Roswitha Scholz

It’s the class, stupid? Desclassificação, degradação e renascimento do conceito de classe (1)

 

 

 

1. Introdução

 

Pelo menos desde a eleição de Trump e o surgimento da AfD, dos Pegida etc., a questão das classes tem estado de novo na boca de toda a gente. Justamente nas zonas industriais arruinadas, Trump foi votado sobretudo por trabalhadores da indústria. Há críticas de que a esquerda terá prestado demasiada atenção à cultura, às mulheres, aos migrantes. A questão de classe e a questão social teriam sido negligenciadas. Enquanto a tese de individualização de Ulrich Beck e as teorias sobre o meio, a subcultura e o estilo de vida ocuparam o centro da investigação sociológica desde a década de 1980, agora, após o crash de 2008, está-se a regressar à "classe" – e de modo nenhum apenas nos círculos marxistas tradicionais – depois de a classe média (não em último lugar induzida por Hartz IV) ter sido trazida à ribalta na década de 1990. Entretanto, a literatura sobre o tema das "classes" não pára de crescer. Na minha comunicação, examinarei numa perspectiva de crítica da dissociação e do valor a abordagem de Oliver Nachtwey à "Sociedade da descida", que reflecte os desenvolvimentos recentes no contexto da concepção de Ulrich Beck hegemónica nas décadas de 1980 e 1990, bem como o livrinho "O mito do centro" de Ulf Kadritzke, que, como o título sugere, questiona mesmo veementemente a promoção do centro (que era o verdadeiro fundamento de Beck) e define a sociedade capitalista como sociedade de classes por excelência. Estes livros reflectem o teor fundamental do debate actual, razão pela qual até a Kadritzke, que aparentemente ficou para trás no tempo, será dado aqui o devido espaço, relativamente curto.

 

 

2. Classe e centro em contextos de crítica do valor

 

Kurz/Lohoff abordaram pela primeira vez crítica e detalhadamente a chamada questão das classes no pós-fordismo, no texto "O fetiche da luta de classes". Segundo eles, o marxismo da luta de classes não penetra na crítica do fetiche da mercadoria como constituinte fundamental do capitalismo. Na socialização fordista, o antagonismo das classes chega ao fim enquanto capacidade de transformação do capitalismo. Através do desenvolvimento da inteligência artificial, da tecnologia informática, dos correspondentes sistemas especializados etc., o trabalho humano é assim substituído em grande escala, pela primeira vez na história: "A mais profunda contradição da relação de capital consiste precisamente no facto de, por um lado, incorporar a reprodução social sob a forma de valor, assim encadeando o processo de dispêndio de trabalho abstracto dos produtores directos, mas, por outro lado, na mediação da concorrência, abolir este produtor directo no processo de cientificização do trabalho" (Kurz/Lohoff 1989: 34). Aqui eles defendem a formação de uma "anticlasse". Cujo lugar é visto nas áreas desenvolvidas do processo de cientificização, nas quais "os assalariados procuram hoje em dia desligar-se de uma subsunção ao trabalho abstracto através da negação da reprodução familiar ("recusa familiar"), do trabalho a tempo parcial, da exploração consciente das redes do Estado social etc., em contraste aberto com o movimento operário tradicional, bem como com os reaccionários ‘alternativos’ da rude cena do ‘faça você mesmo’ e da auto-exploração" (ibid.: 39s). Como é sabido, a "anticlasse" aqui propagada ainda não se formou. Em vez disso, um precário auto-empresariado constitui o "novo espírito do capitalismo" (Boltanski/Chiapello). Os indivíduos, sob “pena de afundamento”, têm de ser flexíveis sob a ameaça de Hartz IV, continuando a ser forçados a trabalhar. Os antigos impulsos anti-autoritários do movimento de 1968, como a meu ver ainda aparecem no texto de Kurz/Lohoff, tornaram-se agora um imperativo para a administração da crise.

 

Tais desenvolvimentos são objecto de reflexão no texto de 2004 "O último estádio da classe média" (Kurz 2004). Nele, Kurz começa por referir o famoso debate Kautsky-Bernstein. No século XIX, os marxistas ortodoxos assumiram inicialmente que a velha classe média, que tinha meios de produção modestos (oficinas, lojas etc.), seria absorvida pela concorrência das grandes empresas, e que esta classe pequeno-burguesa acabaria por ser absorvida pelo proletariado. A discussão entre Bernstein e Kautsky girava em torno da "nova classe média" (em oposição à "velha"), que estava associada a uma crescente cientificização da produção. Eram "funcionários do desenvolvimento capitalista em todas as áreas da vida", isto é, na administração, direito, meios de comunicação, engenharia, cuidados de saúde etc. (ibid.: 51). Kautsky defendeu a tese de que as novas classes médias pertencem ao proletariado. Bernstein, por sua vez, detectou aqui uma consolidação do capitalismo e assumiu um ponto de vista reformador. Os recursos destes estratos não eram a posse de capital ou de meios de produção, mas a educação e o conhecimento, que aumentaram cada vez mais ao longo do século XX, especialmente com a imposição do fordismo, e com ele da indústria do lazer. "Foi nesse contexto”, diz Kurz, “que se originou um conceito rico em consequências, a saber: o de ‘capital humano’. Empregados, engenheiros, especialistas de marketing, planeadores de recursos humanos, médicos autónomos, terapeutas, advogados, professores pagos pelo Estado, cientistas e assistentes sociais ‘são’, sob um determinado aspecto, o capital de duas maneiras. Por um lado, eles relacionam-se estrategicamente com o trabalho de outras pessoas por meio da sua qualificação, dirigindo e organizando no sentido da valorização do capital; por outro, eles relacionam-se em parte (sobretudo na qualidade de autónomos ou de funcionários dirigentes) com sua própria qualificação e, dessa maneira, com eles próprios na forma de ‘capital humano’, como um capitalista no sentido da ‘autovalorização’". (ibid.: 52). O movimento de 68 foi também um resultado deste desenvolvimento no período pós-guerra.

