WASTE TO WASTE

Os Roma e “nós”

Roswitha Scholz  

Nos últimos tempos têm-se intensificado os pogroms contra os ciganos em Itália. Desde que a Roménia se tornou membro da União Europeia, no início de 2007, os Roma fogem cada vez mais da crescente discriminação e de condições de vida extraordinariamente más sobretudo para este grupo, dirigindo-se para Itália, onde se instalam na periferia das cidades, novamente em condições de miséria. À reacção da populaça corresponde a reacção do governo italiano de direita, que se agarra a velhas medidas de combate à “praga dos ciganos”, medidas especiais para afectar exclusivamente o grupo dos Sinti e Roma.

Seria errado, porém, tentar localizar a nova síndrome anticigana apenas em Itália, ainda que este tipo de racismo aí apresente actualmente a pior florescência da Europa Ocidental. Ataques contra os ciganos e uma propaganda anticigana fortalecida nos media também se tornam evidentes desde o início dos anos 90 aqui na Alemanha (1), onde o extermínio em massa dos Sinti e Roma no nacional-socialismo vai sendo reconhecido, mas de preferência de passagem. Basta considerar o extraordinário exemplo das agressões-pogrom de Rostock-Lichtenhagen de 1992 e o que se seguiu da parte do Estado. Dado que a memória, mesmo da esquerda, diz a experiencia que está algo embotada, aqui fica a lembrança: “Em 24.9.92 – um mês após o pogrom em Rostock, virado principalmente contra os refugiados Roma da Europa de Leste – o governo federal alemão assinou um convénio com o governo romeno. A Roménia ficou obrigada a aceitar de volta os requerentes de asilo recusados, em especial aqueles que não estão na posse de documentos de identificação válidos” (2). Esta forma de discriminação tem uma longa tradição, mas é muito pouco conhecida. Em Itália, por exemplo, o fenómeno do anticiganismo está quase de todo por investigar (3). Também na Alemanha, com a sua correspondente história nacional-socialista, as preocupações com este tema começaram tarde, e só recentemente houve alguns resultados.

Modernidade e Anticiganismo

“Os ciganos” surgem na Europa Central no início do século XV. No fim do Século XV, eles foram pela primeira vez na história declarados fora de lei [vogelfrei], o que aconteceu desde então repetidamente, em ligação com a crise do feudalismo e as mudanças no início da Idade Moderna: “O estereótipo do cigano recebe um colorido particular do facto de o seu desenvolvimento coincidir com a imposição na Europa central do Estado territorial e de uma mentalidade económica capitalista. As partes itinerantes da população eram consideradas incontroláveis no plano político e improdutivas em termos económicos. Por conseguinte, passaram a ser alvo da repressão e perseguição das autoridades... Ao mesmo tempo, o peso ideológico da percepção moderna do trabalho, que contrapõe o trabalho ao ócio, confere-lhes uma dinâmica enorme” (4).

Até ao Iluminismo a imagem do cigano muda para a imagem de mendigos, vagabundos e pessoas “de porte obsceno” que circulam por aí. De seguida, no século XVIII, veio então a clara “racificação” do estereótipo do cigano. Como é sabido, na opinião do Iluminismo só a “raça branca” seria capaz de civilização. “Os ciganos” foram transformados numa “raça primitiva” e Kant afirmava que eles não teriam qualquer disposição para trabalhar, desde logo por causa da sua “pele de tom indiano” (5). Discriminações racistas e sociais enredam-se de seguida na essência do estereótipo do cigano. Ao mesmo tempo esse estereótipo tem cada vez mais elementos claramente românticos. “Os ciganos” equivalem difusamente a uma forma descontrolada de liberdade (6). Esta dimensão romântica alimenta-se não em último lugar na música e na dança (palavra-chave: “Carmen”). No que diz respeito à conotação sexual do anticiganismo, a “cigana” foi construída como a imagem invertida da casta dona de casa, esposa e mãe, pensada como complementar, no domínio da reprodução, ao ideal do disciplinado operário assalariado. A “cigana” apresenta-se-nos em primeira linha como sexualmente sedutora e bruxa (7).

