podem ser remediadas de modo nenhum" (loc. cit. 5). Bentham já tinha realmente feito esta pequena correcção à promessa liberal de prosperidade de Adam Smith, mas ainda não com uma justificação "biológica" tão retumbante.

Embora Malthus admita prontamente que a sua construção só é válida sob condições capitalistas, tudo bem, já que estas são, como se sabe, as "naturais" e imutáveis. É claro que Malthus considera esta imutabilidade como trágica, derramando algumas lágrimas cristãs; mas o que tem de ser tem de ser, porque "a constância das leis da natureza [...] é o fundamento de todo o conhecimento humano" (op. cit., Vol. 2, 10).

Como homem inteligente, o padre biologista também lida com possíveis objecções. Um "obstáculo preventivo" ao crescimento populacional poderia ser, naturalmente, a prevenção dos nascimentos. O absolutismo capitalista primitivo tinha proibido rigorosamente os velhos métodos de contracepção e suprimido o conhecimento deles, no interesse da produção incessante de "material humano", a fim de colocar "soldados e trabalhadores" na linha de montagem, independentemente das perdas. Sob a impressão da Primeira Revolução Industrial e do problema dos "supérfluos", Malthus diz agora que isso foi um erro; mas é claro que, como cristão liberal, ele não quer voltar às condições pré-modernas da contracepção consciente e da sexualidade "irregular", incluindo relações homossexuais outrora realmente não problemáticas (especialmente na adolescência):

"Relações sexuais irregulares de modo a evitar o nascimento de crianças parecem diminuir muito claramente a dignidade da natureza humana. Não podem deixar de ter efeito sobre as pessoas, e nada pode ser mais chocante do que a sua tendência a humilhar o carácter feminino (!), e a destruir todas as suas qualidades mais graciosas e distintivas [...] As relações sexuais desreguladas, as paixões não naturais, o adultério, as práticas impuras para ocultar as consequências das relações sexuais irregulares, são impedimentos preventivos que claramente se enquadram no conceito de vício" (loc. cit.), Vol. I, 24ss.).

Malthus, em quase mil páginas de sua obra principal, não pára mais de estigmatizar qualquer forma de sexualidade sem querer ter filhos como "altamente antinatural, imoral" e "desprezível" (loc. cit., Vol. 2, 43). Em vez disso, untuosamente, ele propõe às massas "supérfluas", com toda a seriedade, uma vida de "abstinência moral" (Vol. 2, 225). Seu dever é "a submissão das paixões à razão (!)" e uma vida "em estrita castidade" (Vol. 2, 238s.), a fim de chegar à conclusão de que "a renúncia ao matrimónio até que sejamos capazes de sustentar uma família, e uma conduta completamente pura durante este tempo são deveres estritos" (Vol. 2, 249). Claro que até Malthus sabe que estas exigências são absurdas. Ele também quer que elas sejam apenas um aviso, porque aquele que não quer ouvir tem de sentir, e, quase luxuriosamente e com um certo conforto, ele pinta as "necessidades da natureza" que então infelizmente ocorrem:

"[...] As guerras – a silenciosa mas certa aniquilação da vida humana nas grandes cidades e fábricas – bem como as casas pequenas e a alimentação insuficiente de muitos pobres – impedem a população de crescer para além dos meios de subsistência e, se me é permitido usar uma frase que a princípio parece certamente estranha, dispensam as grandes e devastadoras epidemias da necessidade de aniquilar o supérfluo" (Vol. I, 479).

De jeito nenhum, Sr. Malthus, de uma boca liberal isto não soa nada estranho, mas bastante habitual. Compreende-se muito bem que os operadores da "bela máquina" se alegrem quando são apoiados um pouco nos seus esforços devotos para dizimar a população "supérflua" pelas guerras, pela destruição silenciosa mas segura de vidas humanas nas fábricas, e por habitações demasiado pequenas e comida insuficiente para os pobres. Neste sentido, a simpatia amorosa de Malthus, por exemplo, pela varíola, também é compreensível, porque "a varíola é certamente um dos canais, muito amplo, que a natureza abriu desde os últimos mil anos para manter a população ao nível dos meios alimentares" (Vol. 2, 270).

Malthus também combate a objecção de que é impossível os limites da capacidade de produção de alimentos terem sido alcançados e o nível de vida ter atingido o limite quando meios de produção intactos são fechados nas crises industriais e agrárias da economia capitalista precisamente por falta de rentabilidade. Aqueles que pensam assim, responde Malthus, não compreendem as "leis da economia nacional". Porque o trabalho humano num sistema "razoável" é simplesmente uma mercadoria e deve submeter-se às leis do mercado "analogamente a todas as outras mercadorias que são trazidas para o mercado" (Vol. 2, 256). Há também razões para supor que a sociedade "consistirá sempre numa classe possuidora e numa classe trabalhadora" (vol. 2, 386) e que, devido à necessidade natural da propriedade, os alimentos só podem ser produzidos sob a lei do lucro da economia empresarial:

"Também é do conhecimento geral que, nos últimos tempos, algumas das classes mais baixas da sociedade têm sido levadas a acreditar que a terra seria um bem do povo [...] (esses ensinamentos) indicam um alto grau de ignorância [...] Tendo em conta o interesse privado, quer do senhorio quer do arrendatário, nenhum trabalhador pode jamais ser empregado na agricultura se não produzir mais do que o seu salário, e se este salário não for atingido em média, [...] tanto a população como a produção terão obviamente de parar" (Vol. 2, 36, 134).

Sem um "lucro razoável" (vol. 2, 82), qualquer produção é inútil, de modo completamente independente das necessidades e dos meios materiais de produção. Malthus reformula assim as conhecidas "leis naturais" liberais da economia sob as novas condições da crise industrial e do desemprego estrutural em massa. É um "erro grosseiro", diz ele com o dedo indicador levantado,

"que o preço de mercado do trabalho tenha de ser suficiente para alimentar adequadamente uma família e que seja necessário encontrar emprego para todos os que estão dispostos a trabalhar [...] uma conclusão que contradiz os princípios mais simples e óbvios da oferta e da procura […] É impraticável, porém, restaurar de uma vez por todas, através de esforços privados ou nacionais, a enérgica procura de trabalho que foi perdida por acontecimentos que, independentemente da sua origem, já não podem ser controlados (!) [...] Pode-se descrever como uma impossibilidade absoluta que todas as diferentes classes da sociedade sejam bem pagas e plenamente empregadas quando a oferta de força de trabalho como um todo excede a procura" (Vol. 2, 83, 86, 97).

Depois de séculos de coerção brutal, forçando as pessoas contra a sua vontade a condições capitalistas e, portanto, a "empregos" determinados por outros, e repetidamente adiando o bem-estar para o futuro, Malthus dá agora a entender com palavras secas que a "bela máquina" no estágio da revolução industrial, infelizmente, "não é mais controlável" em seus efeitos e que, portanto, já nem o "emprego" forçado para o Baal capitalista pode mais ser garantido. Que ele se encontra em contradição gritante com o seu próprio postulado de leis naturais supostamente "biológicas", quando considera a crise causada pela superprodução de alimentos (medida pelo poder de compra capitalistamente limitado das massas) tão natural quanto o subsequente fecho da produção que é por si tecnicamente possível – este absurdo não o incomoda mais, porque ele está blindado com a ignorância social arquiliberal. Pelo contrário, ele acredita ter "provado" que a pobreza e a fome se devem unicamente ao impulso biológico dos pobres para se multiplicarem:

"Que a causa principal e persistente da pobreza tem pouca ou nenhuma relação directa com as formas de governo ou com a distribuição desigual da propriedade, que, como os ricos não têm o poder de encontrar emprego e subsistência para os pobres, os pobres, pela natureza das coisas, não podem ter o direito de exigir um e outra, são verdades importantes derivadas das leis da população [...]" (vol. 2, 383).

Malthus, um filantropo, acredita que, na inevitável crise industrial, é completamente errado "colocar demasiada ênfase no emprego dos pobres" (Bd, 2, 354). É melhor aceitar "um grau normal de miséria" (vol. 2, 315) por princípio e "esclarecer as classes trabalhadoras sobre a verdadeira natureza da sua situação, encorajando-as a suportar pacientemente uma carga inevitável" (vol. 2, 291), nomeadamente "com força de alma e resignação" (vol. 2, 409):

"Foi demonstrado que, como resultado das leis inevitáveis da natureza humana, alguns seres humanos serão expostos à miséria. Estas são as pessoas infelizes que tiraram um bilhete em branco na grande lotaria da vida" (vol. 2, 31).

Antes que possa derramar uma lágrima cristã sobre ela, Malthus tem de corrigir mais uma vez os erros perniciosos que vê na legislação inglesa sobre os pobres. Essa medíocre precursora do posterior "Estado social" não foi tanto uma verdadeira ajuda quanto um instrumento de repressão, pois os pobres "supérfluos" foram presos em condições indescritíveis naquelas casas de pobres de Bentham descritas por Engels e outros, que eram semelhantes a prisões, de modo que muitos preferiam morrer na rua. Mas mesmo esse tipo de "caridade" repressiva ainda é demais para o pensamento liberal, como Sade já tinha notado cheio de ódio. "Desperdiçamos enormes somas com os pobres" (vol. 2, 311), lamenta Malthus agora; e estas pessoas desleais e "desleixadas" seriam assim tentadas apenas ao "descuido" e à "falta de economia", a fim de levar o dinheiro dos impostos dos que ganham melhor "para as cervejarias" (vol. 2, 73). Para pôr fim, de uma vez por todas, a este desperdício de dinheiro dos contribuintes, há que acabar com o "pensamento reivindicativo" e liquidar o errado conceito de "direitos" fundamentais:

"Mas há um direito cuja posse tem sido geralmente atribuída ao ser humano que eu acredito que ele não possui nem pode possuir – o direito à manutenção, se o seu trabalho não puder justificadamente permiti-la. As nossas leis dizem, no entanto, que ele tem este direito, e obrigam a sociedade a proporcionar emprego e alimentos àqueles que não podem obtê-los no mercado habitual. Mas, ao fazê-lo, elas derrubam as leis da natureza" (Vol. 2, 281).

Malthus propõe, portanto (em total acordo com Sade), abolir as miseráveis leis dos pobres e deixar as condições sociais inteiramente às forças cegas do mercado, o que teria um efeito curativo sobre o impulso da humanidade incasta a multiplicar-se e executaria silenciosamente a "lei da população" pela sua marcha devastadora. A "voz da natureza" deve, por conseguinte, alcançar uma força legal positiva:

"Como um primeiro passo para qualquer mudança importante no sistema actual que possa limitar ou interromper o aumento do apoio a ser fornecido, acredito que somos obrigados pela justiça e pela honra a negar o direito dos pobres a todas as formas de subsistência. Para este propósito, eu gostaria de propor uma lei com o conteúdo de que nenhuma criança legítima nascida depois de um ano, e nenhuma criança ilegítima nascida depois de dois anos da data da lei, deveria jamais ter direito ao apoio da comunidade [...] Isto funcionaria como um aviso aberto, claro e definitivo que ninguém poderia entender mal [...] Se então, depois de a advertência que propus ter sido dada e o sistema de leis dos pobres ter sido revogado em relação à geração futura, alguém quisesse se casar sem a perspectiva de poder alimentar uma família, ele seria completamente livre para fazer isso. Embora, na minha opinião, casar neste caso seja um acto imoral, não é um acto que a sociedade possa prevenir ou punir com razão, porque o castigo previsto pelas leis da natureza atinge directa e severamente aquele que comete o acto [...] Ele deve, portanto, ser deixado ao castigo da natureza, o castigo da necessidade. Ele ignorou a advertência mais clara e definitiva, e não deve acusar ninguém além de si mesmo [...] Qualquer apoio da comunidade lhe deve ser negado, e ele terá que confiar na caridade insegura dos indivíduos. Terá de aprender que as leis da natureza, que são as leis de Deus, o condenaram e à sua família ao sofrimento, porque não obedeceu às repetidas admoestações que lhe foram feitas; que não tem mais o direito de exigir da sociedade o mais pequeno bocado de comida […] Quanto às crianças ilegítimas, uma vez dada a devida advertência, elas não devem ter direito ao apoio da comunidade, mas devem ser deixadas unicamente à caridade privada [...] A criança, relativamente considerada, é de pouco valor para a sociedade, pois a sua posição será imediatamente substituída por outra [...]" (Vol. 2, 296ss.).

Por mais triste que isto possa ser, o Sr. Malthus assegura-nos que tem a sua bondade. Pois ele partilha naturalmente a visão dos Srs. Mandeville, Kant, Sade, Smith, Bentham e de toda a filosofia iluminista sobre a "preguiça inata" do material humano, ao qual se tem de explicar "a lei da necessidade", isto é, a "miséria e o medo da miséria" (vol. 2, 18). A fim de evitar que as pessoas não fiquem infelizes com pensamentos estúpidos, elas devem ser "impulsionadas pela necessidade a oferecer o seu trabalho em troca dos artigos necessários para a vida" (vol. 2, 32). Afinal, na civilização liberal burguesa já não se vive "em estado de selvajaria, onde não há preço de trabalho regular" (vol. l, 32). Neste sentido, o Sr. Malthus, juntamente com todos os montadores da "bela máquina", sente-se bastante confortado: "Sempre considerei a lei da população como uma lei que é particularmente adequada para um estado de disciplina e prova" (vol. 2, 468).

Entendamo-nos: Esta versão da teoria de Malthus já é a versão "desactivada"; pois no prefácio da 2ª edição de 1803 ele se apressa a assegurar-se de que tinha feito um esforço "para mitigar as conclusões mais difíceis da primeira edição" (vols. 1, 4), e no prefácio da 6ª edição de 1826 ele repete mais uma vez que estão "fora de consideração" "aquelas passagens que foram erradicadas contra as quais a maioria das objecções foram levantadas", e que ele tinha "feito mais correcções do mesmo tipo na presente edição" (vol. 2, 469-469).

A teoria e o programa de Malthus representam uma singular declaração de guerra à humanidade, em nome da razão iluminista e das "leis da natureza" do capitalismo. Nunca antes uma ameaça geral de aniquilação social foi expressa tão abertamente (em Sade ainda poderia ser considerada como um mero excesso literário). Falar assim só se tornou possível e "necessário" ao serviço daquela divindade secularizada, que os iluministas tinham feito subir ao trono na forma da "máquina do mundo" económica. E esta declaração de guerra, como resposta da sociedade capitalista da economia de mercado à revolta social das massas, como programa da guerra civil social "de cima" e da "solução final da questão dos pobres e do desemprego" soa tanto mais penetrante quanto já não é apresentada com o cinismo literário deslumbrante de um Mandeville, mas com a voz de falsete de um pregador, no tom do fanatismo religioso.

O sucesso desta teoria na "boa sociedade" foi tremendo. Diante da permanente ameaça ou manifesta revolta social, surgiu nos melhores círculos uma nobre concorrência, inspirada na obra de Malthus, com propostas de ultrapassagem das vias de como o "supérfluo" poderia ser exterminado de forma mais humana e silenciosa. Friedrich Engels relata em 1844 no Deutsch-Französische Jahrbücher que o prémio foi para um panfleto publicado em 1838 sob o pseudónimo de "Marcus", no qual se propõe "uma instituição estatal para a morte indolor dos filhos dos pobres" (citado em Meek 1956, 62). O que antes tinha sido uma sátira amarga em Swift reapareceu agora como uma séria reflexão burguesa, numa sociedade que estava obviamente dando passos gigantescos em direcção à sua real desumanização, dissolução e autodestruição.

Nunca devemos esquecer que Malthus disse a última palavra da moderna sociedade capitalista de mercado e dos seus ideólogos liberais para o caso de uma crise sem saída: Em tal situação, portanto, o sistema de mercado nunca está em causa, mas é sempre a existência das pessoas que está em causa. Depois de na "naturalização" do social ter sido dado o passo para a "biologia da crise", não houve paragem, e a consequência malthusiana espreita até hoje, tanto na evidência quotidiana como na evidência intelectual da economia de mercado totalitária.