 

Ao mesmo tempo, na nova época de crise, já estavam a tornar-se evidentes nessa altura os primeiros sinais de declínio, que se tinham manifestado desde os anos 80. Inicialmente, a revolução microelectrónica afectou sobretudo a esfera reprodutiva; gradualmente, porém, estendeu-se também às classes médias ou às novas classes médias. A crise da valorização industrial foi acompanhada pela crise financeira do Estado (social). Os fundos para a educação, cultura, bem-estar social, cuidados de saúde etc. foram sucessivamente cortados e cancelados. Mesmo nas grandes empresas, as actividades qualificadas foram cada vez mais racionalizadas. No decurso da queda da "new economy", até especialistas de alta tecnologia foram despedidos.

 

Kurz vê aqui que da obsolescência do velho trabalhador industrial não só surgem potenciais de emancipação, mas que as novas classes médias (juntamente com as antigas) são postas em causa no pós-fordismo: "A privatização e o outsourcing desvalorizam o 'capital humano' das qualificações inclusive no interior do emprego e degradam o seu estatuto. Intelectuais pagos ao dia, trabalhadores baratos e empresários da miséria, na figura de freelancers nos media, universidades privadas, escritórios de advogados ou clínicas privadas, não são mais excepções, mas a regra. Apesar disso, no final das contas também Kautsky não teve razão. Pois a nova classe média decaiu, é verdade, mas não para ser o proletariado industrial clássico dos produtores directos, convertidos numa minoria em extinção. Paradoxalmente, a 'proletarização' das camadas qualificadas está ligada a uma 'desproletarização' da produção." (ibid.: 54). Hoje em dia, a divisão entre ricos e pobres já não pode ser explicada com a oposição de classe capitalista-operário nem com o poder de disposição sobre os meios de produção . Em vez disso, as posições sociais actuais tornam-se precárias nas áreas derivadas de produção, circulação e distribuição, que são irregulares e inseguras mesmo de acordo com critérios legais. Elas incluem os desempregados de longa duração, os trabalhadores com baixos salários em outsourcing (também nos centros), os beneficiários e beneficiárias de transferências estatais, os vendedores ambulantes, os recolhedores de lixo etc.

 

Segundo Kurz, o capital tornou-se hoje mais anónimo numa sociedade mais socializada, incluindo sociedades anónimas, aparelhos estatais, infra-estruturas etc. Actualmente, a substância do capital está a derreter gradualmente, está a ser criada cada vez menos mais-valia real, o capital está a fugir para os mercados financeiros, criando assim bolhas financeiras que ameaçam rebentar ou já rebentaram (Crash de 2008 como ponto alto até agora). As classes médias estão agora ameaçadas pelo declínio. "O 'meio de produção independente' encolhe até atingir a pele dos indivíduos: todos se tornam seu próprio 'capital humano', ainda que seja simplesmente o corpo nu. Surge uma relação imediata entre as pessoas atomizadas e a economia do valor, que se limita a reproduzir-se de maneira simulatória, por meio de déficits e bolhas financeiras" (ibidem: 55).

 

 

3. A sociedade da descida

 

Oliver Nachtwey escreveu um livro que recebeu muita atenção – não só à esquerda: "A sociedade da descida. Sobre a rebelião na modernidade regressiva" (Nachtwey 2017). Ele começa com Ulrich Beck, com o chamado efeito elevador. De acordo com o qual, toda a sociedade foi elevada um andar acima. As diferenças sociais permaneceram, mas houve um aumento colectivo de rendimento, educação, direito, ciência e consumo em massa. Este era o pré-requisito para processos de individualização e diversificação dos estilos de vida. As oportunidades de subida para os filhos do trabalhador tinham aumentado, com os meios tradicionais de classe a desintegrarem-se e a distância à família de origem a crescer. Nachtwey subsume esta fase sob o termo "modernidade social". Desde os anos 90, porém, temos vivido numa "modernidade regressiva", ou seja, o rendimento, a educação, o consumo em massa etc. estão a diminuir. Nachtwey prefere a imagem da "escada rolante" à imagem do elevador. "Alguns abastados já chegaram ao próximo andar na escada rolante ... Para a maioria daqueles que ainda não chegaram ao andar superior, a direcção da viagem está agora a mudar. Enquanto durante muito tempo subiram, agora estão a descer". Mas isto também significa que tem de se lutar para manter o nível que se alcançou. "Descidas ou quedas individuais ainda não se tornaram um fenómeno de massas ... No conjunto, no entanto, está em curso uma nova descida para os trabalhadores" (ibid.: 127).

 

Nachtwey vê o pano de fundo de tais tendências na evolução económica. Após a Segunda Guerra Mundial houve um crescimento económico de cerca de 4% ao ano até à década de 1970, mas nos últimos anos de boom na Alemanha este crescimento foi de apenas 1,5 – 1,8%. Devido às elevadas taxas de crescimento, houve também uma oportunidade de redistribuição e foram produzidos novos bens de consumo (máquinas de lavar roupa, frigoríficos etc.). O consumo em massa tornou-se possível. Nachtwey vê o pano de fundo do abrandamento do crescimento numa queda da taxa de lucro (embora ele não considere muito importantes as discussões teóricas sobre a taxa de lucro) e numa crise de sobreacumulação. Como as medidas de racionalização vão reduzindo a mais-valia criada em comparação com o capital aplicado, as empresas vão para os mercados financeiros.

