Natureza em ruínas
A ciência moderna, até onde
sabemos, é o projeto mais bem-sucedido da história da
humanidade. Mas de longe o mais catastrófico também. Sucesso e
catástrofe não se excluem necessariamente, muito pelo
contrário: o maior dos sucessos pode encerrar o maior potencial
de catástrofe. Ora, a partir do século 17, foi acumulado mais
conhecimento sobre a natureza do que em todos os séculos
anteriores, mas à esmagadora maioria das pessoas tal
conhecimento se mostrou até hoje, em termos gerais, apenas de
forma negativa. Com o auxílio da ciência aplicada à
tecnologia, o mundo não se tornou mais belo, e sim mais feio. E
a ameaça da natureza que pesava sobre as pessoas não diminuiu
na natureza tecnologicamente remodelada pelas próprias pessoas,
e sim aumentou.
Calamitosa aliança
Se a "primeira natureza" da pessoa biológica foi desde
sempre plasmada e refundida pela cultura, nascendo assim uma
"segunda natureza" social, essa "segunda
natureza", na modernidade, interveio com violência ímpar
na "primeira natureza" e a modelou à sua imagem. O
resultado é uma violência natural de segunda ordem que se
tornou ainda mais incalculável que a violência natural de
primeira ordem, a que já se estava familiarizado. É uma
calamitosa aliança dominante de economistas, cientistas,
técnicos e políticos que administra o processo de
desenvolvimento científico-tecnológico na forma do sistema
social moderno e que, não só com ignorância, mas também sem
levar em conta os danos, defende contra toda a crítica a
dinâmica autônoma nele implícita e a perpetua no tempo. De
outro lado, a crítica da ciência por parte de marginalizados e
dissidentes está duplamente condenada ao fracasso, pois não
consegue pôr em xeque nem a forma social nem a estrutura do
conhecimento científico, circunscrevendo o problema quase sempre
à conduta moral dos cientistas, isto é, à questão ética da
"responsabilidade". Em oposição a essa batida
empreitada ética, a nova corrente feminista da crítica da
ciência desce bem mais fundo. Tal crítica demonstra que o
paradigma epistemológico da ciência moderna está longe de ser
"neutro", evidenciando antes certa matriz cultural,
sexualmente definida. O conceito de "objetividade", tal
como se revela em Francis Bacon (1561-1626), nos albores da
história científica moderna, é unilateralmente determinado
pelo homem, e a respectiva pretensão não se dirige antes de
tudo ao conhecimento e à melhora da vida humana, mas à
sujeição e ao domínio. Teóricas norte-americanas como a
bióloga molecular Evelyn Fox Keller e a filósofa Sandra Harding
tiram daí a conclusão de que a separação estrita entre
sujeito e objeto, tal como subjaz à ciência moderna, tem de ser
posta em tela de juízo. Mas para elas não se trata de uma
crítica romântica da ciência, mas de uma "outra
ciência", que libere seu processo cognitivo da exigência
de submissão. É nesse sentido que elas traçam um paralelo
entre as racionalidades científico-tecnológica e econômica na
modernidade, que ambas remontam a interesses de domínio e
exploração. A ciência natural moderna e a moderna economia
capitalista não são absolutamente idênticas, mas guardam
estreitos laços de parentesco. Para além do princípio
feminista de Fox Keller e Harding, esse parentesco revela-se
tanto em perspectiva histórica quanto estrutural. Ciência,
economia e aparato estatal na modernidade remontam a uma raiz
comum, qual seja, a revolução militar das armas de fogo no
princípio da era moderna. Daí também o viés especificamente
masculino da modernidade. A revolução social ocasionada pelos
canhões rompeu as estruturas da economia agrária com a
formação de Exércitos regulares, de uma grande indústria
armamentista até ali desconhecida e com a ampliação da
indústria mineradora. Não somente o capitalismo foi assim
gerado, mas também uma imagem da natureza a ele adequada. A
estrita separação entre sujeito e objeto, fenômeno
especificamente moderno, é fruto dessa história: tal como o
sujeito masculino da revolução militar definiu o mundo
literalmente como "bucha de canhão", como puro objeto
de aniquilação, assim o aparelho estatal e a racionalidade
econômica definiram o indivíduo como objeto de gestão, como
objeto da ciência empresarial. O surgimento da ciência foi
desde o início integrado a esse desenvolvimento. Não é à toa
que as invenções tecnológicas protomodernas se prenderam em
diversos sentidos à inovação militar das armas de fogo, haja
vista os projetos de Leonardo da Vinci, que, como tantos de seus
contemporâneos letrados, construiu canhões, antecipando até,
como se sabe, o desenvolvimento de submarinos e helicópteros de
guerra.