Isso pode ser visto não em último lugar na retrospectiva dos historiadores académicos oficiais, que hoje não apenas ignoram ou minimizam apologeticamente a guerra civil social na era do capitalismo pré-industrial e da Primeira Revolução Industrial, mas também adoptam a argumentação malthusiana em seu cerne para explicar axiomaticamente a grande crise de transformação. Assim, Wolfram Fischer, professor de História Económica e Social na UE Berlim, num estudo recente sobre a industrialização de Baden, considera ter sido estabelecido que a pobreza em massa da Primeira Revolução Industrial tinha sido completamente mal interpretada pelos críticos da sociedade e do capitalismo:

"Muitos, se não todos, acreditavam que os novos métodos de produção fabril eram os culpados [...] Hoje isso está claramente refutado. Não só podemos provar que os trabalhadores da fábrica ganhavam mais do que os jornaleiros, [...] mas também conhecemos as razões do aumento dos pobres: a população, especialmente das classes mais baixas, começaram a crescer mais depressa do que os empregos" (Fischer 1992, 139).

A verdade e a honestidade históricas estão aqui tanto em risco quanto a gramática (embora o próprio material de Fischer possa, em parte, ser usado contra a sua argumentação conformista com a economia de mercado). Na mesma linha, o historiador social Hans-Ulrich Wehler, particularmente conhecido pela sua aclamada "História Social Alemã":

"Entretanto, pode ser desenvolvido um modelo explicativo que faz jus aos factores essenciais e é cada vez mais apoiado empiricamente. Aqui é preciso partir das verdadeiras causas históricas da nova pobreza em massa. O facto fundamental, com o qual toda discussão sobre o empobrecimento deve começar, é o veemente crescimento populacional iniciado antes de meados do século XVIII e que continuou por mais de um século. A partir desta terceira vaga de expansão da revolução demográfica europeia, cujo carácter e efeitos foram descritos na Europa Central, foi exercida uma pressão inexoravelmente crescente sobre todos os recursos de que as sociedades alemãs dispunham no quadro da sua constituição sócio-política e económica para que as pessoas pudessem viver as suas vidas. O facto de o crescimento demográfico poder continuar a este ritmo durante tanto tempo pressupunha um entrelaçamento complexo de vários factores determinantes, nomeadamente duas condições económicas: o avanço do capitalismo agrário, a modernização da agricultura [...] criou postos de trabalho [...]; em segundo lugar, os rendimentos crescentes, a melhoria da produtividade, o aumento das quotas de mercado [...] contribuíram para alimentar a população em crescimento [...]. Ao mesmo tempo, o sistema proto-industrial de trabalho doméstico por empreitada[...] deu a um grande número de pessoas pão e uma chance de sobrevivência [...] até que – temido durante décadas e discutido com mais veemência do que antes desde 1820 – uma espécie de limite de saturação da economia foi atingido na década de 1830. Os vários sectores da economia foram cada vez menos capazes de absorver a avalanche de candidatos a emprego. O crescimento da população e do potencial da força de trabalho precedeu o crescimento económico que era possível nas condições socioeconómicas e políticas da época" (Wehler 1987, 284).

Fischer e Wehler representam igualmente uma fantástica argumentação malthusiana, que é atribuída como se fosse evidente à história da modernização; e estes não são de modo nenhum casos isolados, mas representam o mainstream do empreendimento científico academicamente devoto do Estado na corporação dos historiadores. O espírito positivista nega toda a história da constituição e da imposição do capitalismo e refere-se, como se nada tivesse acontecido, aos resultados objectivados, cuja interpretação inverte os factos e não leva a sério os séculos de dura e desesperada resistência dos movimentos sociais. Assim, a expropriação violenta das pessoas do controlo sobre a sua própria produção e condições de vida, e a sua transformação num mero combustível para a "valorização de valor", bem como o subsequente escárneo, aparece como uma provisão benéfica de "empregos" e "oportunidades de sobrevivência", enquanto a "produção humana" adicional forçada pela "política populacional" absolutista para os campos de batalha da modernização opera como um fenómeno natural de uma "explosão demográfica" sem pré-requisitos sociais. Fischer e Wehler assumem então com Malthus que o puro crescimento populacional ultrapassou, por assim dizer, as forças produtivas do capitalismo inicial. Na realidade, o oposto é que é verdadeiro: as forças produtivas capitalistas sempre cresceram muito mais depressa do que a população. Mas uma parte desproporcionalmente grande do aumento da produtividade foi desperdiçada nos aparelhos militares absolutistas e na concorrência nos grandes mercados anónimos, de modo que a participação das massas no produto social total (não apenas em termos absolutos, mas também per capita) caiu muito abaixo do nível pré-moderno.

A crise da pobreza e da fome não surgiu da desproporção entre o crescimento da população e o crescimento das forças produtivas, mas apenas da extorsão capitalista, de acordo a racionalidade da economia empresarial e a taxação da burocracia estatal. Mesmo no século XX, a produtividade cresceu muito mais depressa do que o padrão de vida das massas, que hoje está caindo rapidamente por todo o mundo, mesmo no ponto alto da Terceira Revolução Industrial. Estas restrições capitalistas aos recursos parecem a Wehler ser neutras, positivistas e eufemisticamente empacotadas como "o quadro da constituição sócio-política e económica", ou como "as condições sócio-económicas e políticas dadas", que parecem ser "dadas por Deus", tal como em Malthus. Tal tem de ser o caso, naturalmente, numa argumentação apologética, para a qual uma "quota de mercado acrescida" é, em si mesma, um "factor positivo" e é classificada ao mesmo nível que uma "produtividade melhorada".

Do mesmo modo, é uma distorção maliciosa dizer que o trabalho de fábrica da Primeira Revolução Industrial teria trazido uma melhoria nos níveis salariais. O que é suposto provar que mesmo uma criança na fábrica estava financeiramente melhor do que, por exemplo, um tecelão manual adulto? Isto só mostra que a Primeira Revolução Industrial arruinou inicialmente muito mais pessoas do que foi capaz de absorver durante décadas. A concorrência das máquinas empurrou os artesãos para o ponto mais baixo de empobrecimento. E isso não é suposto ter sido um efeito da industrialização? Nestas condições de catástrofe social, os salários das fábricas eram apenas relativamente mais elevados do que os dos trabalhadores jornaleiros, tecelões, trabalhadores agrícolas, etc. – mas apenas relativamente, dentro de uma brutal redução geral do nível salarial! Assim, Karl Marx mostra, numa conferência realizada em Bruxelas em 1848 com base em fontes contemporâneas, que em Inglaterra "o salário do tecelão manual caiu de 28 xelins por semana em 1815 para 5 xelins em 1843; e o salário do tecelão mecânico foi reduzido de 20 xelins por semana em 1823 para 8 xelins em 1843" (Marx 1977/1848, 445). Na dicção do Professor Fischer, isto levaria à conclusão optimista de que, como resultado dos maravilhosos efeitos da Primeira Revolução Industrial, o trabalhador da fábrica estava, no final, melhor do que o artesão.

Talvez estes senhores já não queiram aceitar uma declaração de Karl Marx, ainda que esta deva ser puramente factual e devidamente verificável. Mas, pelo menos, devem acreditar no seu garante e inspirador de palavras de ordem, Malthus. O próprio Malthus admitiu impassivelmente, com base em relatórios apresentados à Câmara dos Lordes britânica, a redução capitalista do nível de rendimento e do poder de compra: "Ao examinar estes relatórios, verifica-se que, em alguns casos, o salário dos tecelões caiu um terço ou quase metade, ao mesmo tempo que o preço do trigo aumentou um terço ou quase metade" (Vol. 2, 196). E o que Malthus relata aqui sobre a Primeira Revolução Industrial na Inglaterra pode ser facilmente dito sobre o desenvolvimento atrasado de então no Continente e na Alemanha. Se já se argumenta à maneira apologética e malthusiana, então devemos pelo menos ser tão abertos e sem rodeios como Malthus, em vez de distorcer as conclusões como Fischer e Wehler.

 

 

Emancipação social ou revolução política nacional?

 

Enquanto na Inglaterra e na França o absolutismo já tinha estabelecido a formação burguesa do Estado-nação, tendo o patricídio do liberalismo ao absolutismo ocorrido aí muito antes do início da Revolução Industrial, ambos os desenvolvimentos coincidiram na Alemanha. Ao contrário dos seus colegas ocidentais, os protagonistas alemães da "bela máquina" tiveram, por isso, de travar uma guerra em duas frentes, tanto contra o absolutismo aparentemente inquebrantável dos pequenos Estado principescos como contra a revolta social tremeluzente de baixo para cima. A insegurança das frentes sociais e históricas tornou-se particularmente evidente nesta situação. As linhas de divisão algo estruturais dos vários impulsos e motivos entrelaçados e em luta só depois podem ser desenredadas de um ponto de vista para além da chamada era moderna, e não puderam ser totalmente compreendidas nessa altura pelas partes em conflito, que, naturalmente, tinham de permanecer inconscientes do progresso da sua própria história. Foi neste contexto contraditório que tiveram lugar os acontecimentos da chamada "Revolução de 1848", que ficou na história europeia e alemã da industrialização.

Primeiro, havia o absolutismo como "criador original" do modo de produção capitalista, com a sua fachada aristocrática cada vez mais fina, já duramente atingida pela revolução burguesa inglesa do século XVII e pelas francesa e americana do século XVIII, e com a sua pretensão estatista de soberania sobre a sociedade burguesa, que já tinha sido economicamente superada a favor da "livre iniciativa". Em segundo lugar, havia o republicanismo liberal, como ponta de lança de um maior desenvolvimento capitalista, que, por um lado, queria combinar a liberdade do dinheiro e dos mercados o mais possível sem limites com as "liberdades políticas" de imprensa, do direito de voto, do Estado de direito burguês, etc. e, por outro lado, queria armar o forte e duro "Leviatã" contra a revolta social do material humano, na medida em que este ainda recusava o "trabalho abstracto" e suas leis coercivas.

A oposição externa aparente entre absolutismo e liberalismo assentava numa base económica comum, cuja forma política, no entanto, era controversa. Embora o absolutismo já tivesse produzido a forma de Estado-nação no Ocidente, este ainda permanecera inteiramente adaptado às suas próprias necessidades e fora entendido de modo puramente funcional. Na medida em que o próprio liberalismo levou o Estado-nação para além do absolutismo, o seu estatuto também mudou: o quadro de referência nacional ganhou a sua própria "identidade" irracional, que não possuía anteriormente. Enquanto o absolutismo prevaleceu, a polaridade estrutural do Estado e do mercado ainda tinha aparecido como a antítese do absolutismo e do liberalismo; mas agora o próprio liberalismo queria (ou já tinha conseguido) ocupar ambos os pólos. Para isso ele precisou de uma construção constitutiva da identidade que juntasse a economia nacional e o Estado nacional. Assim, procurou-se uma substância ou entidade histórica supostamente subjacente, e descobriu-se a chamada nação: uma conexão em nenhum lugar claramente definível que determinasse certas unidades geográficas e pontos comuns culturais, como a língua, de um modo anteriormente desconhecido, como um campo primário de acção e fronteira externa para a "bela máquina" e seu moderador estatal.

Na primeira metade do século XIX, a burguesia liberal (especialmente na Alemanha capitalistamente atrasada) carregava uma forte carga psicossocial e emocional nesta construção da identidade nacional; os sentimentos de "patriotismo", que antes eram dirigidos para contextos completamente diferentes (cidades-Estado, príncipes, etc.), estavam agora ligados ao novo quadro de referência mais abstracto da nação e tornavam-se "nacionalismo". O nacionalismo é o patriotismo da era burguesa produtora de mercadorias. E, portanto, não é surpreendente que esses sentimentos tenham cabido inicialmente sobretudo aos ideólogos liberais e suportes funcionais de uma maior modernização capitalista, tendo sido incorporados nos Estados alemães como livros ilustrados por patriotas constitucionais da língua alemã e biedermeier do toque de Ludwig Uhland. A vertente social e ideológica da modernização capitalista que emanava do absolutismo, por outro lado, permaneceu ainda reservada à ideia nacional burguesa durante muito tempo, especialmente a leste do Reno, orientando a sua reivindicação de poder mais para o sistema de referência das dinastias, embora os aparelhos do Estado e as economias de mercado instaladas por si só se agrupassem em contextos económicos nacionais.

E, em terceiro lugar, havia o movimento social e a revolta de massas a partir de baixo, conduzidos pelos estratos "sub-burgueses" e agindo inteiramente fora da sociedade burguesa oficial. Como a própria inteligência desse movimento mal chegou a ter a palavra historicamente, e apenas poucos dos seus documentos foram transmitidos, que além disso foram falsificados e suprimidos (como sabemos agora, os Irmãos Grimm até distorceram e estilizaram os contos populares à maneira burguesa), só podemos dizer de seu "orçamento emocional político-social" o que Thompson apontou como essa orientação de "economia moral e cultura plebeia" para o lazer, o "rendimento justo", etc.; de qualquer modo, esse movimento era completamente estranho, até mesmo hostil, ao mundo das ideias de "progresso" burguês e aos seus conceitos; e também não era nacionalista no novo sentido liberal.

Claro que seria completamente errado dissecar os rebeldes sociais como livres dos ressentimentos nacionais ou regionais do seu mundo, e dar-lhes uma espécie de superconsciência histórica, como se eles já tivessem ido além do nacionalismo moderno antes mesmo de ele se impor. Mas, se os Luditas ocasionalmente se autodenominavam "ingleses de nascimento livre", era obviamente mais uma metáfora da independência social do que do sentimento nacional burguês desenvolvido, mesmo que houvesse ressentimentos contra os franceses (devido aos velhos medos de uma invasão das Ilhas Britânicas) ou contra os "irlandeses sujos". Contudo, os elementos da xenofobia, que são suficientemente ruins, devem ser distinguidos do verdadeiro nacionalismo da era burguesa. Além disso, as revoltas populares inglesas do século XVIII já tinham marcado diferenças sociais, mesmo quando os seus motivos sociais se mascaravam, por exemplo, de "anticatolicismo" (como nos chamados tumultos de Gordon, em Londres):

"E, ainda mais sem rodeios, essa necessidade de acertar contas com os ricos veio à tona nos tumultos de Gordon, nos quais os rebeldes proclamavam alto e bom som o seu ódio geral aos católicos, mas depois atacaram apenas as casas dos católicos que viviam nos melhores bairros do oeste da cidade, enquanto pouparam os bairros católicos densamente povoados [...] Do mesmo modo visaram apenas as pessoas de boa posição, donos de fábricas, comerciantes e estalajadeiros católicos, mas deixaram incólumes os artesãos e assalariados católicos – isto é, pessoas da mesma religião –, uma diferenciação social que sem dúvida poderia ser comprovada também em outros tumultos urbanos da época" (Rudé 1977, 61).

Nos movimentos verdadeiramente nacionalistas e racistas de tempos posteriores, especialmente no século XX, já não encontramos tais diferenciações, porque não procedem mais do próprio ponto de vista de assegurar simplesmente a existência, mas já do ponto de vista capitalista da concorrência, que se traduz em imagens do inimigo ideológicas assassinas, independentemente da filiação social. Mas se a população revoltosa das favelas de Londres do século XVIII não era nacionalista no sentido moderno, também não o eram as revoltas Luditas do início do século XIX com a sua "economia moral". Os motivos vagos e retrógrados do movimento dos estratos da "classe sub-burguesa" eram no seu todo menos nacionalistas do que de natureza folclórico-cultural, religiosa e familiar, ou seja, ainda não estavam imbuídos dos ressentimentos específicos da modernidade.

Como vimos, estes movimentos não tinham conseguido estabilizar-se a si próprios e formular a sua própria interpretação emancipatória do mundo contra a máquina de modernização burguesa para além das abordagens iniciais. Mas, porque a miséria em massa na primeira fase da industrialização entre a virada do século e 1850 foi tão enormemente aumentada, tendo a revolta ameaçado reacender-se tão generalizadamente que a ideia ou motivo da autodeterminação social emancipatória e do auto-entendimento das novas forças produtivas – contra o sistema categorial mecanicista da modernização – ainda parecia estar no ar, o absolutismo e o liberalismo estenderam imediatamente as mãos contra este "perigo" e mobilizaram-se em conjunto. As ideias não abandonadas de emancipação social contra o sistema de mercado totalitário, que ainda hoje aguardam a sua redenção, apareceram na história intelectual oficial apenas como a "irracionalidade" das massas empobrecidas e famintas. O Sr. Malthus é novamente bastante inequívoco:

"Confesso que várias vezes, nos últimos anos, em conversa com os trabalhadores, fiquei extremamente desencorajado quando percebi seus persistentes preconceitos sobre a questão dos cereais, e mais claramente senti a incompatibilidade quase absoluta de um governo verdadeiramente livre com tal grau de ignorância. Os erros são tais que, se tivessem de ser tratados, teriam de ser violentamente suprimidos (!) [...]" (Vol. 2, 311).