 

Nachtwey fornece provas empíricas, designadamente sobre rendimentos líquidos que diminuíram desde o início dos anos 90 (mesmo que tenha havido uma inversão em 2005, por exemplo), embora deva ser feita uma distinção entre diferentes sectores e empresas. No sector financeiro, são duas vezes mais elevados do que no sector da restauração ou no trabalho subcontratado. Desde então, os ricos tornaram-se cada vez mais ricos e os pobres cada vez mais pobres, esta é a característica central da sociedade da descida de Nachtwey. Desde 2000, as descidas não têm aumentado, mas é mais difícil ascender. Entre outras coisas, foi demonstrado que quase 17% das pessoas em risco de pobreza têm dificuldade em aquecer as casas (ibidem: 128).

 

O trabalho precário, outra característica da sociedade da descida, está a expandir-se e a institucionalizar-se; a relação normal de emprego (característica dos homens na modernidade social) já não pode ser considerada como um dado adquirido. Nachtwey fornece números que mostram que as relações de emprego marginais (trabalho a tempo parcial, trabalho subcontratado, auto-emprego individual etc.) aumentaram globalmente. As relações de emprego precárias encontram-se particularmente entre os jovens pouco instruídos. As quebras na biografia do emprego estão a aumentar. A inconsistência do estatuto ocorre, por exemplo, quando um académico trabalha numa equipa de limpeza e não apenas temporariamente. Uma razão para a sua obsoletude é o emprego múltiplo das mulheres, não só por razões de auto-realização, mas porque os homens já não conseguem ser o único sustento da família. No caso do pessoal efectivo, que quase não sofreu erosão nos últimos anos e para o qual, ao contrário do pessoal precário pouco qualificado, as condições normais de trabalho se aplicam na maioria dos casos, a promoção é mais árdua; ao pessoal precário são normalmente atribuídos os empregos desagradáveis. Mesmo que sejam igualmente qualificados, os trabalhadores subcontratados recebem menos do que o pessoal efectivo; são uma lembrança constante para os elementos da força de trabalho principal de que estão em perigo de serem relegados. Nachtwey escreve: "O exército de reserva industrial inactivo (os desempregados) foi reduzido em tamanho ao preço de ter crescido o subemprego (trabalho a tempo parcial) e do sobre-emprego (trabalhadores com salários baixos que têm de fazer vários trabalhos ao mesmo tempo) ..." (ibidem: 147). Os serviços e os trabalhadores dos serviços estão particularmente em risco de baixos salários, sendo que Nachtwey continua a assumir uma sociedade industrial de serviços. Aumentou a percentagem de serviços pessoais (prestadores de cuidados, educadores, pessoal qualificado ao nível das vendas, consultoria, restauração).

 

Em particular – e isto tem sido amplamente tratado desde meados dos anos 2000 – o centro tem sido desestabilizado. Na classe média Nachtwey inclui artesãos, vendedores, comerciantes, agricultores, ou seja, a antiga classe média, bem como funcionários públicos, freelancers, mas também, mais recentemente, empregados e trabalhadores qualificados. Nachtwey diz que "o centro está a polarizar-se". Enquanto o centro inferior corre o risco de cair, o centro superior continua estável, mas os sentimentos de precariedade estão a crescer também neste meio. Isto promove o conformismo e a prontidão para a auto-optimização. A concorrência também está a crescer entre trabalhadores altamente qualificados, por exemplo, engenheiros e peritos em TI. Teme-se sobretudo pelo futuro dos filhos. A estabilização social para muitos filhos de académicos vem muito mais tarde do que nas gerações anteriores. Ao mesmo tempo, um nível de educação superior já não garante necessariamente um estatuto superior – um advogado independente está em pior situação do que outro que trabalhe num escritório de advogados de renome. Está a espalhar-se entre os jornalistas um precariado dos media. Em particular, os que ascenderam na modernidade social, ou seja, as filhos de trabalhadores da classe média baixa, correm agora o risco de cair de novo. Além disso, houve uma desvalorização fundamental das qualificações, com 40% em cada ano a fazerem agora o ensino secundário. Nota-se uma tendência descendente para os homens e uma tendência ascendente para as mulheres, embora dentro de determinadas desigualdades específicas de género. Mulheres e homens estão agora a competir pela subida. Na Alemanha Oriental, as tendências de descida aumentaram mais do que no Ocidente.

 