Medidas anticiganas na Alemanha

No dia Século XIX os “ciganos” eram considerados como “pessoas de direitos reduzidos”, que poderiam ser tratadas indiscriminadamente, como postula Richard Liebich no “Conselho Criminal do Principado de Reuß-Plauen”: “Se o juiz, em todos os outros casos, tem obrigação de individualizar, isto é, de começar por perscrutar e conhecer o sujeito em causa no que respeita à sua individualidade, para em seguida determinar o curso do seu processo, o inquiridor avisado e conhecedor da essência dos ciganos pode, quanto a estes, generalizar sem perigo e sem preocupação de cometer um erro ao medir todos pela mesma bitola, ao tratá-los a todos do mesmo modo; é que um cigano autêntico e verdadeiro é a matriz de todos os outros” (8).

Já em meados do Século XIX eram sistematicamente levantados autos contra os “ciganos”. Desde o início do Século XX todos os Sinti e Roma deveriam ser o mais possível registados, com fotografias e impressões digitais. Em 1926 entrou em vigor a “Lei de combate aos ciganos, viandantes e avessos ao trabalho” na Baviera. A partir daí todos os Sinti ou Roma sem trabalho regular poderiam ser internados numa “casa de trabalho” por dois anos (9). No nacional-socialismo, tendo como pano de fundo as medidas racistas, partia-se do princípio de que os “ciganos”, em qualquer caso, já não eram “puros”, como era a opinião do proeminente “investigador de ciganos” do nacional-socialismo Robert Knight. Os ciganos mestiços, provenientes do acasalamento dos ciganos com alemães “com antecedentes de raças inferiores”, seriam particularmente anti-sociais. De acordo com uma lei de 1933 foram os Sinti e Roma esterilizados à força e declarados “socialmente imbecis”. Também as leis raciais de Nuremberg inicialmente destinadas apenas aos judeus foram estendidas a este grupo populacional. Em 1935 passou-se a internar os Sinti e Roma nos chamados “campos para ciganos” (10).

Em 1938 Himmler ordenou a “solução final da questão cigana (...) a partir da essência da raça “. Até mesmo pessoas com apenas um “antepassado remoto cigano” foram considerados “mestiços de ciganos” (11). O assassinato sistemático dos Sinti e Roma começou após o ataque à Polónia em 1939. Em Dezembro de 1941 foi ordenado que os ciganos deveriam ser equiparados aos judeus no tratamento. As decisões foram deixadas ao critério dos comandantes da polícia de segurança e do serviço de segurança, o que levou a que muitos Sinti e Roma fossem fuzilados imediatamente. Em Julho de 1944, ocorreram os últimos gaseamentos em Auschwitz, para onde eles vinham sendo deportados desde o início de 1943 de muitos países.

No período pós-guerra, os Sinti e Roma foram muitas vezes alojados em abrigos de emergência em ruínas, localizados nos arredores das cidades. Os chamados peritos em ciganos foram integrados nos serviços oficiais, bem como os materiais de trabalho do tempo do nacional-socialismo – os registos especiais dos Sinti e Roma continuaram. Em várias cidades houve documentos estratégicos para prevenir a residência de “ciganos” em qualquer caso.

“Especialistas em ciganos”, como Robert Knight, não foram responsabilizados, ou foram absolvidos e continuaram a trabalhar sem impedimentos. Os avaliadores das indemnizações aos Sinti e Roma eram antigos empregados do departamento de saúde do Reich. Em 1963, com atraso, foi revogado um acórdão do Tribunal Federal de 1956, segundo o qual os Sinti e Roma só desde 1943 e não desde 1938 teriam sido perseguidos racialmente (finalmente era visto como motivo a perseguição racista e não a “associalidade”). Na década de 80 foram emitidas novas directivas e garantidas pequenas indemnizações, não podendo deixar de ser dito que a muitos Sinti e Roma não foi devolvida a cidadania alemã (12). Condição prévia para tais indemnizações foram as acções de protesto dos Sinti e Roma, que também levaram ao seu reconhecimento como minoria étnica na Alemanha.

Anti-semitismo, Anticiganismo e outros Racismos

Na Modernidade “cigano” equivale a não-compromisso e recusa do trabalho. Ora qual é a diferença em relação ao anti-semitismo, que passa por semelhante? Os judeus são associados no capitalismo em primeiro lugar com poder, dominação e civilização destrutiva; os ciganos, pelo contrário, são considerados inferiores e prisioneiros da natureza, ainda que eles façam lembrar uma possível vida além desgraçada sociedade do trabalho: “No entanto, o que têm em comum é esse mecanismo que, através da exclusão e da perseguição física dos ‘não idênticos’, permite um aparente desagravo psíquico e, por outro lado, permite a projecção de desejos recalcados para o exterior. Este mecanismo pode ser designado por uma fantasia negativizada, no sentido de um ódio a si próprio que se manifesta no ódio a ‘os outros’ (...). Mais ninguém deve possuir o que nós próprios não podemos ter. Há que exorcizar a própria ‘ideia de felicidade’” (13)