Objetos de manipulação
Mas não foi uma simples finalidade externa que prendeu a
ascensão da ciência à revolução militar e ao capitalismo
daí nascente, mas sim o fundamento epistemológico dessa
própria ciência. A racionalidade científica definiu seu objeto
também como um objeto a ser sujeitado, o que já se acha na
eloquente metáfora da linguagem científica
"objetiva", como mostrou Evelyn Fox Keller. O abandono
dos dogmas da teologia não foi uma verdadeira emancipação do
conhecimento, foi um ato que permaneceu sob o signo do nascente
complexo militar-industrial e de sua teologia econômica
secularizada. Nesse contexto, era inevitável que a natureza
parecesse um objeto estranho e hostil. Objetividade converteu-se
em objetivação, conhecimento em violação. A visão de mundo
comum, subjacente às diversas formas de objetivação, é uma
visão mecanicista. Isso porque somente objetos mecânicos se
deixam objetivar e manipular inteiramente. Tal como o Estado
moderno reduz o indivíduo vivo a uma abstração jurídica, tal
como a lógica da economia exige que a sociedade seja reduzida à
matéria morta do dinheiro, assim também a ciência reduz os
processos naturais a um nexo mecânico. Esse reducionismo não se
segue forçosamente do conhecimento da natureza em si, antes é
um produto da tendência histórica da objetivação subjugadora.
Na práxis social, o reducionismo econômico, político e
científico casou-se a uma estrutura totalitária em que pessoa e
mundo são definidos como objetos hostis de manipulação. A
economia industrial só pôde fazer uso tão rigoroso da ciência
porque a racionalidade científica procede da mesma raiz e
obedece desde o berço a um imperativo mecanicista análogo. Até
hoje estamos às voltas com um complexo de caráter militar,
econômico e científico. Era inevitável, pois, que o sujeito
manipulador, alguém que, como cientista, político e economista,
se separou em termos absolutos de seus objetos, acabasse ele
próprio objetivado e manipulado -um mero serviçal, rebaixado a
executor dos complexos militar-industrial e
econômico-tecnológico.
Caráter destrutivo
A força destrutiva desses complexos entrelaçados e sua
dinâmica alucinada há muito ultrapassaram a linha vermelha
atrás da qual iniciam as "catástrofes naturais"
causadas pela economia e ciência. Ao atingirem o capitalismo
científico e a ciência capitalista certas fronteiras naturais e
ao tentarem rompê-las à força, sua lógica reducionista e
mecanicista ameaça transformar-se, para além da insidiosa
destruição dos fundamentos naturais da vida, na criação de
tecnologias francamente apocalípticas de autodestruição.
Até meados do século 20, o complexo econômico-científico
limitou-se a submeter à sua lógica da objetivação a matéria
existente na natureza e consumi-la como objeto. O caráter
destrutivo não era mais que um efeito secundário, indireto. Nos
últimos 50 anos, ao contrário, o sistema passou não apenas a
intervir na natureza, mas a produzir uma "outra
natureza", de aspecto físico e biológico inteiramente
diverso, porque a simples manipulação externa da natureza
terrena se esgotou. Não reconhecendo nenhuma outra lógica que
não a própria, e portanto nenhum limite natural, o complexo
econômico-científico é insensato o bastante para querer se
emancipar plenamente da natureza.
Após a Segunda Guerra Mundial ficou patente que a energia
fóssil, armazenada durante milhões de anos na Terra, esgotaria
ao menos em sua forma economicamente aproveitável em razão da
pilhagem moderna. A cultura da combustão capitalista ameaçava,
pois, atingir seus limites naturais. A resposta para tanto foi a
tecnologia atômica, ou seja, a tentativa de liberar uma forma de
energia não existente na natureza terrena e dela independente.