Nachtwey também vê tendências para a formação de uma nova classe inferior, que é particularmente evidente nos beneficiários de Hartz IV, nos que auferem baixos salários e nos que recebem complementos. Isto afecta principalmente mulheres e migrantes, por exemplo, em call centers, na indústria alimentar, no sector da limpeza e cuidados bem como no comércio a retalho. A tese principal de Nachtwey é: "De uma maneira muito contraditória, pelo menos a refutação de Marx foi refutada. Num sentido lato, a sociedade de classes no sentido de Marx só hoje emergiu de facto. Para Marx, a classe é um conceito relacional: a exclusão da propriedade dos meios de produção implica uma assimetria fundamental de poder e distingue os trabalhadores dos capitalistas ... Visto a esta luz, o conceito de classe de Marx é hoje novamente relevante, porque nunca antes foram empregadas mais pessoas numa base salarial, sobretudo porque não têm meios de produção ... A nível internacional, as diferenças sociais entre as nações ... diminuíram de facto, mas dentro dos Estados estão a aumentar imensamente. No entanto, não podemos falar de uma sociedade de classes dicotómica. A importância das classes médias é grande, apesar do seu declínio" (ibid.: 171ss.) Nachtwey completa Marx com Weber, segundo o qual as situações de classe estão principalmente "relacionadas com situações de propriedade e de rendimentos"; com Weber, os recursos, oportunidades de mercado e estilo de vida podem assim ser incluídos. Nachtwey utiliza assim classe e estrato como sinónimos. Uma vez que as classes média e alta são novamente mais auto-suficientes, um "princípio estamental" está de volta, segundo ele, na medida em que as distinções sobre níveis académicos, nutrição, cultura são de novo mais enfatizadas. A pobreza e a riqueza são também cada vez mais herdadas.

 

Nachtwey não fala de "classes no sentido de situações de vida homogéneas" a partir das quais se podem formular interesses, pois "as novas relações de classe são fragmentadas e complicadas ... O professor assalariado que é despedido durante as férias de Verão tem mais em comum em algumas dimensões com o trabalhador temporário qualificado do que com o professor sénior funcionário público... No entanto, em termos das suas exigências de trabalho e do seu estilo de vida, eles diferem consideravelmente. Abaixo das classes de proprietários, gestores de topo etc., há em crescimento uma classe de serviços altamente qualificada, que por sua vez não tem as mesmas perspectivas de segurança" (ibid.: 174s.).

 

No que diz respeito às dimensões de desigualdade de "raça" e género, Nachtwey chega à seguinte conclusão: "Embora se possa observar na parte superior da hierarquia uma maior igualdade de oportunidades e uma redução das disparidades horizontais entre homens e mulheres, bem como migrantes, as diferentes dimensões das disparidades de classe acumulam-se na outra extremidade da escala. As mulheres são as mais discriminadas e as disparidades horizontais são as mais pronunciadas. Uma mulher gestora tem uma hipótese de alcançar a igualdade completamente diferente de uma mulher de limpeza migrante; em suma: o género e a etnia fundem-se, no extremo inferior da sociedade da descida, num conglomerado de mecanismos de opressão e exploração" (ibidem: 177).

 

Nachtwey vê uma expressão de rebelião nos Pegida e na AfD, onde se reúnem marginalizados e um centro ameaçado de descida. Aqui, juntamente com Honneth, ele assume um "asselvajamento do conflito social", e também fala de uma "crise de representação", o que significa que já não há qualquer confiança na posição política dos partidos. Segundo Nachtwey, a falta de solidariedade, como resultado de processos de isolamento combinados com uma luta pelo estatuto, em que se deve fazer um esforço para manter o estatuto enquanto a escada rolante desce, conduz assim ao "extremismo em conformidade com o mercado". Os eleitores da AfD e os apoiantes dos Pegida não estão preocupados com a expansão do Estado social, mas antes acreditam profundamente no mercado e depois culpam pelos seus temores os migrantes etc. (ver ibid.: 218).

 

Penso que, fenomenologicamente, Nachtwey pinta um quadro razoavelmente preciso das desigualdades sociais desde os anos 90, nas suas contradições e distorções. É ainda mais espantoso que ele volte a fazer do lugar comum da sociedade de classes, da oposição de classes e da posse de meios de produção o seu quadro global para tal. Ele vai ao ponto de afirmar que a sociedade de classes só agora se está a tornar realidade. O que é interessante em Nachtwey, neste contexto, é que ele não fala de uma sociedade de serviços, mas de uma sociedade industrial de serviços. Talvez se pretenda assim que a tendência básica do capitalismo para se afastar necessariamente da produção e se tornar mais virtual seja considerada pouco importante; sugere-se assim que a produção e o trabalhador continuam a ser a base do capital. Para ele, o anonimato do capital é no fundo uma ideia estranha, que apenas agora tomou forma em sociedades anónimas, aparelhos estatais, infra-estruturas. A estrutura da desigualdade social, que já não cabe nas estruturas antigas, deve ser incorporada em termos de lógica da identidade nos velhos e rudes padrões explicativos, independentemente da nova qualidade, mesmo que estes se contradigam na sua própria descrição. Para ele, todos os dependentes do salário são trabalhadores, os supérfluos e precários são contados como parte do exército de reserva, ou seja, ele permanece dentro do quadro interpretativo da sociedade do trabalho. A tendência básica para o trabalho abstracto se tornar obsoleto não desempenha para ele nenhum papel, ou melhor, ele deixa em aberto se a digitalização no decurso da indústria 4.0 conduzirá a um desbaste correspondente.

 

Além disso, Nachtwey, que é um sociólogo económico, refere-se certamente a Marx e trabalha com conceitos marxianos (acumulação, D-M-D' etc.). A categoria central para ele é a queda da taxa de lucro – também não vou entrar aqui numa discussão especial sobre se isso é acertado ou não. Nachtwey vê a ameaça de outro crash financeiro, mas não penetra no fetichismo do capitalismo, nem no facto de este minar os seus próprios pressupostos, o que leva à obsolescência do trabalho abstracto, à financeirização e à economia das bolhas. Neste contexto, contudo, é que seria preciso considerar o desenvolvimento da modernidade social para a modernidade repressiva, que tem como tema central as tendências de descida (assumindo que se quer fazer esta classificação de fase); em vez disso, Nachtwey permanece principalmente num superficial plano económico e sociológico.