Já sabemos que esta questão não pôde ficar no conjuntivo. Na medida em que Malthus está desesperado para ensinar ao material humano "irracional" "alguns dos princípios mais simples da economia" (vol. 2, 310), ele está pronto para esquecer a oposição liberal ao absolutismo e mesmo à ditadura militar, porque, no caso de não aceitação dos princípios capitalistas e de revolta social, todos os conflitos de interesses e de ideias têm de ficar para trás perante o dever de resgate violento do sistema:

"Enquanto qualquer homem de talento insatisfeito for capaz de persuadir as classes mais baixas de que toda a sua pobreza e sofrimento derivam apenas da iniquidade do governo, [...] a semente do descontentamento e da revolução será obviamente espalhada sempre de novo [...] A populaça, que por regra é o resultado de uma população em excesso (!), com a sua fúria agitada com os sofrimentos reais, mas com total falta de clareza sobre a sua origem, é o mais perigoso de todos os monstros que ameaçam a liberdade. Como amigo da liberdade e inimigo natural de grandes exércitos permanentes, só posso admitir com relutância que, sem o grande poder militar organizado do país, a miséria do povo nos últimos anos de necessidade [...] poderia tê-lo levado aos mais terríveis actos de violência. Se esses períodos se repetirem com mais frequência (um regresso que bem devemos temer depois do actual estado do país), a perspectiva que se nos oferece é muito triste. A situação da Inglaterra caminharia então a passos rápidos para a eutanásia profetizada por Hume, pois uma revolta popular interromperia o seu progresso, e essa alternativa oferece uma imagem ainda mais terrível à imaginação [...] Dificilmente podemos acreditar que os guardiões nomeados da liberdade britânica devessem ter silenciosamente permitido os abusos crescentes do poder supremo que ocorreram nos últimos anos, se eles não tivessem temido esses males ainda mais terríveis. Por muito grande que tenha sido a influência da corrupção, não posso pensar tão mal dos senhores de Inglaterra a ponto de acreditar que eles teriam renunciado a parte do seu direito inato à liberdade se não tivessem sido conduzidos por um medo real e genuíno de serem mais ameaçados pelo povo do que pela Coroa. Aparentemente entregaram-se ao governo sob a condição de estarem protegidos da multidão [...] Sem dúvida, os pilares mais bem sucedidos da tirania são aqueles agitadores gerais que culpam por toda a miséria dos pobres e por quase todos os males aos quais a sociedade está sujeita as instituições humanas e a injustiça dos governos [...] Por estas razões, um verdadeiro amigo da liberdade, um ardente defensor dos verdadeiros direitos humanos, pode encontrar-se entre os defensores de um alto grau de tirania. Uma coisa má em si mesma pode ser apoiada pelo bom e virtuoso, simplesmente porque aquilo que se lhe opunha era muito pior, e porque era necessário naquele momento escolher entre os dois males" (Vol. 2, 275-284).

Assim, Malthus admite abertamente que, pelo menos na Inglaterra, a guerra civil social seja realmente travada, apesar de todo o optimismo oficial. E as suas palavras, que podem ser consideradas representativas, não deixam dúvidas de que o liberalismo, contra a reivindicação de autodeterminação social fora e além da máquina de mercado capitalista, pretendia assegurar-se reflexivamente da "necessidade" do monstro estatal repressivo propagada desde os seus primórdios até aos dias de hoje: a liberal liberdade económica de o dinheiro submeter a si a vida das pessoas tinha que estar acima de todos os outros critérios e, se necessário, tinha que ser defendida militarmente contra as massas socialmente degradadas. Em caso de necessidade, portanto, o liberalismo atira-se desenfreadamente nos braços do Leviatã, cuja sombria ameaça de violência contra o material humano, e agora, na Primeira Revolução Industrial, sobretudo contra os "supérfluos", permaneceu a ultima ratio.

Na situação de crise aguda de meados do século XIX, isso não foi apenas na Inglaterra, mas em toda a parte, e especialmente na Alemanha. A burguesia, em oposição ao absolutismo em termos políticos, imediatamente se fundiu com o poder estatal, não importa qual, assim que este foi contra a revolta social não-burguesa. Há muitos hinos democráticos de louvor ao "progressismo" dos estudantes na revolução burguesa de 1848; mas esse "progressismo" era em grande parte estritamente limitado às "liberdades políticas". Os estudantes lutaram contra a censura absolutista, mas muitas vezes também em conjunto com o absolutismo contra todos os movimentos sociais independentes vindos de baixo para cima. Um exemplo disso é a participação decisiva da "guarda de segurança estudantil" em Tübingen na supressão da chamada "revolta das cabras" das classes sociais abaixo da burguesia:

"Os alunos eram e sentiam-se parte da burguesia culta. O seu objectivo político era participar e ter uma palavra a dizer na política, gozar das liberdades civis e expandir a Constituição – não sentiam qualquer responsabilidade social. Isto torna-se claro quando, em 1831 e 1847, eles se formaram militarmente duas vezes para reprimir a agitação social na baixa da cidade, e traçaram uma linha inconfundível entre si e os agitadores, ou seja, os viticultores mais pobres e os artesãos, que aos seus olhos não tinham direito à palavra. Inversamente, parece muito estranho que nas duas vezes as autoridades locais tenham feito um pedido de ajuda a associações oficialmente inexistentes e proibidas" (Sieber 1992, 97).

Estes são os pequenos e doces segredos da revolução burguesa liberal, de cuja tradição iluminista a esquerda alemã tem repetidamente recuado para o seu estábulo iluminista liberal, antes mesmo de estar preparada para pensar seriamente sobre a questão da emancipação social. Com isto já se diz que "a esquerda", na verdade, em sentido estrito, sempre foi apenas a "ala esquerda" do liberalismo e, portanto, paralisada na consequência anticapitalista. Tal afirmação pode parecer exagerada, mas esta ênfase é necessária para trazer à luz um contexto comummente oculto. Trata-se da relação das revoltas sociais aparentemente "silenciosas" (na verdade silenciadas pela esfera pública oficial e pela história interpretativa científica) com a oposição entre absolutismo e liberalismo dentro do capitalismo. A partir dessa relação ambígua, quase paradoxal, se desenvolveu toda a história posterior.

Os dois partidos dentro do capitalismo estavam unidos no estado de necessidade da revolta social contra os "trabalhadores pobres" e as massas famintas. Ao mesmo tempo, porém, eles também se comportaram tacticamente para com as classes sub-burguesas e seus movimentos sociais. Em Inglaterra foram os "Tories", o partido dos proprietários de terras conservadores, que inventaram a imagem (não livre de conotações racistas) de "escravo branco" para os novos trabalhadores de fábrica a fim criar um ambiente contrário aos "Whigs" liberais, o partido do empreendedorismo financeiro e industrial. Por sua vez, os Whigs gostavam de atribuir a situação miserável das massas às instituições anacrónicas e ao comportamento dos antigos "senhores da terra" da pequena nobreza. Mas na Inglaterra, devido à bem-sucedida substituição do absolutismo no século XVII, essa contradição táctica dentro da modernização capitalista estava bastante esgotada, tornando-se uma escaramuça mais retórica. Porque, ao mesmo tempo, as revoltas sociais inglesas até 1848 foram muito mais bem organizadas e mais duramente incisivas do que os movimentos continentais relevantes, governo e oposição, Tories e Whigs, "Coroa" e burguesia liberal rapidamente se uniram no sentido malthusiano no interesse do sistema comum:

"Na primeira metade do século XIX, a Inglaterra passou por uma onda de grandes protestos e revoltas, às vezes violentas, muito maiores do que nos estados da Confederação Alemã, mas essas revoltas não se tornaram revoluções. Por que não? O que era diferente em Inglaterra? […] Grandes manifestações e tentativas de insurreição também aconteceram na Inglaterra na primavera de 1848, mas, ao contrário da zona revolucionária europeia, da França até as fronteiras da Rússia e do decadente Império Otomano, esses movimentos ingleses imediatamente se depararam com uma aliança de governo e burguesia que agiu decisivamente e bloqueou todas as tentativas de revolução" (Langewiesche 1992, 436).

Mas isso apenas significa que não havia necessidade de uma revolução burguesa (liberal) em Inglaterra, porque isso tinha acontecido essencialmente há muito tempo e porque o liberalismo tinha finalmente de esmagar o ainda desenfreado movimento de emancipação social. No entanto, com isto também se diz que os movimentos anticapitalistas e as revoltas sociais que se desenvolveram em grande escala tiveram talvez menos a ver com esta revolução, pelo menos no sentido das ideias, ou talvez com o conceito moderno de revolução em geral, do que é normalmente assumido. Como facto puro, este facto não é de modo nenhum desconhecido pelos historiadores: "Obviamente, nenhum caminho directo conduziu dos graves problemas sociais da primeira sociedade industrial à revolução" (Langewiesche 1992, 431). Mas o que significa isso?

A consciência moderna oficial está inclinada a considerar a chamada revolução como a essência e o non plus ultra da radicalidade. Isto também se aplica ao "marxismo". No que diz respeito às revoltas sociais do capitalismo pré-industrial e da industrialização precoce, parece então como se estas não tivessem conseguido chegar à "verdadeira" revolução (política nacional). Mas talvez esse não fosse o seu objectivo, nem consciente, nem inconsciente, nem muito menos formulado. Era por isso que eram menos radicais, ou mesmo "reformistas"? Claro que não, basta pensarmos nos Luditas ingleses.

O que não bate certo aqui é simplesmente o sistema de conceitos que é colocado sobre esses movimentos. O radicalismo deles era obviamente diferente: Eles não queriam de todo ser "modernizados" no sentido capitalista e, portanto, não poderia de modo nenhum ser seu natural objectivo entrar na "cidadania" e no "Estado-nação", porque eles talvez suspeitassem mais do que sabiam que com isso sobrava para eles a eternização como material humano do "trabalho abstracto". Tanto quanto a revolta contra a inaceitabilidade e a inviabilidade das exigências capitalistas e das crises do sistema de mercado ganhou seus próprios contornos, ela sempre se refere àquela "cultura plebeia e economia moral" mencionada por Thompson, que por uma boa razão não era de modo nenhum idêntica às "liberdades políticas" liberais e aos sentimentos nacionais, porque estes eram apenas o modo para o próximo estágio de desenvolvimento de um sistema odiado de exploração e heteronomia. Tornar-se cidadão estatal e nacional só pode significar cair na armadilha da falsa emancipação formal, para se tornar eterno servidor da máquina social incompreensível e sem sujeito do capital, como "ganhador de dinheiro" sob a forma do trabalho assalariado. Certamente, os protagonistas das revoltas sociais ainda não podiam ter conceitos nítidos dessas conexões; mas instintivamente a sua revolta foi dirigida por igual contra o absolutismo e o liberalismo, permanecendo assim além das linhas "políticas" endocapitalistas de conflito.

A este respeito, também não quero de modo nenhum afirmar uma consciência "pura" e completamente independente das revoltas sociais, para além da constelação de conflitos superficialmente visível na sociedade burguesa emergente. Os motivos, ideias e movimentos não podiam ser hermeticamente isolados uns dos outros. No entanto, no interesse de uma visão social, é perfeitamente legítimo abstrair da situação real de conflito e traçar uma linha divisória entre o impulso da revolta social e a chamada revolução democrática burguesa, linha essa que aparece no processo histórico concreto, mas nunca é revelada clara e inequivocamente.

Esta situação de facto só pode ser entendida no sentido de que dois impulsos e movimentos incompatíveis se sobrepuseram e devoraram historicamente aqui: primeiro, a revolta social contra as imposições capitalistas em geral (incluindo a capa política ainda inacabada) e, segundo, o relativo conflito interno capitalista entre absolutismo e liberalismo, relacionado com as modalidades políticas, cujos picos históricos receberam o nome de "revolução", a partir da experiência primordial da grande Revolução Francesa. O curioso é que a revolução burguesa "política" do Estado-nação nunca poderia ter desenvolvido o seu poder de abalar o mundo em nenhum caso, se não tivesse sido carregada com o impulso da revolta social anticapitalista, que é estranha à sua essência. O próprio liberalismo foi, de um modo geral, sempre "reformista" em relação ao absolutismo. As erupções só ocorreram quando o movimento reformista liberal, quase se poderia dizer por acaso, entrou numa espécie de vibração por ressonância com a revolta social que lhe era estranha e exterior.

Podemos expressar o problema ainda mais paradoxalmente: As grandes revoluções burguesas da modernização, as "locomotivas" da história capitalista, só foram possíveis em conjunto com revoltas sociais que eram essencialmente dirigidas contra a modernização, a economia de mercado e o "trabalho abstracto". No entanto, é preciso distinguir uma diferença fundamental entre um "antimodernismo" socialmente emancipatório e um reaccionário. O absolutismo e suas figuras de proa de príncipes e monarcas, bem como a sua burocracia, que já tinham sido pioneiros da modernização da economia de mercado capitalista, agora, na defensiva contra o liberalismo burguês e o nacionalismo recém-chegado, criaram uma atitude e ideologia conservadoras e até reaccionárias contra a modernização capitalista que ameaçava passar por cima das suas cabeças. Dessa constelação, através de metamorfoses, surgiu o pensamento conservador moderno, que no terreno do mundo democrático posterior iria condensar-se num motivo específico de antimodernismo nos movimentos radicais, elitistas, anti-emancipatórios de direita e, em breve, já profundamente nacionalistas.

Os simpatizantes da modernização democrática e os malabaristas burgueses da liberdade compreenderam bem como retratar este antimodernismo meramente reaccionário e elitista como o único concebível e possível, suprimindo o antimodernismo emancipatório dos velhos movimentos sociais e erradicando-o mesmo da memória social. Mas os motivos retrógrados destes (aos quais, além disso, como demonstrado, eles não se reduziam de modo nenhum) eram de natureza completamente diferente dos da reacção endocapitalista; em contraste com esta, eram anti-autoritários e anti-elitistas, porque aderiam ao motivo da autodeterminação contra os "homens de acção" do sistema fabril. O grande serviço de integração ideológica do liberalismo "de esquerda", superficialmente anti-reaccionário, deveria ser dali em diante fechar o movimento social dentro da oposição burguesa interna, colocando-o diante da alternativa ilusória: ou o liberalismo burguês e o Estado de Direito no terreno do sistema coercivo de produção de mercadorias, ou o absolutismo reaccionário (ou, no século XX, a ditadura radical de direita e a barbárie).

 

Deste modo, os "modernizadores" burgueses conseguiram gradualmente reduzir as ideias sociais à oposição endocapitalista. No final do século XVIII e início do século XIX, do ponto de vista do liberalismo, isto ainda significava manipular tacticamente os efeitos das revoltas sociais independentes, mesmo que não pudessem ser completamente evitados, a fim de enfraquecer o campo conservador-absolutista: Por um lado, as revoltas sociais serão esmagadas em caso de necessidade juntamente com o Estado absolutista, por outro lado, serão usadas como uma espécie de compromisso no esforço de reforma liberal-nacionalista!

Na Revolução Francesa, isso quase correu mal. A revolta social naquela época (tal como há muitas décadas na Inglaterra) tinha tal força que, na verdade, ficou temporariamente fora de controle. É por isso que esta revolução, embora tenha resultado numa revolução burguesa, ironicamente se tornou um espectro para todas as classes burguesas e seus lobistas políticos. Revolucionárias no sentido "terrível" da palavra nesta grande revolução foram precisamente aquelas acções cujos portadores realmente queriam algo muito diferente da revolução em sua orientação posterior (nacional e estatal). Os liberais, com poucas excepções, nunca expuseram seus preciosos corpos às balas do antigo regime, nem nesta nem em qualquer outra revolução. No entanto, a verdadeira revolta popular, cujas preocupações estavam muito longe dos reformadores políticos, abriu involuntariamente a brecha decisiva no velho aparelho para eles. O liberalismo no poder poderia muito bem ter sido ele próprio vítima da revolta, e muitos "empresários livres" e capatazes esclavagistas burgueses também o foram isoladamente; mas, porque estavam politicamente ainda na sombra do absolutismo, os liberais foram levados ao poder por um movimento de massas que era realmente dirigido contra o capitalismo como um todo.