Autodestrutiva não só pela ameaça de catástrofes como as de
Tchernobil ou Harrisburg, essa tecnologia, ainda quando livre de
acidentes, acumula montanhas de lixo radioativo, cujos efeitos
nocivos já não podem ser contornados e neutralizados pelos
próprios processos naturais, perdurando durante dezenas de
milhares de anos -um intervalo cultural inconcebível. Essa
dimensão apocalíptica da tecnologia atômica, porém, não se
deve à necessidade de conhecimento da natureza em si, mas à
pretensão imperiosa da ciência moderna de objetivar a natureza
e relegar à ruína tudo quanto se oponha a essa objetivação. A
mesma lógica referente à base energética revela-se no plano da
transformação de matérias-primas. Até fins do século 20, o
emprego tecnológico da ciência no espaço econômico do capital
concentrou-se nas transformações físicas e químicas da
produção industrial. A agronomia, entendida como
"agrobusiness", foi cada vez mais organizada segundo o
padrão industrial da linha de montagem, mas as intervenções
diretas no "material" biológico se limitaram em boa
parte a métodos tradicionais de criação de animais e plantas.
Não é à toa que, ao término do século 20, também essa
fronteira seja transgredida. Pois na terceira revolução
industrial da microeletrônica ficou claro que o consumo
industrial de matéria inorgânica se esgotou como suporte do
crescimento econômico -nem sequer a dita sociedade de serviços
é capaz de compensar tal esgotamento. A resposta do sistema é,
por sua vez, desmedida e irracional: a natureza orgânica, a
própria vida, deve ser decomposta em seus elementos
constitutivos e transformada para criar uma "outra
biologia", independente da evolução natural terrestre.
Criaturas do capital
O complexo econômico-científico, com auxílio da tecnologia
genética, quer produzir à sua imagem plantas, animais e, em
última instância, pessoas que, mesmo no plano biológico
elementar, sejam "segunda natureza" e, portanto,
criaturas do capital, cuspidas e escarradas.
Do puro e simples conhecimento científico do genoma não se
seguiria automaticamente a tecnologia genética. Isso porque boa
parte dos nexos não pesquisados é complexa demais para que as
possíveis consequências das intervenções tecnológicas nesse
campo possam ser dominadas. Não se trata mais de um procedimento
científico limitado a materiais exemplares esparsos; é todo o
contexto vital que se transforma em objeto de laboratório.
Erros, contratempos ou mecanismos desconhecidos podem a todo
instante conduzir a imprevisíveis reações biológicas em
cadeia, a deformações genéticas e a novas epidemias
incuráveis. A própria humanidade vira uma cobaia coletiva para
experimentos biotecnológicos de risco. E nem é preciso que a
ciência se sujeite externamente ao imperativo econômico, basta
que haja a tecnologia genética, fruto de sua própria lógica da
objetivação e sujeição da natureza.
O lampejo de lucidez da consciência ecológica há muito se
esvaiu. Com o programa energético do presidente Bush, a
superpotência capitalista americana torna à construção
leviana da tecnologia atômica; o resto do mundo seguirá esse
programa. E em toda parte diminuem as resistências à estrita
aplicação da tecnologia genética, em toda parte os governos
afrouxam os padrões de segurança, em toda parte esmorece o
discurso "ético" ante as "injunções"
econômico-tecnológicas. Para frear as tecnologias
apocalípticas não é necessária apenas uma outra forma de
sociedade, mas também uma outra ciência, no sentido de Evelyn
Fox Keller e Sandra Harding.
Se o conhecimento científico não se emancipar da lógica de uma
objetivação desumana da natureza, o complexo
econômico-científico logrará transformar a Terra num deserto
da física.
São Paulo, domingo, 17 de junho de 2001
Robert Kurz é sociólogo e
ensaísta alemão, autor de "O Colapso da
Modernização" (ed. Paz e Terra) e "Os Últimos
Combates" (ed. Vozes). Ele escreve mensalmente na seção
"Autores", do Mais!.
Tradução de José Marcos Macedo.