 

Robert Kurz escreveu em 2004: "Quanto maiores se tornam as diferenças de rendimento entre o pobre e o rico, tanto mais desaparecem as diferenças estruturais das classes na estrutura da reprodução capitalista. Por isso não tem o menor sentido que os ideólogos da classe média ontem nova e hoje em queda queiram reclamar para si a ex-"luta de classes do proletariado" não mais existente. A emancipação social requer hoje a suplantação da forma social comum a todos" (Kurz 2004). Kurz constata neste contexto um pensamento mesquinho e pequeno-burguês dominante que leva à barbárie. Hoje isto manifesta-se numa viragem maciça para a direita e num "extremismo em conformidade com o mercado", para citar Nachtwey, embora Kurz já o tenha notado em 2004.

 

No seu livro "A Sociedade das Singularidades" (2017), um livro que também recebeu muita atenção dos media, Andreas Reckwitz, mais pós-moderno na mediação com a cultura do que Nachtwey, também recorrendo ao pós-modernismo e simultaneamente negando-o, vai dar a uma nova sociedade de classes no sentido de Bourdieu, pelo que não será aqui novamente posto em debate, em sua posição inteiramente retro com referência aos culturalistas anos de 1980 e 1990.

 

 

4. O mito do centro

 

Tal como Nachtwey, Ulf Kadritzke também quer salientar que vivemos hoje numa sociedade de classes (Kadritzke 2017). Ele queixa-se do enfoque dos últimos anos no centro e no receio de que este esteja em perigo de ruir, enquanto as classes mais baixas já não são tematizadas. Kadritzke nota, em primeiro lugar, que as classes médias foram colocadas num contexto de classe na República de Weimar, em diversas abordagens, apesar de todas as diferenciações; ele fala de uma classe dependente do salário. Não irei mais longe nesta matéria. Depois, após a Segunda Guerra Mundial, aumentou significativamente a proporção de assalariados que trabalham, não só no sector da produção, mas também para o processo global de reprodução (penso que ele faz alusão aos serviços). De acordo com Kadritzke, o ponto de vista de classe foi então largamente abandonado. Assim, em contraste com os seus trabalhos na República de Weimar, Theodor Geiger falava em 1949 de uma "sociedade de classes num caldeirão de culturas". Helmut Schelsky chegou ao diagnóstico de uma "sociedade de classe média nivelada". De acordo com este diagnóstico, a oposição de classe é enfraquecida pelo nivelamento, causado pelo aumento das oportunidades de consumo e por um aumento do nível de vida. Kadritzke constata que na maioria das pesquisas desde 1989, as desigualdades têm vindo a aumentar novamente. No discurso das ciências sociais, por um lado, acompanha-se a diferenciação vertical, mas, por outro, há um debate ainda mais intenso sobre o centro e o seu perigo de queda, pelo que se assume que a maioria pertence ao centro. Ao mesmo tempo, está a ser criada uma classe inferior, ainda que todos dependam do salário. Neste contexto, também critica a avaliação de Heinz Bude de que não há interesses comuns, por exemplo, quando os precários olham para a classe inferior. Os interesses gerais de classe caíram assim fora de vista.

 

Critica o facto de os modelos modernos de estratificação, em contraste com as teorias de classe, não se basearem nas relações de produção. Embora novas linhas de diferenciação atravessando a classe dependente de salários tenham, na realidade, tornado mais difícil a formulação de um interesse comum, segundo Kadritizke surge no entanto um foco de exigências de salários justos, bom trabalho, segurança social e luta pelo Estado social. Kadritzke fala assim, com Dörre, do "fim da sociedade de classes integrada". Diferentes fracções de trabalho assalariado seriam assim jogadas umas contra as outras (tais como a força de trabalho efectiva e os trabalhadores em outsourcing/precários). Esta é uma expressão das "relações de produção modificadas, mas de modo nenhum ‘novas’, com as quais os movimentos sociais sempre tiveram de lidar" (ibidem: 75). Além disso, escreve: "As linhas divisórias entre os operários e a maioria dos empregados desapareceram há muito tempo; muito mais importante é a visão diferenciadora do papel do género e do meio, dos hábitos e modos de vida que são influenciados pelas mudanças actuais E pelo passado" (ibidem: 77, destaque no original). Para além da questão do género, os gays e refugiados também deveriam ser incluídos. Ele regista isso pelo menos numa nota final, uma vez que a pobreza está entrelaçada com a questão do género (cf. ibid.: 94, nota 55). Assim, ele apela a "compreender a dimensão socioeconómica da sociedade de classes moderna ...mesmo que ainda estejam questões em aberto. O trabalho para isso inclui a utilização de novas categorias mediadoras, se se quiser compreender as manifestações histórico-políticas e culturais, específicas de género e de profissão das relações de classe concretas, e os meios ambientes que em parte diferem dramaticamente" (ibidem: 8). Kadritzke afirma que o falatório sobre o centro “funciona a favor da burguesia da sociedade contemporânea" (ibid.: 81).