Deve ser evidenciado que no caso do anticiganismo se trata de um “racismo romântico” (Wulf D. Hund) ao contrário do anti-semitismo. Poder-se-ia até questionar se – pelo menos até ao fordismo – o “cigano” não teria mesmo correspondido muito mais à ideia de felicidade das massas do que o “judeu”. Muito do associado ao estereótipo do cigano, como a cantiga popular sentimental, a feira popular, o circo e, de um modo inconsciente, também a ideia de “dar o fora”, certamente estava mais próximo dos sentimentos de felicidade das “pessoas simples” do que o associado ao estereótipo dos judeus, imaginados como ricos e poderosos, que ao mesmo tempo representavam uma cultura burguesa estranha, mesmo havendo um denominador comum na acusação de “avessos ao trabalho”. Contrariamente a outros “selvagens” (por exemplo os índios ou os nativos das ilhas dos mares do Sul), que também foram equiparados à “natureza”, o “cigano”, por seu lado, é parte integrante da própria cultura, parte integrante da própria sociedade em que se vive. Por isso, e porque – contrariamente ao “negro” – não se deixa escravizar, o “cigano” é perseguido; juntamente com o medo permanente do próprio resvalar para a “associalidade” que o “cigano” sempre lembra.

O homo sacer e “os ciganos”

Giorgio Agamben, no seu livro “Homo sacer. Die souveräne Macht und das nackte Leben [O Poder Soberano e a Vida Nua – Homo Sacer]” (Frankfurt/Main 2002), recorrendo (criticamente) a Carl Schmitt, Hannah Arendt e Michel Foucault, desenvolveu ideias que podem fornecer uma explicação mais alargada sobre o significado do anticiganismo. Trata-se da relação entre a regra e a excepção: “ Não é a excepção que se subtrai à regra, mas a regra que, suspendendo-se, dá lugar à excepção, e apenas deste modo, mantendo-se em relação com a excepção, se constitui como regra. A ‘força’ particular da lei consiste nesta capacidade de se manter em relação com uma exterioridade” (14). O indivíduo é aqui degradado a mero corpo, a “vida nua”, sendo que é o soberano que decide do estado de excepção. Desempenha um papel crucial em Agamben o “homo sacer” proveniente do direito romano e que deu o nome ao seu livro. O homo sacer é um fora de lei [Vogelfreier], que cai fora do direito (mas que precisamente por isso nele está incluído) e pode ser morto com impunidade.

Nas estruturas de perseguição e internamento da Modernidade, extremamente agudizadas no nacional-socialismo, manifestou-se algo semelhante. Agamben vê hoje ressurgir de novo o estado de excepção, num processo de decadência de crise, como, por exemplo, na decomposição de organismos estatais nos países do antigo Bloco de Leste, que leva à criação de campos e a “ataques ilegítimos” (como violações em massa); fenómenos que, de acordo com Agamben, são precisamente o pressuposto originário do direito – um fanal para todo o mundo. Potencialmente, para Agamben todos somos homines sacri (15).

Agamben permanece com a sua tese de uma forma reducionista ao nível da teoria do direito. A fim de fazer jus ao todo social, seria necessário, no entanto, pensar conjuntamente na Modernidade a relação entre a forma do direito e a exclusão, com reflexões sobre a “constituição da política e da economia, do trabalho abstracto e da máquina do Estado”: A área de “inclusão excludente, da redução à vida nua”, tinha na proto-Modernidade o nome de “casa”: “A casa dos pobres, a casa de trabalho, a casa de correcção, a casa de doidos, a casa dos escravos – as ‘casas do horror’ nas quais, de forma exemplar para toda a sociedade, se exercitava o trabalho abstracto sob mando alheio, processo esse que foi agudizado nos campos das posteriores ditaduras de modernização e de crise. Este estado de excepção original tornou-se a normalidade moderna, que subjaz a todo o Estado de direito” (16).