A "condição de possibilidade" para esta constelação absurda foi, naturalmente, a falta de capacidade da revolta social para se consolidar organizativa e ideologicamente; ao mesmo tempo, porém, foi também a brutal política militar e ditatorial opressiva do liberalismo no poder ou em colaboração com o aparelho absolutista. Onde a revolta social mostrou maior autonomia e consistência, como no caso dos Luditas ingleses, ela já era dirigida contra um capitalismo mais desenvolvido, que não queria mais entrar no embaraço "francês" e desde o início desencadeou todas as fúrias do Leviatã contra o movimento militante de emancipação social. Isto parece descrever o padrão básico da história revolucionária moderna.

Este esquema foi repetido em 1848, mas já quebrado pela história da modernização decorrida. A miséria em massa atingiu o seu auge, mas os Luditas eram apenas uma memória e praticamente desconhecidos no Continente. A múltipla revolta, causada pelas tremendas medidas de repressão capitalista das décadas anteriores, tinha pago um preço tão alto que agora tinha perdido a sua continuidade e só podia reagir imediatamente por iniciativa própria. Para o liberalismo a leste do Reno, que, ao contrário dos seus primos ingleses e franceses, ainda estava em sério conflito com o antigo regime absolutista, isto significava a possibilidade de manipulação política, desde que não se sentisse obrigado a dirigir a repressão. Julius Holder, "mais tarde o grande líder do liberalismo de Württemberg e Ministro do Interior de Württemberg em 1881" (Langewiesche 1992, 435), escreveu numa análise estratégica:

"O proletariado inicialmente dá força à classe burguesa; depois, quando se trata da sua pele, esta se preocupará com uma realeza de mente estreita e com o servidor público do diabo; deve acontecer o que o burguês quer, dado que ele espera a salvação do Estado, aqui ele quer conversar, cooperar, e o medo das classes baixas lhe dará a coragem do desespero perante os superiores na luta legal. Os burgueses não devem perder este tempo, mas devem examinar, através de reuniões, debates, etc., o que falta e onde, e como pode ser ajudado. O que eles agora propõem ao governo deve acontecer, senão eles não podem garantir a preservação da ordem [...] O proletário tira as castanhas do lume para a classe média; obtida a vitória desta, possivelmente nos tornaremos inimigos políticos. Mas daí ainda estamos muito longe" (citado em: Langewiesche 1992, 434).

No entanto, esta estratégia não estava isenta de riscos, tanto mais que a burguesia liberal tinha interiorizado ansiosamente a experiência francesa. Mas, perante a fraqueza ideológica da desesperada revolta social, pode-se esperar vacinar seus protagonistas com inoculações políticas e nacionalistas, a fim de remover seu ferrão emancipatório. Neste contexto, também foi possível instrumentalizar os instintos mais baixos e elementos desmoralizantes no próprio movimento social. É claro que a revolta social não foi de modo nenhum imune a motivos de distracção anti-emancipatória. Na Alemanha, o anti-semitismo moderno já estava emergindo naquela época, para fazer dos judeus bodes expiatórios das catástrofes sociais. Em 1819 e 1830, no sudoeste da Alemanha, ocorreram os chamados "motins Hep-Hep", assim chamados em homenagem a um suposto grito dos legionários romanos quando invadiram o templo em Jerusalém. Em Heidelberg e Karlsruhe, casas de famílias judaicas foram saqueadas, artigos domésticos atirados para a rua, etc., muito à semelhança com a "noite de cristal do Reich" mais de 100 anos depois. O facto de uma forte agitação por parte do jornalismo burguês também ter entrado no jogo é mostrado numa carta amarga sobre esses eventos de Rahel Varnhagen (um intelectual de origem judaica cujo famoso salão foi importante para a literatura romântica):

"Há três anos que digo que os judeus vão ser atacados. Tenho testemunhas. Esta é a vergonha alemã. E porquê? Porque eles são o povo mais civilizado, bondoso, amante da paz, honrado [...] Onde também há espaço para a inveja, contra um grande número de tais – judeus – [...] As insinuações que percorrem todos os jornais há anos. Os professores Fries e Rühs, e como todos dizem, Arnim, Brentano [...] e ainda pessoas mais altas com preconceitos [...] é mais que mau, a acção e a motivação, e não a acção do povo a quem se ensinou a gritar Hep [...]" (citado emWirtz 1981, 72s.).

Certamente "o povo", nestes casos, não foi a inocência perseguida, em si mesmo boa, apenas manipulada externamente, mas também em si mesmo germinou uma mentalidade de escravo traiçoeiro, que bloqueou o caminho da revolta social, por assim dizer "de dentro", e, num acordo paradoxal com os poderes dominantes, procurou derivar as contradições e catástrofes sociais do capitalismo sobre um irracional pogrom de bode expiatório. E esta síndrome profundamente vergonhosa em comparação com outras revoltas sociais (especialmente os Luditas ingleses), como se tornou visível pela primeira vez nos motins Hep-Hep, deveria acompanhar toda a história alemã. Naquela carta de Rahel Varnhagen, surge um indício da interacção maléfica dos instintos mais baixos entre as massas empobrecidas e a intelligentsia burguesa "nos bastidores", que acabaria por levar a Auschwitz. Perante esta perversão da revolta social as autoridades alemãs também foram menos implacáveis, como mostra um estudo das fontes históricas:

"A inacção das autoridades reguladoras neste caso só pode ser interpretada como deliberada. E para os jornalistas contemporâneos ficou claro que, oficialmente, apenas a populaça e meninos de rua eram questionados como perpetradores, embora muitos cidadãos estivessem envolvidos [...] O curso imperturbável do 'ataque aos judeus' sugere que as autoridades municipais e as forças da ordem fizeram vista grossa, e que isso tenha vindo à tona na investigação seguinte também não é surpreendente [....] O apelo à população foi relativamente suave e mostrou muita compreensão" (Wirtz l981, 63ss.).

A relativa brandura das autoridades capitalistas, dos aparelhos judiciais e policiais contra ataques anti-semitas e racistas em comparação com as revoltas sociais emancipatórias e seriamente anticapitalistas tem sido observada repetidamente em todo o mundo, especialmente na Alemanha, onde este facto faz parte da tradição nacional estabelecida. Ainda hoje, manifestantes de esquerda na Alemanha são frequentemente atacados e perseguidos com brutalidade desproporcional no caso das menores violações da "ordem pública", ou mesmo de meros gestos (por exemplo, assobios contra representantes capitalistas), enquanto (também recentemente de novo) mesmo graves ataques incendiários contra a acomodação de requerentes de asilo, caçadas de extremistas de direita contra estrangeiros ou actos de violência contra jovens de esquerda têm, em muitos casos, provocado apenas intervenções comparativamente em câmara lenta e pouco motivadas da polícia e da justiça. Esta mentalidade e tradição do Estado alemão e do aparelho da "ordem" remonta ao século XIX.

Enquanto um ocasional consenso alemão de absolutismo, liberalismo e revolta pseudo-social na forma perversa de pogroms anti-semitas apareceu desta maneira já "antes de Março" como um "pára-raios condutor", estes acontecimentos apontam para a dupla fraqueza da Revolução de Março de 1848: A vontade liberal de reformar também não foi suficientemente forte, por medo da revolta social e das "condições francesas", para impulsionar a estratégia delineada por Julius Holder, nem a revolta social foi suficientemente consistente e anti-autoritária para evocar, na sua relação paradoxal com o liberalismo, a ressonância sociopolítica que tinha realmente explodido o absolutismo em França mais de meio século antes. Medida em termos do conceito dela introduzido desde o século XVIII, a Revolução Alemã de 1848 foi justamente considerada como um empreendimento miseravelmente fracassado.

 

 

A escola dominical social-democrata do liberalismo

 

Mas foi precisamente a derrota histórica do liberalismo contra o absolutismo alemão que contribuiu decisivamente para prender para sempre a esquerda emergente (ou, mais tarde, o "socialismo") aos problemas do liberalismo, fazendo-a cair num longo beco sem saída histórico. Embora o socialismo "político" nascente já tivesse sido uma ramificação da filantropia burguesa e um produto das contradições internas do liberalismo na Inglaterra e na França, isso aplicava-se ainda mais à Alemanha. A revolta social autónoma e essas ramificações "de esquerda" do liberalismo não eram idênticas em nenhum lugar, e não está claro quais conexões existiam; de qualquer modo, por causa da história obscura do submundo anticapitalista, elas não podem ser determinadas com precisão, e o contexto continua a precisar de interpretação desde o início.

Para a Inglaterra, Thompson atribui aos Luditas o carácter de um "movimento transitório" (Thompson 1987/1963, 692) e assim (apesar da sua crítica esclarecedora, e de ele tomar partido pelo carácter independente da revolta social) permanece no horizonte conceptual do marxismo tradicional, na medida em que compreende implicitamente a revolta ludita como um "precursor" do posterior movimento operário, mais político-democrático. Isso provavelmente deve-se também ao facto de, para ele, o conceito jacobino-democrático de revolução ainda não ser problemático e a "politização" (cívica) dos movimentos sociais aparecer quase inevitavelmente como seu posterior e maior desenvolvimento. Ora é verdade que as correntes jacobino-democráticas podem ser provadas nas massas inglesas da época, e também pode ter havido inúmeras conexões, intersecções e sobreposições de impulsos luditas e burgueses-democráticos. Mas se está claro que um objectivo essencial da revolta ludita era a recusa da disciplina capitalista, então é muito duvidoso que o conceito de democracia tivesse desempenhado um papel importante; e, se sim, que não fosse entendido num sentido completamente diferente do sentido político.

O próprio Thompson cita material que sugere a linha divisória lógica entre o antimodernismo emancipatório da revolta social e a revolução burguesa liberal de esquerda democrática; assim, a carta de um jacobino inglês afirma: "Negamos e rejeitamos toda e qualquer ligação com destruidores de máquinas, incendiários de fábricas, extorsionistas, saqueadores de propriedade privada ou assassinos" (Thompson loc. cit., 688s.). Esta aversão sincera pode também ter existido igualmente em sentido contrário.

Na realidade, a relação entre a revolta social e o posterior "movimento operário socialista" foi muito problemática e de modo nenhum deve ser entendida como o desenvolvimento mais ou menos linear de uma consciência "política" classificada como "superior". Foi certamente uma transformação, mas equivaleu a uma ruptura profunda, e de modo nenhum levou a uma maior consciência emancipatória, pelo contrário. Muitas vezes se esquece que os pais fundadores da social-democracia e os padres da Igreja do Marxismo não foram consistentemente líderes e protagonistas da revolta social, mas sim liberais desorientados e moralmente chocados. O movimento social "selvagem", emancipatório e anti-moderno também foi visto pejorativa e condescendentemente pelo movimento operário marxista, que teve de esconder a sua própria vergonha. Na medida em que as revoltas sociais tinham sido suprimidas e exterminadas pelo terrorismo de Estado, o socialismo moderno emergiu mais dos grupos reformistas bem comportados das camadas sub-burguesas, organizados nas chamadas associações de trabalhadores: "Estas associações são geralmente dirigidas por burgueses liberais de boa vontade" (Rovan 1980, 4). Pode-se descrever com confiança a maioria das associações de trabalhadores fundadas desse modo como uma espécie de escola dominical sócio-política de filantropia burguesa, e até mesmo as figuras fundadoras do socialismo moderno do movimento dos trabalhadores eram originalmente menos rebeldes do que alunos da escola dominical do liberalismo, entre cujos livros de oração havia até mesmo escritos de Bentham, como Engels soube referir bem inocentemente.

Basicamente, essas aspirações surgiram da tentativa do liberalismo de influenciar as classes sub-burguesas no seu interesse, de "educá-las" também fora das fábricas, de ensinar-lhes certas "necessidades" e conceitos básicos de "economia" no sentido de Bentham ou Malthus, de prevenir ou amortecer as revoltas sociais e de devolver as contradições e restrições do capitalismo unilateralmente ao conservadorismo absolutista. Aqui vemos a alma mais íntima da social-democracia, que moldou toda a sua história até hoje. Mas, como é muitas vezes o caso, alguns intelectuais liberais que foram, por assim dizer, enviados como agentes na forma de professores seniores para os grupos sociais "perigosos" acabaram "virados do avesso" pelas suas experiências. Eles descobriram as contradições e a hipocrisia social do liberalismo, acabando por mudar o seu auto-entendimento e tomar o lado da crítica social do liberalismo.

Karl Marx e Friedrich Engels foram as figuras para sempre mais notáveis nesta transformação; muitas vezes se esquece que estes dois também se apresentaram originalmente como liberais (Marx foi presidente da Associação dos Trabalhadores de Colónia). É agora de grande importância perceber a alternativa histórica que poderia resultar da conexão destes novos intelectuais revolucionários com as "classes perigosas", especialmente no que diz respeito à forma como as novas forças produtivas deveriam ser retomadas e desenvolvidas. Se ignorarmos os momentos estreitos e retrógrados das revoltas sociais contra o sistema fabril capitalista, então o desejo de lazer e de uma actividade orientada para necessidades concretas (em vez de "trabalho abstracto"), bem como para a autodeterminação e autocompreensão cooperativas (em vez de dependência de mecanismos de mercado cegos e/ou paternalismo burocrático) podem ser destilados como os seus motivos generalizáveis e sustentáveis. Conseguiu então a nova crítica teórica do liberalismo dar a estes motivos emancipatórios da revolta social antimoderna os conceitos, mediando-os com as novas forças produtivas, ou permaneceu contaminada por elementos arrastados do pensamento liberal repressivo? Por outras palavras: o marxismo/socialismo emergente trouxe a revolta social para um antimodernismo emancipatório consciente, ou ele mesmo se tornou uma segunda teoria de modernização na base do sistema produtor de mercadorias e do seu "trabalho abstracto", como já dei a entender?

A teoria de Marx permaneceu altamente ambivalente a este respeito. Naturalmente, as circunstâncias pessoais e os contextos históricos devem ser levados em conta para reconhecer as transições teóricas e práticas do liberalismo para o socialismo. Marx e Engels já não puderam acompanhar directamente os pontos altos da revolta social inglesa: quando o movimento ludita foi finalmente derrotado, Marx, nascido em 1818, ainda era uma criança. Mas também teria sido improvável que Marx não tivesse levado quaisquer elementos da doutrina liberal dominante do seu tempo, que se originou em seu próprio pensamento, para a esfera socialista do pensamento.

Precisamente a sua generalização filosófica das contradições capitalistas sob a forma do "materialismo histórico" tornou as forças produtivas técnicas tão absolutamente a força motriz de toda a história que mesmo Marx não podia negar completamente a determinação "positivista" do sistema de máquinas, já observável até certo ponto no livro do jovem Engels sobre a situação dos trabalhadores. Embora Marx sempre tenha expressado simpatia pelas revoltas sociais, o seu julgamento negativo sobre a consciência dos "destruidores de máquinas" mostra que ele considerava o impulso destes essencialmente como uma aberração contra as "forças produtivas". Ainda que ele ocasionalmente sugira que a repressão social e a forma irracional de organização do capital também se tenham reflectido na sua forma tecnológica, este aspecto, que era o mais proeminente aos olhos dos rebeldes sociais, permaneceu subexposto na sua teoria. Na verdade, até se torna visível um flirt clandestino com a disciplina industrial quando ele fala da "classe operária treinada pelo mecanismo do próprio processo de produção capitalista" (Marx 1965/1867, 791). Para o posterior marxismo do movimento operário não havia então qualquer diferença entre as novas forças produtivas como potência humana e a sua manifestação tecnológica capitalista; os males sociais do capitalismo foram entendidos de modo puramente externo, no plano sociológico, e a forma tangível do sistema de fábrica e máquina (tal como dos produtos de consumo) apareceu imediatamente como a riqueza a ser apropriada.