 

A meu ver, Kadritzke deturpa o conceito de classe até o adaptar aos dias de hoje. Não é preciso dizer que Kadritzke não tem nada a ver com uma crítica do fetichismo. Com ele não se passa nada nas costas das pessoas; as suas reflexões têm lugar unicamente dentro de um sociologismo das classes. Relações económicas e contradição em processo, o derretimento da massa de mais-valia combinado com o desenvolvimento das forças produtivas (revolução microelectrónica, indústria 4.0), a dessubstanciação do capital, a obsolescência do trabalho abstracto, a financeirização e a formação de bolhas, que culminam hoje na crise fundamental, não têm qualquer significado para ele. A história como processo capitalista não existe para ele; o capitalismo é sempre o mesmo. As mudanças só ocorrem externamente; ele não consegue imaginar o fim do capitalismo. Contudo, Nachtwey incluiu pelo menos as mudanças económicas e sociais, e também deu ao centro um lugar nelas, mesmo que, estranhamente, ele depois defina a sociedade contemporânea como uma sociedade de classes. Raça e género só externamente estão incluídos em ambos os casos. Tanto partindo de uma perspectiva que quer ultrapassar Ulrich Beck, como partindo de uma perspectiva tradicional de classe marxista, tendo em conta as grandes distorções, acaba-se vulgarmente na boa e velha perspectiva de classe, ignorando toda a passada falsa superação do problema das classes, que teve lugar no "socialismo realmente existente". Isso não interessa.

 

É particularmente hipócrita que Kadritzke apresente hoje, na esteira do movimento operário, o problema da classe em geral como sendo tomar partido pelos pobres e fracos. Como escreve Kronauer em relação ao antigo movimento operário: “(As) organizações sindicais e políticas do operariado, tal como as suas organizações de auto-ajuda (apoiavam-se) em primeira linha nos trabalhadores qualificados. Os que não o eram, pelo contrário, estavam sub-representados ou, sendo um factor de risco (como frequentemente ocorria nas situações de auto-ajuda), nem sequer se encontravam representados. No entanto, os que ficassem permanentemente excluídos do processo de trabalho, ou que, quando muito, já apenas encontrassem trabalho de forma ocasional, não tinham a priori cabimento neste meio. Estes já não representavam qualquer factor de poder no medir de forças das classes sociais e eram duplamente excluídos: da sociedade burguesa, mas igualmente da ‘contra-sociedade’ do movimento operário organizado” (Kronauer 2002: 86s.). A propósito, o ponto de vista de Kadritzke também poderia, assim, fornecer alimento para o anti-semitismo estrutural, tornando as personalizações novamente possíveis. Em Kadritzke há todo o tipo de contradições: por um lado, as classes médias deveriam existir, por outro lado, porém, já são sempre negadas no seu entendimento da sociedade de classes.

 

 

5. A dissociação-valor como princípio da forma social, classe, classe média e questão social hoje

 

Até agora, o ponto de partida para o tema "A classe e a questão social hoje" foi aqui apenas o "valor". Gostaria de concluir discutindo o que significa para este tema determinar não só o valor, mas a dissociação-valor como princípio da forma social. De acordo com esta opinião, não é só o valor (mais-valia) que é constitutivo da totalidade, mas é preciso assumir igualmente que sob o capitalismo existem também actividades reprodutivas que são realizadas principalmente por mulheres. Na essência, a dissociação-valor significa que certas actividades reprodutivas, mas também sentimentos associados (sensualidade, emocionalidade, actividades de cuidados etc.) são separadas do valor/mais-valia e do trabalho abstracto. As actividades reprodutivas femininas têm assim um carácter diferente do trabalho abstracto, razão pela qual não podem ser subsumidas sem mais sob o conceito de "trabalho"; é um lado da sociedade capitalista que não pode ser apreendido com os instrumentos conceptuais marxistas. Valor e dissociação estão numa relação dialéctica recíproca. Um não pode ser derivado do outro, mas ambos emergem um do outro. A este respeito, a dissociação-valor também pode ser entendida como uma metalógica que se sobrepõe às categorias internas capitalistas. Os aspectos cultural-simbólicos e psicossociais desta dissociação-valor devem também ser tidos em conta para compreender o todo social, sobre o que não entrarei em detalhes aqui.

 