A actual crise mundial da terceira revolução industrial difere das crises anteriores, porque agora mesmo a própria soberania “começa a tornar-se supérflua, porque o próprio espaço de exclusão inclusiva está a dissolver-se (...). A soberania, na medida em que ainda existe, reage por reflexo com as suas habituais medidas de crise, embora estas se revelem vãs” (17). O trabalho forçado e neste contexto o baixo salário, o campo [de concentração], a administração de pessoas etc. são agora activados para os supérfluos no âmbito da crise da sociedade do trabalho, a um novo nível de decadência. Aqui se expressa a ameaça geral, contudo diferentemente das medidas e ideologias excludentes. Mais uma vez, hoje “realiza-se a exclusão inclusiva (...) no padrão polar do racismo e do anti-semitismo” (18).

Nestas discussões, entretanto, falta a síndrome especificamente anticigana. Os “ciganos” não só eram considerados raça estranha, tal como os judeus, mas durante séculos foram repetidamente declarados fora de lei no sentido de Agamben. Na Modernidade pendeu realmente sobre os Sinti e os Roma um permanente estado de excepção, porque eles foram construídos como o absoluto oposto ao processo de disciplinamento e à “ética protestante” da Idade Moderna, em nossa própria sociedade. Embora os ciganos sejam portanto “homines sacri” par excellence, como a história da sua perseguição comprova, ainda assim eles são por norma esquecidos nas exposições críticas do racismo; e é precisamente neste esquecimento que se reflecte a circunstância de o “cigano” representar por assim dizer o homo sacer do homo sacer.

O anti-ciganismo continua a ser, digamos, o pária entre todos os tipos de racismo, e na construção da “associalidade” e da “raça estranha” o “cigano” continua a ser a “escória da humanidade” (como já tinha pregado no século XVIII o “perito em ciganos” do Iluminismo, Moritz Heinrich Gottlieb Grellmann) – portanto, “lixo”, que é supérfluo ainda abaixo dos supérfluos. Ele representa, pois, o assustador elemento dissuasor por excelência para o “normal”; mostra a este onde chegará, se não funcionar e não obedecer, mas se comportar “como os ciganos”. É por isso que dificilmente se encontra no discurso da hibridez da pós-Modernidade qualquer atenção aos Sinti e Roma. O indivíduo, mesmo na vida quotidiana, fica sepultado sob um monte de lixo de estereótipos quando “admite” que pertence a este grupo. Se num contexto judeu se aplica a recomendação “não digas a ninguém que és judeu”, por maioria de razão isso se aplica em relação a uma ascendência “cigana”. Segundo uma sondagem do Instituto Emnid, em 1994 68% dos alemães inquiridos não queriam ter um “cigano” como vizinho, sendo que os vizinhos judeus não eram aceites por 22% e os africanos por 37% dos inquiridos” (19).

Anticiganismo estrutural

Na actual crise a síndrome anticigana é novamente invocada. É o que trazem consigo também as guerras civis e as “guerras do ordenamento mundial” (Robert Kurz), que dilaceram em conflitos étnicos não em último lugar os Sinti e os Roma, como escreve um seu representante: “Em consequência da sua exclusão, muitos elementos da nossa etnia têm de viver em guetos, em condições indignas de seres humanos. São vítimas indefesas de agressões racistas que podem tomar as dimensões de pogroms. Não raramente a discriminação dos Sinti e Roma parte das instituições estatais – por exemplo da polícia e da justiça” (20). Desde 1989, a situação dos Roma deteriorou-se rapidamente, sobretudo nos países do antigo bloco de Leste. A repressão levou a consequentes movimentos migratórios. Isto dificilmente se nota nos media, havendo muito mais relatos sobre pedidos de asilo descabidos, furtos com crianças, mendicidade, problemas de higiene, etc. Todo o stock de estereótipos correntes está novamente a saque.

Trata-se aqui, simultaneamente, de processos sociais de maior amplitude, de gestão da crise e de invenção de delinquência. Hoje, de certo modo, a ameaça de queda atinge todos e cada um, mesmo e justamente dentro da célebre classe média. Nota-se uma certa generalização do estereótipo do cigano, não só na denúncia dos beneficiários do Hartz-IV e numa vigilância omnipresente (pretensamente em defesa face aos terroristas), incluindo dados biométricos e impressões digitais digitalizadas para uma identificação mais rápida. Potencialmente, qualquer um pode ir parar ao bairro da miséria, como pedinte ou vagabundo, e ser “o último dos últimos”. Ocorre uma “boemização coerciva” (Diedrich Dietrichsen), mas com a obrigação de trabalho forçado. No contexto da nova migração de massas, os refugiados que necessitam de “apoio” já estão per se na clássica posição do “cigano”. Também a problemática da falta de documentos, dos “sans papiers”, foi antecipada na política anti-cigana: “O método de exclusão dos Roma para a ilegalidade indocumentada parece constituir uma marca estrutural central do anticiganismo” (21).