Esta abordagem estava enraizada no conceito positivista, técnica e cientificamente redutor de progresso do liberalismo. E isso teve consequências. Pois, juntamente com a forma tecnológica do sistema fabril entendida mais ou menos acriticamente, o conceito de trabalho abstracto do liberalismo, que este herdara do protestantismo e dos regimes absolutistas e refinara capitalistamente, também foi amplamente adoptado. Embora Marx, na verdade, pensasse criticamente o conceito de "trabalho abstracto", ele de modo nenhum o separou claramente de um entendimento afirmativo; na sua obra, confunde-se constantemente um conceito crítico e um conceito positivo de trabalho. Na leitura do movimento operário marxista, este tornou-se uma transfiguração positiva da virtude operária protestante (e nos livros didácticos da RDA, paradoxalmente, o "trabalho abstracto" tornou-se a doutrina económica do Estado). Esta já era uma mudança fundamental em comparação com os motivos da verdadeira revolta social, cujos protagonistas os disciplinadores liberais estavam constantemente acusando de quererem "trabalhar" apenas três ou quatro dias por semana, ou apenas sentirem "ataques irregulares de vontade de trabalhar", se não se pudesse submetê-los à coerção pedagógica e fazê-los depender de rações de fome.

O facto de o marxismo se ter imaginado a representar "o ponto de vista da classe trabalhadora" foi uma honra muito duvidosa para a classe trabalhadora. Pois os movimentos sociais rebeldes da história da constituição do capitalismo tinham realmente lutado com as mãos e os pés contra serem feitos a "classe trabalhadora" sob o jugo do dinheiro. Foi também uma distorção maliciosa classificar as revoltas sociais de massas do século XVIII e início do XIX na categoria marxista usual de "pequena burguesia" radical ou reformista de esquerda (usada inflacionariamente para "dissidentes de esquerda" em particular), pois essas revoltas dos produtores directos e "trabalhadores pobres" não tinham nada a ver com a diligência ou a loucura dos pequenos proprietários e das "classes médias" sob condições capitalistas avançadas. Não é coincidência que haja uma lacuna na categorização social aqui, porque este problema quase não tem sido posto na história da teoria moderna. O facto de que poderia ser legítimo recusar a modernização repressiva de Bentham desde o início não pôde ser levado em consideração em nenhum dos campos ideológicos dos modernos racionalizadores da prisão do trabalho.

No entanto, Karl Marx não só expôs criticamente os mecanismos funcionais da "bela máquina" de um modo ainda hoje inultrapassável, como também produziu uma mediação sonhadora para as causas do anti-modernismo rebelde e emancipatório, que entrou na sua teoria de uma maneira estranhamente deslumbrante e transversal: justamente como a revelação do "fetichismo" social nas formas independentes do capital como fim-em-si, que equivale à crítica radical de uma socialização inconsciente através do dinheiro, e aponta para uma "associação de pessoas livres" emancipadas dele, que se reproduza para além da mercadoria, do dinheiro e do Estado através do auto-entendimento consciente, e use as novas forças produtivas para o lazer e o prazer em vez de para a repressão e a concorrência sem fim, sempre com nova azáfama no trabalho e na acumulação desmedida. Não é por acaso que Marx já colocou este motivo da metáfora do sonho nos seus primórdios: "Veremos então que o mundo há muito que tem o sonho de uma coisa da qual ele tem de possuir a consciência para a possuir realmente." (Marx 1956/1843, 346).

Na sua crítica ao fetichismo capitalista, que também representa implicitamente uma crítica à mania do trabalho e do desempenho, Marx criou uma abordagem teórica que poderia, por assim dizer, fornecer conceitos prospectivos ao antimodernismo emancipatório das revoltas sociais e ultrapassar os seus momentos de visão estreita e retrógrada. Mas a ponte não foi bem sucedida naquela época, porque as revoltas sociais mais bem organizadas e mais conscientes já tinham perecido, e o próprio Marx foi paralisado pelos elementos liberais da sua teoria. Sua imagem da filosofia como a cabeça e do proletariado como o coração de uma transformação social não foi realizada como uma fusão de revolta social e crítica radical do fetichismo capitalista, mas como uma união da escola dominical liberal para trabalhadores com os elementos da teoria de Marx influenciados pelo liberalismo. E o resultado foi a social-democracia.

A fusão radical da rebelião emancipatória com a crítica teórica do fetichismo moderno, ou seja, ir às raízes da história repressiva e irracional da modernização, aguarda assim a sua hora até hoje. Com o "ponto de vista da classe trabalhadora", que soa tão marcial, na verdade foi tomado um ponto de vista dentro do mundo burguês capitalista e da sua modernização permanente e inconsciente. Embora o marxismo do movimento operário tenha ocasionalmente lembrado que deve ser tarefa da "classe trabalhadora" abolir-se a si mesma juntamente com as classes sociais em geral, esta foi uma tarefa indefinida, adiada para um futuro imprevisível. Na história real, o "ponto de vista da classe trabalhadora" tornou-se o ponto de vista do "trabalho", ou seja, do princípio abstracto e repressivo que o liberalismo sempre tentou impor aos "trabalhadores pobres", e que seus alunos da escola dominical, que lutavam pela independência política e organizativa, ironicamente reivindicavam para si mesmos e queriam mobilizar como seu próprio princípio.

Certamente que mesmo a revolta social orientada para uma "boa vida" não poderia ter ultrapassado o conceito positivo de trabalho como tal; claro que também não estava livre da herança protestante, sendo a este respeito ideologicamente fraca, porque, de certa maneira, tinha de argumentar contra os elementos do seu próprio "super-ego". Mas a rebelião contra o "trabalho abstracto" foi possível porque o conceito positivo de trabalho entre os camponeses e artesãos estava orientado para necessidades concretas e permeado com uma cultura tradicional de lazer. A social-democracia, pelo contrário, já não estava em posição de distinguir o seu conceito positivo de trabalho do do liberalismo.

O conceito de emancipação social foi, assim, a partir de agora, aprisionado no princípio capitalista da actividade. O ponto de vista sociologicamente redutor da "classe trabalhadora", dentro das incessantes formas sociais da máquina social produtora de mercadorias, amarrou a própria vontade dos produtores ao moinho de degraus da economia de mercado. Estas formas objectivadas de repressão, ou seja, a maquinaria construída para fins capitalistas e o sistema fabril, o "trabalho abstracto", o valor económico e o dinheiro como meio social abrangente no contexto do fim-em-si capitalista incessantemente pulsante, tornaram-se supostamente "objectos neutros" da luta de interesses, e já não deviam ser repelidos e ultrapassados como exigências irrazoáveis, mas sim moldados positivamente.

Do liberalismo e suas contradições não resolvidas também foi tomada a resposta para a questão de como este projeto deve ser realizado: nomeadamente através da "revolução política" democrática no terreno do Estado-nação. Em vez de uma emancipação directa e real, sacudindo as imposições capitalistas, e através de uma aplicação alternativa e autodeterminada das novas forças produtivas, teve lugar uma emancipação indirecta e irreal, através da esperança da cidadania nacional e das suas gratificações também para os "trabalhadores pobres". As promessas irreais e meio ridículas de Mandeville, Smith, etc. foram levadas a sério e reclamadas "politicamente". A derrota da revolução de 1848 favoreceu esta orientação porque a "ala esquerda" que se separou do liberalismo e que deveria tornar-se socialismo interpretou a vitória provisória das antigas forças ainda absolutistas na Alemanha não do ponto de vista da revolta social emancipatória, mas do ponto de vista de ideais liberais ou promessas ideológicas não cumpridas.

A paradoxal conexão interna entre o movimento social antimoderno e a modernização liberal foi assim mal compreendida e aparentemente dissolvida numa suposta "traição do liberalismo" (ou, em linguagem sociológica: da burguesia capitalista) à "sua" própria revolução nacional e estatal. A verdade é que o liberalismo, como descendente patricida do absolutismo, não poderia ter-se preocupado em derrubar incondicionalmente os aparelhos absolutistas de um modo socialmente chocante, o que só era possível através da ressonância social das revoltas sociais emancipatórias e antimodernas, estranhas ao pensamento liberal e a ele opostas. O que o próprio liberalismo pretendia alcançar devia também ser desenvolvido em fases graduais de reforma, porque se tratava apenas de continuar a desenvolver as mesmas bases sociais.

A ala esquerda do liberalismo, transformada em socialismo ou "social-democracia", no entanto, permaneceu fixada na "libertação" formal político-nacional contra o absolutismo. Assim enriqueceu a oposição apenas relativamente liberal, nacional e política ao absolutismo (principesco) com uma consequência falsa e "idealista", tornando-se a herdeira ideológica das contradições insondáveis da "revolução burguesa", na qual desde então se imagina a continuar a consertar algo em si eternamente inacabado, embora tenha ficado presa nas rodas da "bela máquina". Num ciclo de tempo histórico que se retroalimenta e que há muito se esgotou, ela repete eternamente a "modernidade" como "projecto inacabado" (Habermas), sem nunca atingir o objectivo de uma "acção comunicativa" livre da dominação, que é a priori contrariada pelas formas fetichistas do capital e do "trabalho abstracto" que a si própria impôs. Fixado nessa pseudo-alternativa endoburguesa entre a democracia de Bentham e a ditadura absolutista ou mais tarde "radical de direita", o social-democratismo, na medida em que se referia seriamente ao objectivo da emancipação social, tornou-se do princípio ao fim o caso clássico de uma "consciência infeliz" (Hegel).

Essa fixação histórica do socialismo nos ideais de cidadania liberal supostamente não redimidos foi decisivamente reforçada por duas circunstâncias. Por um lado (e não só na Alemanha), apenas a ala da extrema esquerda do liberalismo era "democrática", ou seja, disposta a fazer a concessão de que os assalariados também devem gozar de liberdades cívicas e direito de voto plenos (a fim de se comprometerem com o sistema de imposições). O socialismo emergente, assim, capitulou à consequência "democrática" na revolução política, sem perceber que estava correndo para a armadilha que Bentham tinha montado: Pois Bentham tinha sido um democrata precisamente na medida em que tinha reconhecido antes do seu tempo a chance de, através de uma esfera pública total e uma total "autodeterminação negativa" na amarração férrea ao "trabalho abstracto", levar as pessoas à auto-repressão e auto-regulação automáticas em nome dos princípios capitalistas e quebrar a revolta dos indisciplinados nas suas próprias mentes. Depois de o socialismo ter adaptado de facto positivamente o sistema de "trabalho abstracto", ele tornou-se uma variante da democratização auto-reguladora de Bentham, na consequência altamente liberal-democrática da revolução política, sem disso ter consciência.

Por outro lado, porém, foi novamente a doutrina histórico-filosófica do "materialismo histórico" que forçou essa orientação fatal. A relação de Marx e Engels com os conceitos de democracia e nação, tal como emergiram da ideologia liberal, não foi menos ambivalente do que a sua relação com o conceito capitalista de trabalho. Eles de facto viram que a forma "democrática" e nacional da máquina política estatal ainda era uma função repressiva, que permanecia inseparavelmente ligada à subjugação das pessoas à máquina económica mundial do capital; no entanto, eles não levaram em conta os "processos de interiorização" das normas capitalistas de comportamento que aí ocorriam. A ideia mecânica de progresso assumida do liberalismo, que na forma do "materialismo histórico" definiu o modo de produção capitalista como um "estágio necessário de desenvolvimento", exigia muito simplesmente que fosse agora historicamente "a vez" do desenvolvimento da democracia burguesa e do Estado-nação contra o absolutismo.

Marx, em particular, manteve a distância relativamente às formas capitalistas desenvolvidas da cidadania e da nação, bem como relativamente ao "trabalho abstracto", que ele tinha reconhecido como a "substância essencial" do capitalismo a ser ultrapassado. Mas com esta distância, tal como com a sua obscura crítica do fetichismo moderno, ele permaneceu num metanível teórico completamente incompreensível para os seus contemporâneos (e para praticamente todos os actuais socialistas, democratas e outros infelizes herdeiros espirituais do "pensamento duplo" liberal), nível no qual ele, juntamente com Engels, concebeu todos os tipos de estratégias de caixa de areia, como a famosa "classe trabalhadora" dever primeiro impor o suposto "historicamente necessário" invólucro político e nacional do sistema de produção de mercadorias contra a "burguesia liberal inconsequente", apenas para depois explodi-lo novamente com objectivos completamente diferentes. Construções tão terrivelmente forçadas deixam claro como Marx, no fatal caminho do determinismo histórico, caiu nas teias da sua própria doutrina filosófica e se enredou numa contradição insolúvel.

Seus seguidores, reunidos à volta disso, no entanto, não precisavam de subtilezas teóricas tão complicadas. Apropriaram-se unidimensional e positivamente do "trabalho abstracto", da cidadania democrática e da nação como objectivos e princípios socialistas, sem reconhecer qualquer relativização metacrítica. Também na época após a Revolução de 1848 até à fundação (cronologicamente próxima) da social-democracia e do Reich alemão, todos os líderes posteriores do movimento operário tinham sido assediados pela ideologia liberal, como relata o patriarca social-democrata August Bebel (1840-1913) em suas memórias:

"A extensão do crescimento do movimento e a grande importância que ainda podia alcançar levou os liberais mais clarividentes a voltarem atempadamente a sua atenção para os trabalhadores e a convencê-los dos seus objectivos políticos [...] Assim, a partir de 1860, utilizaram o impulso dos trabalhadores para fundar associações de trabalhadores e promoveram-nas, procurando colocar à sua frente pessoas que acreditavam serem fiáveis [...] Portanto, os trabalhadores reuniram-se nas associações que os porta-vozes liberais ajudaram a fundar [...] Naquela época, os construtores de máquinas formavam a elite dos trabalhadores de Berlim e eram considerados como os verdadeiros guarda-costas do Partido do Progresso" (Bebel 1946/1910, 54s., 64).

Bebel, que ainda era criança em 1848, obviamente não tem ideia de que as associações liberais de trabalhadores já tinham desempenhado um papel na muito anterior industrialização inglesa, no período antes de Março e na Revolução de 48, e que seus venerados professores também tinham emergido desta escola. Muito menos ele está ciente, neste contexto, de que houve toda uma grande época de militante revolta social de massas contra o capitalismo, em grande parte independente desta história da escola dominical liberal. Assim, o distanciamento dos marxistas (e lassalleanos) do liberal Partido do Progresso como o primeiro movimento independente dos "trabalhadores" contra o capitalismo, e seu próprio nascimento "político" do ventre liberal aparece para ele como um pré-requisito natural. O marxismo do movimento operário emergente até permaneceu sob a influência organizativa liberal por vários anos:

"Enquanto Liebknecht e seu amigo Bebel organizavam associações de trabalhadores nas quais lançavam as bases para a educação política e económica nacional, eles permaneceram por muito tempo associados aos partidos liberais de esquerda, principalmente na Saxónia e em Württemberg. Mas gradualmente chegaram à conclusão de que a esquerda liberal era incapaz de estabelecer a unidade alemã por meios democráticos e anti-prussianos [...]" (Rovan 1980, 12).

Não se poderia dizer mais claramente que o socialismo, que laboriosamente cortava o cordão umbilical, tinha assumido as tarefas liberais de instalar um novo e mais moderno sistema de referência para a sociedade burguesa. Um movimento de emancipação social, como novo desenvolvimento da revolta social, pelo contrário, só poderia ter declarado a sua total falta de interesse numa tarefa do tipo "construir a unidade alemã". Pois uma rejeição radical do "trabalho abstracto" e o desenvolvimento de uma mobilização alternativa das novas forças produtivas para o lazer e a autodeterminação social teriam sido necessariamente idênticos a uma rejeição igualmente radical do invólucro do Estado-nação e a rumar para outra forma de coesão social, por exemplo, através de conselhos ou comités de unidades de auto-administração independentes dos espaços de referência "nacionais" burgueses.