Ora a "crítica do valor fundamental" assume, com Marx, que uma contradição entre substância (produtos) e forma (valor) é, em última análise, algo como a lei que conduz a crises de reprodução e à desintegração/colapso do capitalismo. Dito esquematicamente, a massa de valor por produto individual torna-se cada vez menor. O factor decisivo aqui é o desenvolvimento das forças produtivas, que por sua vez, no contexto do conjunto capitalista global, está intimamente relacionado com a formação e aplicação das ciências (naturais). Com a revolução microelectrónica e a indústria 4.0 de hoje, o trabalho abstracto está a tornar-se cada vez mais obsoleto. Há uma desvalorização do valor e, em última análise, um colapso da relação de valor, sobre o que Robert Kurz escreveu já em 1986 que "não se deve imaginar o colapso como um acto isolado (apesar de que certamente incluirá quedas e rupturas repentinas, por exemplo, colapsos de bancos, falências em massa etc.,), mas sim como um processo histórico, toda uma época de talvez várias décadas, em que a economia mundial capitalista não pode escapar ao turbilhão de crises e processos de desvalorização, crescente desemprego em massa etc." (Kurz: 1986, em: exit-online.org). Hoje há muito se tornou claro que não só a impossibilidade de obter retornos através da criação de mais-valia, que é mediada por este mesmo processo, levou a uma diluição no plano especulativo, mas que a dinâmica global que culmina com isto leva de facto à decadência do capitalismo. Ora é preciso modificar decisivamente esta estrutura e dinâmica no que diz respeito à crítica da dissociação e do valor. A "dissociação" não é, como poderia parecer, uma dimensão estática, representado a lógica de valor o momento dinâmico, pelo contrário, também é dialecticamente anterior a esta e apenas ela torna possível este processo dialéctico, razão pela qual também tem de se assumir uma lógica de dissociação-valor em processo. A dissociação está assim profundamente envolvida na eliminação do trabalho vivo. Ao mesmo tempo, também se altera a si própria no processo histórico. Hoje em dia, o modelo de mulher dona de casa e homem sustento da família, que era característico da fase fordista, há muito que se desintegrou. As mulheres hoje têm de manter a sua posição em empregos remunerados, embora continuem a ser as principais responsáveis pelas actividades reprodutivas. Apesar de melhores qualificações académicas, ganham menos do que os homens e têm menos oportunidades de progressão. Isto resulta em inconsistências de estatuto para os homens, porque já não têm o papel de sustento da família e estão eles próprios expostos a empregos remunerados precários. Neste contexto, as actividades de cuidados hoje profissionalmente prestados são, parafraseando Marx, custos mortos; não geram qualquer mais-valia, pelo contrário, são patrocinadas pelo Estado através de uma redistribuição da mais-valia, cuja arrecadação, no entanto, é menos possível hoje em dia. Hoje o patriarcado está a tornar-se selvagem, quando as instituições da família e do trabalho remunerado se desfazem, à medida que a tendência para o empobrecimento económico aumenta. O princípio da mais-valia, que anda de mãos dadas com a luta por um aumento constante do dinheiro, leva à concorrência e a querer-ser-melhor-que-os-outros-em-toda-a-parte. O princípio da competitividade é principalmente masculino. Assim Frigga Haug escreve com referência à ordem simbólica de género no capitalismo: "O homem ... é herói e trabalhador ... A ideia da concorrência como meio de diferenciação e construção de identidade também determina as ideias de comunidade na história da teoria social ocidental" (Haug 1996: 146). É a dinâmica mediada pela mais-valia, que já sempre é inerente ao princípio da competitividade, que tem de ser pensada em conjunto com a dissociação do feminino.

 

O problema do trabalho produtivo de capital é decisivo para o processo de crise. Ao nível do capital individual, o trabalho improdutivo também pode ser rentável, por exemplo, sob a forma de uma empresa de contabilidade subcontratada. Isto também diz respeito – como mencionado – a actividades de cuidados profissionais, em que as mulheres não podem simplesmente ser subsumidas sob estas actividades, mas, do ponto de vista da valorização, têm de estar disponíveis em toda a parte. Como disse anteriormente, os custos improdutivos são geralmente suportados pelo Estado, que os financia através de impostos, o que seria demasiado dispendioso para as empresas (infra-estruturas, auto-estradas, educação etc.). (Porque o próprio Estado tem hoje menos dinheiro, tais áreas tiveram de ser parcialmente privatizadas nas últimas décadas).

 

É óbvio que o fordismo e o keynesianismo intervencionista de Estado correspondiam à sociedade de classe média nivelada no sentido de Schelsky. A actividade do Estado, a expansão e o patrocínio de serviços eram mutuamente dependentes. Assim, em oposição à clássica pequena burguesia, surgiram novas classes médias na administração, nos media públicos, na saúde e educação etc., e o número de estudantes aumentou.

 

Ao mesmo tempo, a revolução microeléctronica desde os anos 70 tornou supérfluas grandes quantidades de força de trabalho. Isto levou a uma crise da valorização real. Uma consequência disso é a inflação de capital fictício, que se descarregou pela primeira vez no crash de 2008. Tais tendências ficam a cargo do Estado social, mas também, por exemplo, de banqueiros, especialistas de alta tecnologia, empregados de seguros. Após o colapso financeiro em 2008, foi necessário reunir pacotes de salvamento para bancos sistemicamente relevantes a fim de evitar o colapso do sector.

 

Do lado subjectivo, é a cientificização e o desenvolvimento das forças produtivas, conotados como "masculinos", centralmente baseados na dissociação-valor como contexto básico, que minam a forma de socialização patriarcal-capitalista, individualizam as mulheres, permitindo-lhes ter uma actividade profissional em grande escala etc. A precarização da classe média nos últimos tempos é uma consequência destes processos. Igualdade de oportunidades, como se diz sempre tão bem, e possibilidades de subida, que sempre implicaram intenções competitivas, foram assim criadas na fase fordista, sob o patrocínio do Estado social. As classes inferiores permaneceram e consistiam principalmente em trabalhadores estrangeiros e migrantes. Na transição para o pós-fordismo desde os anos 70, a socialização de classe média nivelada transformou-se então numa socialização de classe média fragmentada e pluralizada, razão pela qual a sociologia assumiu a investigação do meio e do estilo de vida. Este tipo de socialização de classe média foi depois acompanhado pelo medo da descida, do colapso, o mais tardar com Hartz IV. Desde então, pelo menos, as pessoas tiveram de lutar para permanecer no mesmo lugar, na escada rolante descendente. Como Nachtwey demonstrou, são inicialmente as classes médias baixas que estão em risco de cair, ou seja, trabalhadores qualificados, empregados médios etc. Contudo, com um novo colapso financeiro e a penetração gradual da indústria 4.0, as profissões da classe média alta podem ser maciçamente afectadas, incluindo os bem classificados médicos, advogados etc. O segmento dos grupos marginalizados poderá então ser atingido: Os beneficiários de Hartz IV, os desempregados de longa duração e empresários individuais, pessoas sem formação profissional, famílias monoparentais, deficientes, migrantes e idosos poderão aumentar massivamente, pelo que os benefícios sociais também poderão depois ser reduzidos massivamente. Os já existentes ressentimentos de extrema-direita poderão assim aumentar de novo massivamente, como a investigadora da extrema-direita Heitmeyer tem demonstrado há anos. Os migrantes sem passaporte alemão já são sempre excluídos, na medida em que a cidadania já pressupõe fundamentalmente a exclusão.