Aqui se entrecruzam medidas anticiganas gerais e específicas da gestão de crises com uma ideologia de massas anticigana. Quanto mais as classes médias sentem o perigo da queda, mais elas se reconhecem novamente no protótipo do supérfluo e do fora de lei nas sociedades europeias, o “cigano” (22). Tal como se pode falar de um “anti-semitismo estrutural”, que se mostra fulcral no ataque aos mercados financeiros e numa ameaça mundial imaginada, ainda que nem sequer se fale de judeus, também haveria que falar de um “anticiganismo estrutural” quando, perante o medo da própria queda, da desclassificação, do descambar para a associalidade e a criminalidade, implicitamente está activo o estereótipo anti-cigano, mesmo que não se fale em ciganos. A alternância entre discriminação social e exclusão racista torna aqui particularmente apropriado o estereótipo do cigano.

Falar também de anticiganismo estrutural não tem nada a ver com um menosprezar do anti-semitismo. Acontece, sim, que ambas as formas de projecção ideológica remetem uma para a outra na sua especificidade concertada, sendo que o carácter estrutural da síndrome anticigana é mais difícil de detectar, mas é precisamente porque é pouco tematizado, ou em todo o caso é-o marginalmente. O sujeito moderno teria de se reconhecer ao espelho, com o seu medo de vir a ser um homo sacer. Pelo que desvia o olhar logo à partida. Por outro lado, ele sempre soube que “o cigano é o último dos últimos”, e nos inquéritos dá expressão a este “conhecimento” sem vergonha. É verdade que “o cigano” assoma assim em qualquer um, mas não é qualquer um que é “cigano” e como este sujeito a duras perseguições.

A esquerda e o anticiganismo

As semelhanças estruturais do anticiganismo agudo em vários países ocidentais são evidentes nas reacções ao desabar maciço do capitalismo de crise. Sobre a iminente queda das classes médias cai agora a inflação galopante na alimentação e na energia. Assim surge uma propagação das ideologias racistas, tanto de “cima” como de “baixo”, em interligação. O desenvolvimento actual na Itália mostra isso de forma fulminante.

No contexto de uma nova barbárie da classe média ameaçada pela queda, o cientista da cultura italiano Claudio Magris falou de “lumpenburguesia”, mesmo antes de os pogroms anticiganos se terem tornado violentos. Medidas da União Europeia contra esta “política para ciganos” provavelmente permanecerão ineficazes, porque em última análise os Estados individuais é que são competentes, lutando quase todos eles com o “crepúsculo da classe média”, e não estando excluída, como é sabido, uma aliança de “populaça e elite” (Hannah Arendt). Também não há que ter ilusões em que a esquerda esteja disposta a fazer a crítica da síndrome anticigana. Basta pensar nas tiradas do Oskar [Lafontaine] contra os trabalhadores estrangeiros, sempre susceptíveis de carga anticigana. Várias vezes foi referido na imprensa que a actual ideologia anticigana na Itália se encontra também exactamente em bairros com elevado “posicionamento de esquerda”. Isto tem muito a ver com o tradicional centrar da esquerda no trabalhador assalariado conservador e honesto, com a emoção virada contra o chamado lumpemproletariado, como a escória da sociedade, e assim também contra os “ciganos”, que nas cargas racistas ficavam ainda abaixo do lumpemproletariado “indígena”. Essas tradições continuam em vigor, mesmo no actual contexto de classe média em ruptura, e não apenas na Alemanha e na Itália.

Wolfgang Wippermann observa: “Os meus colegas, professores e historiadores, não se debruçaram sobre os Sinti e os Roma por isso ter sido e continuar a ser considerado pouco elegante. Também a inteligência crítica falhou, pois demorou muito tempo até se dedicar a este aspecto da história alemã. O mesmo se aplica aos agrupamentos de esquerda aos quais o destino dos Sinti e Roma até hoje não tem suscitado muito interesse” (23). É mais que tempo de mudar este estado de coisas. Como lidar com o “problema dos Roma” na esquerda poderia ser uma espécie de teste decisivo para a orientação de um movimento emancipatório. Em Itália, tornou-se actualmente ainda mais claro do que é capaz a tão aclamada “multitude” pós-operaista (24). O recurso ao “povo amado” em geral deveria causar perplexidade, especialmente na Alemanha. E importa igualmente referir que, na história, uma vaga de anticiganismo trouxe sempre um aumento do anti-semitismo e vice-versa (25).