Infectados pelo nacionalismo liberal e ainda parecendo "cientificamente" confirmados pelo determinismo histórico do materialismo histórico, os socialistas e o movimento operário marxistas tornaram-se ardentes idiotas do nacional da sociedade burguesa; e essa desvantagem intelectual permaneceu com eles no Ocidente e no Oriente até hoje. Os esforços peculiares da RDA para criar uma "nação socialista alemã" mesmo na fase de declínio pertencem a esta categoria, tanto quanto o correspondente aparar das visões de Marx e Engels sobre a nação, já no prefácio adulador do primeiro volume das "Obras de Marx e Engels" (MEW):

"O pensamento e a acção verdadeiramente patrióticos encheram as vidas destes grandes cientistas e revolucionários alemães. Um exemplo luminoso foi dado por eles nos anos de 1848/49, quando lutaram apaixonadamente pela unificação nacional da Alemanha numa base democrática" (Institut für Marxismus-Leninismus, ZK der SED 1978, XV).

Talvez este mau floreado de estilo religioso floresça como justo castigo para o "relativo jogo de cintura” do materialismo histórico e para os jogos estratégicos em caixa de areia de Marx e Engels, com os quais trouxeram a sua herança liberal para o socialismo, e concederam à perigosa mania da identidade nacional um "relativo progressismo" no funcionamento mecânico do relógio da história. Em suma, porque a revolta social emancipatória e a teoria marxista se desencontraram historicamente e não se procuraram, o marxismo reduziu-se a uma teoria burguesa alternativa do progresso, dentro dos limites do sistema produtor de mercadorias e das leis da cidadania (ignorando todos os elementos incompatíveis do contraditório pensamento de Marx que ia além de si mesmo). A crítica radical das imposições capitalistas foi substituída nos partidos "social-democratas" emergentes, que já em seu nome sugerem ter caído no sistema de Bentham, pela "política social" imanente ao sistema, enquanto a suposta radicalidade mudou para uma retórica de Estado nacional e cidadania. Assim como o liberalismo se originou da cabeça do absolutismo, o socialismo político e nacional originou-se da cabeça do liberalismo. Que o conceito de nacional-socialismo sofreria uma terrível modificação no século XX não poderia, naturalmente, ser previsto por ninguém em 1848 e nas décadas seguintes; mas a possibilidade ideológica nasceu naquela época. E assim como o confronto do liberalismo com o absolutismo foi um patricídio dentro da mesma família histórica, assim foi também o confronto do socialismo com o liberalismo. Apesar de todos os contrastes externos entre absolutismo, liberalismo e socialismo, ainda temos de lidar repetidamente com o continuum da comum economia de mercado que o "obscuro" e não reclamado Marx descreveu como o fetichismo da modernidade e que, depois de 1848, nas formas político-económicas do trabalho assalariado e da racionalidade da economia empresarial, devia tornar-se a neutra base social natural para todas as forças envolvidas. Poder-se-ia também dizer o seguinte: tudo o que desde então foi hediondo no socialismo foi herdado do absolutismo e do liberalismo.

 

 

Comércio livre e nacionalismo atrasado

 

A mudança para o Estado-nação e para o sistema nacional de referência económica logo se generalizou, assim como o irracional sentimentalismo nacionalista. Não só os partidos socialistas, que substituíram as revoltas sociais autónomas, se tornaram viciados na droga da insanidade nacional, mas também, e cada vez mais, as classes aristocráticas dominantes do absolutismo superficialmente vitorioso (na Alemanha). Teórica e culturalmente, os "grandes filósofos" do idealismo alemão já tinham trabalhado arduamente com antecedência. Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), o filho socialmente promovido de uma família de tecelões, fez campanha contra a dominação napoleónica da França em seus famosos "Discursos à Nação Alemã" em 1807/08, e criou uma absurda teoria da suposta superioridade da cultura e língua "germânica”-alemã sobre o mundo românico dos "Welschen" [do Sul]. E já antes disso Johann Gottfried Herder (1744-1803) tinha introduzido a ideia da "etnia", na qual os "povos nacionais" através das suas diferentes "culturas populares" aparecem como seres quase individuais que passam pelo seu próprio desenvolvimento, análogo ao processo de maturação e envelhecimento do ser humano individual.

Com Herder, a "etnia" ainda não tinha sido preparada e desenvolvida unilateralmente a ponto de se reconhecer a careta que o termo havia de assumir nos séculos XIX e XX, mas mistura-se com uma crítica perspicaz das inconsistências do pensamento iluminista e dos horrores do colonialismo europeu. Entre as "convicções" que ele propagou em suas "Cartas sobre a Promoção da Humanidade" (desde 1793) estão o "repúdio à guerra" e o "sentimento de equidade face às outras nações". No entanto, não é sem razão que Herder é considerado co-fundador do irracionalismo alemão historicamente desastroso. Ele já contém o traço básico que mais tarde deveria determinar cada pseudocrítica "alemã", "de direita", autoritariamente anti-emancipatória da modernização capitalista: nomeadamente a rejeição das manifestações e atitudes capitalistas, não do ponto de vista de uma crítica e desmantelamento da repressiva máquina mundial como tal, mas do ponto de vista de outras manifestações e atitudes capitalistas. Assim como o racionalismo e o irracionalismo, o Estado e o mercado não foram reconhecidos e criticados como pólos de um mesmo campo histórico, mas apenas jogados uns contra os outros, assim aconteceu com a polaridade do cosmopolitismo/universalismo, por um lado, e do nacionalismo étnico, por outro.

Herder já contrapôs assim ao universalismo abstracto da mercadoria e do dinheiro a suposta origem "étnica" do nacional, sem perceber que o constructo sintético da "nação" tinha surgido do mesmo contexto social da modernização, marcando um espaço funcional real dos próprios princípios capitalistas "universais". Na história da Primeira Revolução Industrial, a ideia de "nacional" de Herder foi agora reformulada numa versão despojada de qualquer ideia de "humanidade" e que pretendia fazer do nacionalismo o veículo da concorrência capitalista assassina entre economias nacionais ou Estados nacionais e "povos nacionais". O facto de a conotação emocional irracional do "nacional" ser particularmente desenfreada na Alemanha teve a sua razão de ser na liderança capitalista da Inglaterra e da França: Se a formação precoce do Estado-nação em Inglaterra foi associada a um funcionalismo mais económico e em França foi enriquecida pela grande revolução com abstracções e sentimentos políticos, a intelligentsia burguesa alemã criou um conceito especial de "sangue e solo" da "nação cultural alemã", babando-se de "nacionalismo", a fim enfatizar a independência alemã e distingui-la do conceito nacional "ocidental" da Inglaterra e da França.

Assim, no decurso do século XIX, já não se tratava apenas da instalação social do capitalismo como um princípio universal de socialização, mas de uma redefinição da concorrência entre Estados-nação para além do absolutismo. E deve ser evidenciado que o nacionalismo liberal burguês altamente ideologizado não só não foi acompanhado por uma reivindicação substancialmente maior de integração e homogeneidade sociais do que a da "graça divina" principesca do primitivo mundo capitalista dos Estados, mas também alimentou e aumentou o frenesim competitivo nacional em todos os aspectos. Assim como a economia independente do capital já não era considerada pelo liberalismo como um meio para atingir um fim, mas como uma espécie de religioso fim-em-si mesmo, assim também a nação se transformou de um mero domínio de poder (com o príncipe absoluto como sujeito) em uma metaunidade independente de concorrência, análoga e acima das subunidades da economia empresarial.

O nacionalismo alemão carregado de ressentimento da situação de retardatário histórico tornou-se o paradigma da "modernização atrasada" e do "nacionalismo atrasado". Ao inchar-se na concorrência capitalista contra o capitalismo francês e, sobretudo, inglês mais desenvolvidos, a "germanidade" viu-se irracionalmente além da "ganância" burguesa: o vil princípio do lucro parecia ser idêntico apenas à variante ocidental do capitalismo, enquanto o caminho próprio "alemão" (atrasado) para o capitalismo foi estilizado como uma suposta "tarefa superior". A nação foi assim ideologicamente transformada, de espaço funcional e manifestação do capital, numa "comunidade de destino" que supostamente se opunha ao "puro" capitalismo.

Este paradigma "alemão" seria repetido mais tarde em numerosas variantes dos "movimentos de libertação nacional" no Terceiro Mundo. Não é por acaso, e é pouco conhecido, que Johann Gottfried Herder foi recebido com entusiasmo na Europa Oriental, na Arábia e na África como um clássico e fornecedor de palavras de ordem para a formação "etno”-nacionalista da identidade. A sua crítica ao colonialismo europeu e o seu interesse também pelas "culturas populares" não europeias forneceram alimento para a modernização atrasada até bem dentro do século XX, a fim de alimentar culturalmente e dar um repressivo espartilho de identidade às respectivas massas, que se tornariam o material humano de uma máquina do capital independente para participar no mercado mundial. O irracionalismo alemão viveu muito além do seu tempo como fermento de uma "nacionalização das massas" (Mosse 1976), mesmo ainda sob o signo de uma "valorização atrasada" anti-imperialista em grandes partes do Terceiro Mundo, sobretudo sob várias máscaras "socialistas". No século XX, tal como antes na Alemanha e na Europa, as culturas de massas pré-modernas, transmitidas oralmente na periferia capitalista, também foram expropriadas e burguesmente editadas, falsificadas e abusadas para a invenção de constructos nacionalistas e "populares", a fim de cobrir a "bela máquina" de maneira culturalista. Que o marxismo e também a nova esquerda tenham reinterpretado este processo como "movimento de libertação", depois de 1968, sempre foi devido apenas à sua própria bagagem ideológica do conceito mecanicista de progresso, que saudava a modernização e a nacionalização capitalistas como uma "necessidade histórica".

A mera formação culturalista e "nacionalista" da identidade nacional teria sido certamente demasiado pequena já no século XIX para dar à nação uma consistência quase ontológica. Além disso, tinha de haver uma determinação económica mais estrita do nacional, que não se podia ainda encontrar em Adam Smith nem nos seus antecessores. Pois a "economia política", no sentido de Smith, via-se acima de tudo como aquela "lei da natureza" capitalista universal propagada pelo liberalismo, enquanto o sistema de referência económico nacional ou da economia nacional como tal era tematizado apenas de passagem. Do ponto de vista alemão de então de uma modernização atrasada, isso teve de mudar completamente. E assim não foi por acaso que um economista alemão invadiu a gloriosa falange dos teóricos económicos liberais ingleses e afirmou o ponto de vista da "economia nacional" no sentido mais estrito: Friedrich List (1789-1846) tornou-se um profeta não apenas da economia alemã, mas da economia nacional em geral, como pode ser visto no título de sua obra principal, que ele conscientemente distinguiu da teoria económica inglesa abstracta-universal ao chamar-lhe "O Sistema Nacional da Economia Política" (List 1841).

Se List descreveu tão vividamente as condições de vida miseráveis dos "comedores de batatas alemães", isso não foi nada porque ele quisesse criticar o modo de produção capitalista. Pelo contrário, ele próprio era um liberal convicto, que tinha apenas uma coisa a fazer: a industrialização da Alemanha capitalistamente atrasada. Para isso, ele critica a teoria económica de Adam Smith e seus sucessores David Ricardo (1772-1823) e Jean-Baptiste Say (1767-1832), embora não sem garantir que compartilha os princípios gerais de Smith e só quer fazer uma adição crítica no que respeita à lógica económica própria das nações:

"Com isto nós [...] de modo nenhum queremos negar os grandes méritos de Adam Smith [...] Com [...] um grau incomum de argúcia, ele lançou luz sobre os ramos mais importantes da ciência, que costumavam estar quase inteiramente na obscuridade. Antes de Adam Smith só havia uma prática; só através das suas obras foi possível formar uma ciência da economia política [...] Somente pela mesma peculiaridade da sua mente, pela qual ele conseguiu tanto na análise dos componentes individuais da economia política, foi possível [...] que perante os meros indivíduos ele se tornasse inconsciente da nação, que por cuidar apenas da livre actividade dos produtores individuais perdesse de vista os propósitos de toda a nação" (List 1922/1841, 459).

List é um devoto adorador da "bela máquina", mas opõe-se à "anulação completa da nacionalidade e do poder do Estado" (loc. cit., 456) na ciência económica e a uma mera "economia cosmopolita [...], que ensina como todo o género humano pode alcançar a prosperidade, em contraste com a economia política [...], que se limita a ensinar como uma dada nação sob as condições mundiais dadas [...] atinge a prosperidade, a civilização e o poder" (loc. cit., 204s.). Neste sentido, List propaga uma espécie de estratégia dupla para a industrialização da "nação alemã". Por um lado, de acordo com o regime liberal, as fronteiras alfandegárias entre os fragmentados Estados alemães devem cair, para criar uma "zona nacional de comércio livre", como estágio preliminar de uma área funcional económica nacional uniforme. Isto sucedeu após propaganda e promoção decisivas por parte de List em 1834 com a fundação da "União Aduaneira Alemã", à qual pertenciam 18 estados alemães sob a liderança prussiana.

Por outro lado, List exige que, no interesse do desenvolvimento de "uma força produtiva industrial nacional", a economia nacional alemã emergente proteja externamente a sua indústria ainda jovem e fraca da esmagadora concorrência inglesa por meio de um sistema de tarifas protectoras. Portanto, ele polemiza contra o postulado de uma vantagem geral através do livre comércio internacional, como Smith e sobretudo Ricardo tinham dito: "A concorrência mundial seria excelente se todas as nações estivessem no mesmo nível de desenvolvimento industrial – se ao menos outras nações não tivessem obtido uma vantagem imensa sobre nós como resultado da sua anterior unificação nacional [...]" (List 1928ss. V/1841, 191). Este problema foi exacerbado pela revolução industrial e já não é comparável com as condições da economia de mercado pré-industrial:

"As grandes máquinas lançaram muitas coisas fora, mas nada tão fundamental como a doutrina da autocapacitação das fábricas, da sua chamada formação natural. Enquanto uma roca, uma roda giratória e um tear fossem toda a maquinaria que se precisava comprar para começar a fiar e a tecer [...], não parecia tão exageradamente absurdo afirmar que o Estado não tinha de se preocupar com o assunto [...].Esta teoria tinha o seu lado fraco, mas não era nem a décima parte tão absurda como é nos nossos dias, em que a construção e funcionamento de uma grande fiação e tecelagem mecânicas exige centenas de milhares, até milhões, e em que centenas ou milhares de trabalhadores têm de ser formados em 30 ou 40 tarefas manuais diferentes [...] Com efeito, é necessário fechar deliberadamente os olhos para não vermos os obstáculos que se opõem, nos nossos dias, à emergência de fiações e tecelagens, mesmo nos países mais capazes, em livre concorrência com uma supremacia industrial como a inglesa. Através de uma fabricação mecânica altamente qualificada [...], através do maior comércio internacional jamais possuído por uma nação, os proprietários das fábricas inglesas podem expandir as suas instituições em proporções gigantescas, fixar os seus preços ao mais baixo nível possível e, no caso da concorrência estrangeira, renunciar a todos os lucros sobre os produtos que saem do país [...] até que os jovens rebentos de países estrangeiros sejam sufocados" (List 1928s. V/1842, 232s.).

List até acusa a Inglaterra de uma espécie de guerra económica para perpetuar a sua supremacia industrial sobre o resto do mundo, situação em que Smith e Ricardo, contra melhor julgamento, tinham usado a doutrina "cosmopolita" do livre comércio como arma espiritual para enganar os estúpidos alemães. Ao mesmo tempo, porém, afirma que não quer, em circunstância alguma, violar os princípios liberais, nem muito menos reavivar a doutrina unilateral do mercantilismo. Em primeiro lugar, a tarifa proteccionista deve ser apenas uma medida temporária, uma espécie de "tarifa de educação", até que a "educação industrial da Alemanha" tenha progredido suficientemente e a competitividade com a Inglaterra tenha sido alcançada. Em segundo lugar, a concorrência interna não seria eliminada, mas poderia substituir temporariamente a concorrência externa e assumir todos os "efeitos benéficos" do sistema concorrencial enquanto tal. Perante a crescente ignorância alemã sobre a concorrência industrial no mercado mundial, List adverte, numa famosa passagem, que a Europa continental corre o risco de afundar-se como uma colónia inglesa:

"Toda a Inglaterra se transformaria [...] numa única e incomensurável cidade manufactureira. Ásia, África, Austrália seriam civilizadas pela Inglaterra e semeadas com novos Estados de acordo com o padrão inglês. Assim, com o tempo, surgiria um mundo de Estados ingleses, sob a presidência do Estado-mãe, no qual as nações continentais europeias se perderiam como insignificantes tribos inférteis. A França partilharia com a Espanha e Portugal o destino de fornecer a este mundo inglês os melhores vinhos, e de beberem eles próprios os maus [...] A Alemanha dificilmente teria mais para oferecer a este mundo inglês do que brinquedos infantis, relógios de parede de madeira, escritos filológicos e por vezes um corpo auxiliar, que poderia definhar nos desertos da Ásia ou de África para a difusão da manufactura e do comércio ingleses, da literatura inglesa e da língua inglesa" (List 1922/1841, 218).

No meio da situação de miséria em massa como consequência directa ou indirecta da Primeira Revolução Industrial, List confia assim inteiramente na ementa de um nacionalismo do mercado mundial para redefinir toda a questão inacabada das condições sociais no problema da "competitividade internacional", e assim determinar o debate desde o início de acordo com os critérios do desenvolvimento capitalista. Os "trabalhadores pobres" e os "supérfluos" na Alemanha deveriam estar comprometidos com a motivação nacionalista da concorrência, antes de se atreverem a pensar em novas revoltas sociais. Para o efeito, List exagera descaradamente os alegados prazeres corporais dos pobres na competitiva Inglaterra:

"Quatro a cinco vezes por semana boa carne, em alguns lugares uma libra diariamente, uma libra de pão de trigo diariamente, uma garrafa de cerveja preta ou branca também; para o pequeno-almoço papas ou arroz cozido em leite (sem dúvida com açúcar e canela), vegetais e batatas, tanto quanto se queira, além disso meia libra de manteiga semanalmente; à noite, sopa de leite, ervilhas, batatas ou mesmo chá com bolo de trigo (leite e açúcar, claro), no domingo, pudim gordo (sem passas, uvas de Málaga e molho não há tal coisa), depois um quarto bem aquecido e camas limpas: esse é o estado miserável em que vivem 600 a 700 mil pessoas pobres na Inglaterra em tempos normais [...]" (List 1928ss. V/1842, 243).

Esta é a linguagem de um demagogo liberal-nacional que faz com que um público literalmente posto a morrer de fome pela economia de mercado sinta crescer água na boca, a fim de desviar a atenção da miséria do sistema adorado para o ódio da concorrência contra "países estrangeiros". Deve-se ter em mente que List fala aqui da dieta para aquelas infames casas de pobres e casas de trabalho inglesas cuja comida, segundo as investigações de Engels, era mais miserável do que a das prisões ("carne" e "vegetais", por exemplo, eram muitas vezes apenas resíduos praticamente não comestíveis), casas que têm sido repetidamente descritas como penitenciárias bárbaras e das quais, segundo testemunhas, até os moribundos fugiam! E uma vez que a astúcia é geralmente considerada bem informada, não é demais dizer que ele aqui engana conscientemente os seus compatriotas alemães, para afastar ideologicamente a resistência social à industrialização capitalista. Como ele vê basicamente a crise social apesar de toda a compreensão superficial, e como ele não é selectivo em seus argumentos, emerge de um artigo escrito um ano depois:

"(O) mais alto grau de tolice seria verdadeiro se alguém quisesse renunciar a tal fonte essencial de bem-estar material e de poder da nação, simplesmente porque os benefícios e vantagens incomensuráveis que ela concede são simultaneamente acompanhados por males, quando nada neste mundo está livre deles. Tal procedimento, porém, surge à vista até da mais elevada cegueira, se considerarmos que neste caso – por um cuidado exagerado para não produzir uma classe popular que poderia entrar (!) em escassez e angústia por circunstâncias acidentais – toda a nação seria despojada de um de seus órgãos essenciais [...].A propósito, a noção destes males é altamente exagerada e falsa, ao medir o seu grau de acordo com os fenómenos a este respeito percebidos em Inglaterra, quando as nossas relações industriais nacionais são fundamentalmente diferentes das inglesas. A Inglaterra quer fabricar para o mundo inteiro, monopolizar o mercado do mundo inteiro, e só pode atingir esse objectivo devido aos baixos custos de fabrico. Tudo na Inglaterra é assim calculado com base em que, de acordo com as circunstâncias, os salários são reduzidos ao nível mais baixo possível, de tal modo que as classes mais baixas são obrigadas a trabalhar o máximo possível por uma determinada quantidade de salários [...] Assim, a brutalização, a carência, a miséria, a necessidade das classes mais baixas – de milhões de pessoas – é o preço pelo qual a Inglaterra compra o seu monopólio industrial" (List 1928ss. V/1843, 271).

Obviamente que List não se incomoda com o facto de agora argumentar de modo diametralmente oposto. De qualquer maneira, ele apenas descreve os efeitos da destrutiva racionalidade da economia empresarial na Inglaterra e no Continente, traduzindo-os para a lógica do seu nacionalismo do mercado mundial, independentemente das inconsistências que possam surgir. Ele pode assim reivindicar a honra duvidosa de ser o pai ideológico de todos os debates sobre a "localização do investimento" na história capitalista, que sempre pressupuseram o auto-compromisso das pessoas com o sistema irracional da concorrência, a fim de forçá-las a substituir o seu elementar interesse próprio numa "boa vida" pelo interesse nacional abstracto na concorrência e a submeter-se-lhe como escravas.

Como a ideia de Herder de "etnia", a ideia de List de "força produtiva da industria nacional" e de protecção nacional ou "tarifas de educação" também desenvolveu uma longa história de impacto; não apenas na Prússia-Alemanha, antes e depois da fundação do Reich em 1871, mas também mais uma vez nas ditaduras de modernização atrasada no Leste e no Sul durante o século XX. Até hoje, os teóricos do desenvolvimento capitalista recomendam a concepção de List, ou partes dela, para os Estados-nação do Terceiro Mundo. E não foi por acaso que, na Alemanha, List se tornou o santo padroeiro económico do Nacional-Socialismo e da RDA, que nunca poderiam negar o seu legado liberal na teoria económica. Assim, no prefácio e na introdução a uma edição de List durante o regime nazi, diz-se que a "missão histórica" de dar novas formas à "existência étnica" alemã abre o entendimento para List, que na sua teoria "despreocupadamente" suportou a "incompatibilidade da sua visão do mundo histórico-política com elementos racionalistas iluministas" e, no entanto, entendeu "despertar as forças irracionais da nação" (Forschepiepe 1938, VIIss.). E, numa primeira monografia da RDA sobre List, ele é invocado como testemunha principal contra "a decomposição traiçoeira da consciência nacional" pelo "capital monopolista americano", e contra a "política cosmopolita" e, portanto, "antinacional dos imperialistas alemães ocidentais" (Fabiunke 1955, 11, 17). O facto de List também ter sido, é claro, usado ideologicamente pelo capitalismo da Alemanha Ocidental só mostra como os campos hostis na história da modernização capitalista estão sempre, em última análise, no terreno comum do "trabalho abstracto" e das suas instituições.

No entanto, em nenhum lugar e em nenhum momento as ideias da "etnia" e da nação como sujeito económico tiveram um carácter emancipatório, nem nunca denotaram outra coisa que não fosse a ligação identitária a um espaço funcional delimitado do moderno sistema de produção de mercadorias. Ainda que ocasionalmente (e primeiro na Alemanha) tenham sido instrumentalizadas contra um liberalismo ocidental "cosmopolita" de ideologia económica abstracta, surgiram no entanto da primitiva ideologia moderna do próprio liberalismo, das suas contradições internas e do seu confronto com o absolutismo, para finalmente penetrarem também no socialismo operário e, mais tarde, nos movimentos "anti-imperialistas" das zonas coloniais e do Terceiro Mundo. E, quanto mais a modernização atrasada alemã no século XIX carregou ideologicamente o espaço de referência nacional, mais fortes se posicionaram as respectivas ideologias nacionalistas contra as outras potências capitalistas. O capitalismo, com o seu "Leviatã" estatal e os seus líderes do pensamento liberal, entrou na era do nacionalismo e num campo de referência ao Estado-nação burguês que deveria substituir a ascensão e a época da constituição do liberalismo determinado por ideias de livre comércio (embora nem sempre por realidades correspondentes) – e, neste caminho para as próximas catástrofes, tomou consigo o jovem socialismo do movimento operário e levou-o invisivelmente pela mão.

 

 

A lei do equilíbrio e o sistema de bola de neve industrial

 

A invocação da "comunidade de destino nacional" e da concorrência nacionalista pela "localização do investimento" tornaram-se de facto o grande veículo ideológico para a integração das massas de "trabalhadores pobres" e da emergente classe operária fabril no sistema capitalista. Mas a miséria em massa acumulada até meados do século XIX pela economia de mercado e pela expansão industrial era tão monstruosa que a evocação eloquente de uma consciência nacional, que ainda não estava ancorada, dificilmente teria sido suficiente por si só para paralisar e pacificar os socialmente humilhados e os "supérfluos". Não se podia expressar a ameaça social e mesmo física de extermínio no sentido de Malthus e apelar ao mesmo tempo à identidade nacional comum. O sistema ainda estava à beira do abismo, pois, embora a revolta social tivesse sido esmagada pela repressão sangrenta, a ameaça de erupções incontroláveis permanecia no ar: A pobreza pode gerar apatia, mas o empobrecimento absoluto e a pura fome também podem levar ao desespero. E um maior desenvolvimento capitalista dificilmente era concebível sob a pressão da guerra civil e da ditadura militar latentes.

Então o sistema tinha de sair da grande armadilha da sua autocontradição lógica e dar às massas pelo menos gratificações mínimas se quisesse sobreviver. Hoje, naturalmente, sabemos que a grande e catastrófica crise de transformação da segunda metade do século XIX foi ultrapassada pelo capitalismo, embora as vítimas ainda não tenham sido contadas honestamente. Esta relativa estabilização entre 1850 e 1914 desenvolveu-se a partir de um mecanismo económico conhecido hoje como a coerção estrutural de crescimento (e agora até mesmo como "mania do crescimento", do ponto de vista sócio-ecológico) da produção capitalista. Ideologicamente, os teóricos da economia liberal, liderados por Adam Smith, sempre defenderam que, na economia de mercado, cada tampa encontraria automaticamente o caminho para o seu pote, e que o mecanismo dos preços estabeleceria um equilíbrio social de produção e consumo para satisfação de todos. No entanto, a estabilização relativa que realmente começou após 1850 só pode ser descrita como "equilíbrio" de modo paradoxal. Porque, sob este termo, imagina-se um estado em repouso em si mesmo; mas a estabilização capitalista é antes o oposto, nomeadamente um equilíbrio relativo temporário simplesmente num estado de movimento desmedido e de dinâmica incontrolável e sem objectivo.

Enquanto a revolução industrial não determinou os acontecimentos em grande escala, ou seja, até ao tempo de Adam Smith, a crise enquanto dinâmica de crescimento não foi decisiva na teoria da legitimação liberal. No século XVIII tratava-se mais do problema dos "trabalhadores pobres" do que do problema dos "supérfluos". Somente o desemprego estrutural em massa dos artesãos arruinados pela nova "maquinaria" transformou a crise económica num tema do liberalismo. A perspectiva de que as "mãos" não poderiam mais ser suficientemente "empregadas" no longo prazo devido à falta de rentabilidade teve de perturbar e desafiar o pensamento económico do liberalismo. Não se podia ficar pela mera ameaça de aniquilação social do Malthus liberal; isso só podia ser a ultima ratio. Mas não haveria ainda algum espaço de manobra para que o mercado transformasse os "supérfluos" de volta a "trabalhadores pobres" normais, vendendo essa metamorfose mais uma vez como a potencialidade da economia capitalista para "aumentar o bem-estar"?

Jean Baptiste Say, o aluno francês, popularizador (e vulgarizador) de Adam Smith, já tinha respondido a esta pergunta no início do século XIX, com uma resposta que se tornaria até hoje o último recurso da economia burguesa. A famosa tese de Say é que cada oferta cria sua própria procura por conta própria, desde que, no entanto, não haja intervenção "extra-económica" perturbadora do mercado. A longo prazo, isto também se aplicaria a um enorme aumento da oferta devido à revolução industrial, que só teria de ser suficientemente expandida. Portanto, diz ele, expressamente contra Malthus, que o crescimento da população e a quantidade crescente de bens não precisam de modo nenhum de levar à crise, mas pode ser estabelecido um novo equilíbrio num nível cada vez maior de desenvolvimento das forças produtivas.

Logo no início desta "lei dos canais distribuição" (identidade de venda e produção), Say se baseou no facto de que o barateamento dos bens, através do uso de máquinas "poupador de força de trabalho", não tornaria a sua produção não lucrativa (por falta de produção de valor e de poder de compra dos "supérfluos"), mas, pelo contrário, teria de estimular os efeitos recíprocos da produção e das vendas. Para ele é aceite "[...] que, por maior que seja a quantidade de bens produzidos e a consequente redução de preços, uma quantidade de bens produzidos de um tipo é sempre suficiente para permitir aos seus produtores adquirir uma quantidade de bens produzidos de outro tipo [...]" (Say 1979/1821, 72). Seja qual for a escala da expansão da produção através do aumento das forças produtivas, há também uma correspondente expansão dos mercados, se o Estado não se intrometer no seu curso próprio (por exemplo, pela legislação social), como afirma em seu principal trabalho Traité d' économie politique:

"Convém notar que os produtos acabados, ao mesmo tempo, oferecem um mercado para outros produtos em toda a extensão do seu valor. Assim que o produtor final termina um produto, o seu maior desejo é vendê-lo para que o valor do produto não fique parado. Mas ele não está com menos pressa para se livrar do dinheiro que a venda lhe dá, para que o valor do dinheiro também não fique imobilizado. Ora só se pode aplicar o dinheiro tentando comprar qualquer outro produto. A consequência que se pode retirar desta importante verdade é que, com o aumento do número de produtores e com a multiplicação dos produtos, os mercados de venda também se tornam cada vez mais líquidos, variados e expandidos [...] Para incentivar a diligência do comércio, [...] (é preciso) (estimular) os desejos e necessidades que despertam o desejo de compra da população [...] São as necessidades gerais e constantes de um povo que o incentivam à actividade produtiva, de modo que adquira poder de compra, o que implica um consumo constantemente renovado [...]" (Say, citado por Hofmann 1971, 49ss.).

A inovação de Say consiste, portanto, no facto de ele continuar a aceitar a tendência da economia de mercado para o equilíbrio, já afirmada por Smith, como inerente mesmo a qualquer aumento das forças produtivas e à "poupança de força de trabalho" tecnológica, postulando assim uma capacidade ilimitada de expansão dos mercados e da produção. O seu teorema, que foi apresentado numa forma algo curiosa e ainda não totalmente clara, e que não incluía, por exemplo, o trabalho assalariado dependente, foi gradualmente aperfeiçoado na "Lei de Say" ou "Lei do Equilíbrio" na economia, e evoluiu para uma "Teoria da Oferta" geral, que também poderia ser aplicada ao mercado de trabalho dos trabalhadores assalariados.

Nesta versão sofisticada, diz-se que o aumento das forças produtivas forçado pela concorrência torna os produtos tão mais baratos que os mercados podem expandir-se, porque uma grande massa de pessoas pode agora comprar estes produtos mais frequentemente (aumento da frequência do consumo) ou pode comprá-los pela primeira vez (desenvolvimento de novos grupos de compradores). Isto conduz necessariamente a uma situação em que, embora seja necessário muito menos trabalho por produto, a produção pode ser simultaneamente aumentada numa maior medida do que a poupança de força de trabalho no produto individual representa. A expansão dos mercados sobrecompensa, assim, a superfluidade do trabalho humano; e, em última análise, são necessários absolutamente mais trabalhadores para a produção expandida do que aqueles que se tornaram relativamente supérfluos. Esta é uma "teoria da oferta" porque espera a resolução da crise e a prosperidade "equilibrada" não a partir de um estímulo da procura, por exemplo, através de aumentos salariais, benefícios sociais, consumo estatal, etc., mas a partir de uma expansão autónoma dos mercados através da redução do preço da oferta (ou seja, através de reduções dos custos económicos mediadas pela concorrência). Aplicada ao mercado de trabalho, esta teoria da oferta significa que os assalariados também devem oferecer a sua "mercadoria força de trabalho" a um preço tão baixo que o mercado de trabalho se expanda por si só ("redução de custos" significa aqui aceitação pessoal da "pobreza activa"); a subsequente expansão dos mercados de produção e de vendas conduzirá, em última análise, automaticamente e em consonância com o mercado, a um novo aumento dos salários; e, além disso, os trabalhadores poderão comprar mais bens materiais (mesmo com salários mais baixos ou constantes) através do embaratecimento dos produtos.