Notas

1. Consultar a investigação de  Änneke Winckel (Antiziganismus, Munster 2002) sobre o racismo contra os Sinti e Roma em organismos estatais e na maioria da população na Alemanha reunificada desde 1989, com base em uma análise de jornais e revistas. Winckel mostra “como são apresentadas as imagens dos ‘ciganos’ na Alemanha e como as consequências ainda hoje podem ser mortais” (sinopse de badana).

2. Änneke Winckel, ob.cit., p. 52.

3. Consultar Wolfgang Wippermann: Fascismo? Non capisco. In: Jungle World 22/2008.

4. Wulf D. Hund: Romantischer Rassismus [Racismo romântico]. In: Wulf D. Hund (Hrsg.), Zigeunerbilder [Imagens do cigano], Duisburg 2000. p. 20 sg.

5. Em: Wulf D. Hund, Das Zigeuner-Gen [O gene cigano]. In: Wulf D. Hund (Hrsg.), Zigeuner, Duisburg 1996, p. 28.

6. Consultar Wulf D. Hund, Romantischer Rassismus, ob.cit.

7. Com mais detalhe em Wolfgang Wippermann, „Doch allermeist die Weiber” [Pois são acima de tudo as mulheres]. In: Helgard Kramer (Hrsg.), Die Gegenwart der NS-Vergangenheit [O presente do passado nacional-socialista], Berlin 2000.

8. Citação sg.: Wolfgang Wippermann, Wie die Zigeuner [Como os ciganos], Berlin 1997, p. 114.

9. Consultar Wolfgang Wippermann, Wie die Zigeuner, ob.cit., p. 113 sg.

10. Consultar Wolfgang Wippermann, Auserwählte Opfer [Vítimas de eleição?]?, Berlin 2005, p. 32 sg.

11. Consultar Wolfgang Wippermann, Auserwählte Opfer, ob.cit., p. 34 sg.

12. Consultar Katrin Reemtsma, Sinti und Roma, München 1996, p. 126 sg.

13. Holger Schatz, Andrea Woeldicke, Freiheit und Wahn deutscher Arbeit [Liberdade e ilusão do trabalho alemão], Münster 2001, p. 123.

14. Giorgio Agamben, Homo sacer, ob.cit., p. 28.

15. Siehe etwa Agamben, ob.cit., p. 124.

16. Robert Kurz, Weltordnungskrieg [A Guerra de Ordenamento Mundial], Bad Honnef 2003, p. 354.

17. Robert Kurz, ob.cit., p. 356.

18. Robert Kurz, ob.cit., p. 362.

19. Consultar Gilat Margalit, Die Nachkriegsdeutschen und „ihre Zigeuner” [Os alemães do pós-guerra e os „seus ciganos”], Berlin 2001, p. 192.

20. Romani Rose (Hrsg.), Der nationalsozialistische Völkermord an den Sinti und Roma [O assassinato nacional-socialista dos Sinti e Roma], Heidelberg 2003, p. 10 sg.

21. Gernot Haupt, Antiziganismus und Sozialarbeit [Anticiganismo e trabalho social], Berlin 2006, p. 175.

22. Consultar detalhadamente Roswitha Scholz, Homo sacer und die Zigeuner [Homo Sacer e “Os Ciganos”]. In: EXIT! 4, Bad Honnef 2007, p. 177 – 227, e Roswitha Scholz, Überflüssig sein und “Mittelschichtsangst” [O ser-se supérfluo e a “angústia da classe média”]. In: EXIT! 5, Bad Honnef 2008, p. 58 – 104.

23. Wolfgang Wippermann, Antiziganismus. Gespräch mit Wolfgang Wippermann [Anticiganismo. Conversa com Wolfgang Wippermann]. In: Christoph Burmer (Hrsg.), Rassismus in der Diskussion, Berlin 1999, p. 106.

24. Consultar Anton Landgraf, Die Mittelschicht macht mit [A classe média colabora]. In: Jungle World 22/2008.

25. Joachim Bruhn já há 16 anos chamou a atenção na mesma linha para o Pogrom de Rostock-Lichtenhagen (Das Programm zum Pogrom [O programa do pogrom]. In: Konkret 10/1992).

Original WASTE TO WASTE. Die Roma und “wir” in www.exit-online.org. Publicado na edição de Setembro de 2008 da revista “Phase2 ” (Leipzig)

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