Embora esse teorema parecesse cruelmente embaraçado pela crise de transformação catastrófica até meados do século XIX, ele foi, inversamente, na opinião dos seus apoiantes, confirmado ainda mais brilhantemente na posterior estabilização relativa. Na verdade, o problema de uma perigosa massa de pessoas estruturalmente "supérfluas" desapareceu na mesma medida em que a Revolução Industrial se espalhou para além do campo estreito da produção têxtil e invadiu um ramo de produção após o outro. Embora tenha havido um longo período de incubação de pura miséria entre a ruína dos produtores têxteis artesanais e a reabsorção industrial-capitalista da sua força de trabalho pela expansão dos mercados para o "tecido barato", a agora iniciada avalanche de industrialização engoliu a força de trabalho na rápida expansão.

As "mãos" foram autorizadas a mover-se novamente, agora em grande escala, directamente sob o comando do capital. O mercado de trabalho, há muito equiparado na consciência das massas à prostituição pública, tornou-se a normalidade maciça em grandes surtos, embora a produção agrária estivesse longe de totalmente capitalizada e muitos ramos da produção artesanal continuassem a existir (os quais, no entanto, foram capitalistamente transformados e arrancados das suas condições tradicionais, tendo, portanto, de se alinhar com a racionalidade económica). Os novos mercados de trabalho emergentes estavam agora a bater com a pulsação dos ciclos de mercado: durante mais de um século, o desemprego estrutural em massa desapareceu para dar lugar a um desemprego cíclico (temporário) "moderado". Os desempregados já não eram assim ameaçados malthusianamente como "supérfluos", mas eram um "exército industrial de reserva" (como Karl Marx chamou ao fenómeno do desemprego cíclico conjuntural).

O velho optimismo tecnológico do progresso retornou à consciência burguesa endurecida, na onda dessa relativa estabilização. O tráfego ferroviário desenvolveu-se numa progressão praticamente geométrica; em breve, muitos milhares de quilómetros de ferrovias cruzaram os países europeus e a construção de locomotivas e vagões impulsionou a industrialização. As exposições mundiais mostravam maravilhas técnico-científicas sempre novas. Samuel Morse inventou o telégrafo (1837), Johann Philipp Reis ou Alexander Graham Bell o telefone (1861/1876), Louis Jacques Daguerre a fotografia (1839), Justus von Liebig o fertilizante e o extracto de carne (1864), Carl von Linde o frigorífico (1876), Thomas Alva Edison o gramofone (1877) e a lâmpada eléctrica (1879), Werner von Siemens o dínamo (1866), Heinrich Hertz a telefonia sem fios (1887), e Gottlieb Daimler e Karl-Friedrich Benz surpreenderam o mundo com o motor de combustão e o automóvel (1886). Surgiram as indústrias química e eléctrica. Em 1889, por ocasião da Exposição Mundial de Paris, a famosa torre de ferro com o nome do engenheiro francês que a planeou, Gustave Eiffel, foi erguida como um monumento do fetichismo técnico capitalista. Falou-se do "triunfo do século XIX", ao qual, por exemplo, o poeta naturalista Karl Henckell, próximo dos sociais-democratas, rimou em 1886:

 

Vedes a enigmática força em movimento,

Que o espírito humano tomou ao seu serviço?

Com a enorme corrente começa a flutuar um navio,

Nele se movem as maravilhas do futuro.

 

No meu cérebro – fervendo de desejo ardente –

Inflama-se electricamente a imagem dos novos tempos,

Quando o vapor não é mais o mestre da correia da roda motriz;

Quando de forma barata e com imensa força

Toda a gente cria facilmente o que é necessário à vida

E a felicidade já não é um sonho – Viva você, Werner Siemens!

 

Esta embasbacada poesia de aniversário marca o ambiente e a consciência da ascensão tecnológica suportada não só pela ampliação da base industrial, mas também por uma relativa "domesticação" do material humano capitalista. O movimento operário emergente e a social-democracia não podiam escapar completamente à crença burguesa tecnologicamente redutora na redenção, porque tinham formulado a sua oposição social (incluindo o seu conceito de "socialismo") com base nas categorias reais capitalistas de "trabalho abstracto" e "valor" consideradas supra-históricas, e não mais na sua recusa emancipatória.

Seria, naturalmente, injusto – tal como já era o caso em relação aos momentos das revoltas sociais pré-social-democratas, apenas do ponto de vista actual reconhecíveis como retrógrados e deficientes – exigir uma super-consciência histórica destas pessoas a posteriori; também elas só poderiam mover-se no contexto das suas experiências e da sua interpretação "intersubjectiva". A diferença problemática relativamente às grandes revoltas sociais, nomeadamente, por um lado, as suas limitações pré-modernas, mas, por outro lado, também a sua recusa emancipatória fundamental em partilhar o fim-em-si capitalista, e a sua própria descendência ideológica do liberalismo combatido de modo superficialmente patricida – estes "segredos" de um défice social-democrata fundamental já não podiam ser criticamente tematizados e superados nas décadas após 1848.

Não se deve também esquecer que mesmo o simples alívio da enorme pressão social do empobrecimento teve de ser sentido imediatamente como um alívio do fardo; como, por exemplo, o famoso "alívio da dor", que representa uma melhoria apenas relativamente e de um ponto de vista negativo. Mas, independentemente de tais limitações, deve ser colocada a questão: até onde foi realmente esse alívio, com o que foi ele comprado, e se não houve ao mesmo tempo sentimentos e experiências contrárias – por assim dizer, "dor de domesticação". A relativa estabilização provocada pela fanfarra da revolução industrial trouxe, sem dúvida, uma melhoria geral, ou seja, estatística (relativa) nos padrões de vida; sem surpresa, quando se vê a partir de que ponto baixo isso é medido. Na sua análise (positivista da modernização) à partida justificadora, Hans-Ulrich Wehler descreve esta situação como essencialmente positiva, embora não sem nuvens:

"Ainda era verdade que a maioria dos trabalhadores industriais estava muitas vezes perto do nível de subsistência contemporâneo. No entanto, o sucesso da Revolução Industrial após 1849, que teve um efeito retumbante a longo prazo, consistiu não só num aumento acentuado dos salários nominais, mas também numa estabilização cada vez mais frequente dos salários reais até à crise de 1873, embora estes estivessem sujeitos a flutuações do custo de vida causadas pela situação económica. O que é decisivo é que, enquanto o pauperismo pré-Março de 1848 desapareceu gradualmente, não surgiu nenhum novo pauperismo industrial de magnitude comparável [...] Em 1868, os salários tinham duplicado, e tinham mesmo triplicado nos 23 anos até 1873 [...]" (Wehler 1995, 144).

Mas que estranha melhoria é esta quando, apesar da duplicação e triplicação dos salários, ainda se está "perto do nível de subsistência"? Só do ponto de vista interiorizado da "inevitabilidade" do sistema e dos seus processos estruturais cegos se pode ver algo mais do que a notável fragilidade social da economia de mercado, mesmo em condições industriais avançadas e no rápido movimento ascendente da acumulação. O próprio Wehler cita como limitação a prolongada falta de protecção contra a doença e a invalidez devida a acidentes de trabalho (ocorrência frequente devido à falta de dispositivos de protecção), bem como a curta duração da fase da vida com salário relativamente elevado, "até que o trabalhador, esgotado e prematuramente envelhecido, descia para um nível salarial de um trabalhador ao dia, entre os 58 e os 68 anos" (Wehler, loc. cit., 146). A conclusão da apreciação global sobre os prémios da retoma industrial a favor dos "trabalhadores pobres" na segunda metade do século XIX é, por conseguinte, bastante peculiar:

"Mesmo que a relação de emprego capitalista industrial se tenha revelado uma nova oportunidade de vida para milhões de pessoas, em comparação com as crises estruturais de emprego pré-industriais, foi – especialmente na sua fase inicial – associada a encargos extremos" (loc. cit., 146).

Primeiro, a "crise de emprego pré-industrial" (supostamente causada pelo puro crescimento populacional) é de novo justaposta externamente com oportunidades de emprego industrial, sem levar em conta o enredamento de ambos os processos, ou seja, a ruína directa e indirecta da produção pré-industrial pelos primeiros impulsos da própria industrialização capitalista. Não se pode dispor desse meio século de empobrecimento maciço absoluto no processo de incubação da revolução industrial simplesmente como "de algum modo não pertencendo aqui"; independentemente do facto de o impulso original do orgulho social ter sido não se deixar "empregar" sob determinação de outrem. Em segundo lugar, é difícil compreender como "encargos extremos" e "esgotamento precoce" devem abrir "novas oportunidades na vida", tanto mais que o próprio Wehler divulga posteriormente o material sócio-histórico que, em princípio, justificaria o título de "A economia de mercado empobrece" também para o período após 1850.

O problema é sempre a perspectiva ideológica da consideração ex post: a continuação da expectativa básica só pode ser reinterpretada como o "início de uma oportunidade" devido a melhorias secundárias ridiculamente menores se não se quiser sequer pensar numa alternativa nem na posição de recusa emancipatória. O regime linguístico de Wehler faz lembrar a discussão sobre o "padrão de vida" anglo-saxónico relevante para a anterior industrialização inglesa, na qual um consenso académico apologético foi também alcançado sob a máscara de uma "objectividade" duvidosa (filtrada interpretativamente). Edward Thompson polemiza contra esse consenso conformista com o sistema, que é baseado em estimativas questionáveis:

"É bem possível que as médias estatísticas e as experiências humanas se movam em sentido contrário. Um aumento per capita nos factores quantitativos pode ser acompanhado, ao mesmo tempo, por grandes prejuízos qualitativos [...] Podemos citar indústrias como a mineração de carvão, onde os salários reais aumentaram entre 1790 e 1840, mas foram comprados com mais horas de trabalho e maior intensidade de trabalho, de modo que o ganhador de pão estava 'gasto' antes dos 40 anos de idade. Em estatística, isto significa uma curva ascendente. As famílias em questão provavelmente perceberam isso como um empobrecimento" (Thompson 1987/1963, 227s.).

Thompson formula aqui parcialmente as mesmas relativizações de um "melhoramento" social que Wehler ("esgotamento"), mas com um ponto de vista diferente, menos afirmativo. Basicamente, durante a época de relativa estabilização industrial após 1850, o "progresso" social da economia de mercado consistiu em pouco mais do que uma graciosa renúncia do processo sistémico à aniquilação social imediata e à morte pela fome. Ter-se-á de admitir que esta gratificação é bastante modesta.

Mas não se trata, de modo nenhum, apenas de uma questão de padrão das necessidades imediatas de vida para alimentação, vestuário e habitação. No que diz respeito ao tempo de trabalho, ao trabalho infantil, etc., apesar de uma "redução" da jornada de trabalho normal capitalista (aliás intensificada) para 10 a 12 horas como regra, e apesar de algumas restrições legais, as condições capitalistas não se aproximaram dos padrões medievais mesmo durante este período. O espaço da autonomia social foi ainda mais reduzido para a maioria, mesmo em comparação com as miseráveis décadas da primeira metade do século; este foi o preço para os modestos aumentos dos salários reais nos "negros moinhos satânicos". Para a maioria, o "emprego" permaneceu sujeito a uma ameaça frequente dos ciclos económicos capitalistas. Assim, mesmo na segunda metade do século XIX, durante a avalanche da revolução industrial, o capitalismo europeu estava longe de uma situação de massas que se assemelhasse a um "bem-estar".

O pequeno aumento do nível de vida das massas, que ficou incrivelmente atrás do aumento das forças produtivas, não só foi comprado à custa de uma completa heteronomia social, como também foi marcado por uma profunda ruptura cultural: Juntamente com as revoltas sociais autónomas, também se extinguiu a antiga cultura artesanal do lazer, as habilidades sociais associadas, a auto-actividade cultural, a ociosidade significativa, quase até o sonho. Também esta cultura do lazer não continuou a ser desenvolvida no contexto da autodeterminação e do auto-entendimento sociais, mas foi liquidada e substituída gradualmente pelo consumo capitalista de mercadorias.

Na medida em que a vida culturalmente moldada, permeada pela actividade e pelo lazer, se dividiu em tempo de trabalho abstracto no espaço funcional capitalista, por um lado, e no miserável apêndice do "tempo de lazer" como desperdício de tempo de vida, por outro, a auto-actividade cultural começou a se "reificar" como consumo passivo e compensatório de mercadorias. No entanto, enquanto o consumo de mercadorias permaneceu em grande parte confinado às necessidades primárias, essa mudança ainda não conseguia chamar a atenção, permanecendo a pura pobreza o problema decisivo; mas, com a rápida progressão da industrialização capitalista, esse percurso também foi definido culturalmente.

Para além das rupturas culturais determinadas externamente e da miséria social que continuava latente, que só tinha passado de uma catástrofe absoluta para uma catástrofe relativa tornada a normalidade da vida, a contradição inerente ao modo de produção capitalista e à sua racionalidade de economia empresarial permaneceu intacta. Esta contradição tinha-se tornado mais dinâmica; só foi resolvida pela expansão permanente da produtividade e dos mercados para se afirmar novamente em escalas cada vez mais altas e novas. O ciclo de aumentar a produtividade, tornar os produtos mais baratos, abrir grupos adicionais de compradores, aumentar a produção e absorver força de trabalho adicional não poderia ser sustentado para sempre em qualquer ramo de produção. A certa altura, a saturação do mercado teve de ocorrer, ou seja, apenas foram efectuadas compras de substituição e perdeu-se o dinamismo.

Neste caso, qualquer aumento adicional da produtividade forçado pela concorrência libertava implacavelmente mais trabalho do que o utilizado de novo, e o problema fundamental do desemprego estrutural e do limite interno da "valorização do valor" ameaçaram retornar, extinguindo o mecanismo de sobrecompensação na relação entre "poupança de força de trabalho" por produto e expansão dos mercados. Se o movimento de acumulação, ainda assim, não entrou em colapso, foi apenas porque o processo de industrialização passou de um ramo de produção para outro. A grande "quebra estrutural" na produção têxtil foi apenas a primeira de muitas a seguir; no entanto, o período de incubação tornou-se cada vez mais curto, porque a base industrial se tinha tornado mais ampla e mais coerente, enquanto a dinâmica de crescimento aumentava. O sistema de economia de mercado em processamento cego libertou um duplo ciclo irregular de, por um lado, flutuações cíclicas (crises "relativas") e, por outro, quebras estruturais e coerções ao "ajustamento estrutural".

Numa palavra: o capitalismo tinha-se transformado num sistema industrial de bola de neve; só poderia continuar a existir nessa forma, com a ameaça de colapso espreitando lógica e inexoravelmente na sua base. Em última análise, cada sistema de bola de neve tem de colapsar um dia. Mas o lema capitalista sempre foi: Depois de nós, o dilúvio! Não seria preciso preocupar-se com o futuro, desde que a coisa "corresse" no presente e as chaminés fumegassem. Entretanto, o sistema de bola de neve poderia percorrer toda a reprodução social como uma avalanche desencadeada, sem que um novo horizonte de crise absoluta parecesse visível. A partir de agora, as pessoas, degradadas a paus-mandados de um tenebroso fim-em-si, deveriam ser por assim dizer caçadas pela economia de mercado numa batida histórica de mais de um século, e condenadas a um estado eternamente inquieto em todas as áreas da vida: repensar mais depressa, mudar mais depressa, trabalhar mais depressa, comer mais depressa, consumir mais depressa, adaptar-se, adaptar-se, adaptar-se sempre repetidamente.

 

 

 

 

Original Die Geschichte der Ersten industriellen Revolution. Pags. 57-111 de Schwarzbuch Kapitalismus. Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft. Integral online: www.exit-online.org/pdf/schwarzbuch.pdf. Tradução de Boaventura Antunes

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