 

 

6. Conclusão

 

O capitalismo já está sempre apontado para as desigualdades sociais, tendo como último ponto de fuga a exclusão e a queda final, embora eu ainda não tenha abordado os processos de exclusão e as as vidas nas favelas do chamado Terceiro Mundo. No capitalismo, de resto, o "cigano" é o excluído por excelência. Sempre foi objecto de leis especiais, mesmo que tivesse um passaporte alemão, por exemplo; por assim dizer como personificação do sem lei, do supérfluo, do dispensável no espaço social interno, é considerado o "último dos últimos", em que a atribuição de "associalidade" e "de raça estrangeira" é combinada no estereótipo cigano (não posso entrar aqui em detalhes, ver, por exemplo, Scholz 2007).

 

Se hoje em dia o conceito de classe já não se aplica no que diz respeito às desigualdades socioeconómicas, isto não deve levar a deixar como está a complexidade das relações de desigualdade, nem a ver em acção uma desclassificação de toda a gente, na qual todos estão, por assim dizer, igualmente em risco de descida/queda. Pode assumir-se que uma sociedade de classes conduziu, através de um compromisso de classes, a uma sociedade de classe média nivelada no fordismo, que por meio de intervenções keynesianas acabou por levar a uma sociedade de classe média fragmentada e pluralista, até que, mediadas pela revolução microelectrónica, pela indústria 4.0 e por um insuflar dos mercados financeiros com desenvolvimentos de crashes correspondentes, surgiram tendências de descida e receios de descida das classes médias. O pano de fundo deste desenvolvimento é a contradição em processo, que por sua vez tem a sua base numa contraditória dissociação-valor como contexto social basilar. A posse dos meios de produção e a posição no processo de produção já não são adequados para determinar situações de desigualdade, quando, por assim dizer, até o proletário está hoje desproletarizado, quando agora realmente "a sociedade do trabalho fica sem trabalho". Os modelos burgueses de estratificação dizem mais do que as definições de classe marxistas, que convulsivamente acreditam ter de subsumir qualquer desenvolvimento sob categorias de classe. As complexas situações actuais de desigualdade são assim historicamente mediadas por desigualdades sociais colectivas e pelas correspondentes disparidades até ao presente. Quem tem pais académicos e pais com dinheiro também tem hoje maiores oportunidades educacionais do que os filhos de pais pobres; mesmo que hoje estejam a ser desvalorizados, são um pré-requisito mínimo para a manutenção do estatuto. O factor decisivo aqui é a "banha fordista" antes acumulada, que já não está simplesmente disponível para os mais jovens pobres de hoje.

 

No entanto, outras diferentes relações de desigualdade por maioria de razão são ainda mais importantes à partida. Não se deve assumir que as disparidades sócio-económicas foram exclusivamente determinadas pelas relações de classe, no sentido da oposição capitalista-operário, pelo contrário, também os trabalhadores qualificados e as suas organizações tentaram excluir os mais fracos, o lumpenproletariado, como a citação de Kronauer acima deixa claro. Um ponto de vista de classe média e de classe "nativo" é hoje decisivo para o ressentimento contra "os outros" que vêm "até nós".

 

É de suspeitar que o recurso ao conceito de classe está hoje novamente a ser tentado pelos ideólogos da classe média, porque não querem admitir o perigo da descida ou da queda na "lumpenburguesia" (Claudio Magris), e porque a sociedade da descida corre, entretanto, o risco de transformar-se numa sociedade da queda. Daí também a diferenciação em superior, médio e inferior do centro há muito tornado indistinto, por exemplo, em Nachtwey. Pretende-se contrariar isto com a categoria da classe, como um conceito de ordem; quer-se ter um lugar na estrutura, embora hierárquica, em vez de cair fora dela e ser o "último". A discussão sobre as desigualdades sociais tornou-se mais vulgar-marxista nos últimos anos, poder-se-ia dizer que quanto mais cresce um centro em yoga, mais tudo deve ser reduzido de novo à categoria da classe. Mas o conceito de classe, por sua vez, diz pouco e é insuficiente no contexto de um movimento de descida da socialização da dissociação e do valor, porque se trata de degradação, desclassificação, exclusão e superfluidade.

 

A insistência no conceito genérico de classe exprime assim, entre todas as desesperadas evasivas, a percepção de que o sujeito classicamente patriarcal pode já ter dado o que tinha a dar, como escreveu Claudia von Werlhof já no início dos anos 80 no ensaio "O proletário está morto, viva a dona de casa!" (mesmo que, por outro lado, ela não possa deixar de ser acusada de tendências filosóficas vitalistas e reaccionárias), nomeadamente que o homem tem de descer do alto do seu cavalo de livre e igual, uma vez que a relação de trabalho normal está em erosão e, por assim dizer, em circunstâncias inseguras, ele está transformado numa mulher, com um avental posto e com o pénis cortado (Werlhof 1983).

 

Actualmente existem fortes tendências para subsumir de novo "raça" e género sob a categoria da classe, e para declarar isto mais ou menos implicitamente como a contradição principal, em vez de considerar diferentes dimensões de desigualdade na sua lógica própria e colocá-las no contexto em si fragmentado da dissociação e do valor. O qual tem de ser penetrado ainda mais intimamente, não só a nível sócio-estrutural, mas também, não em último lugar, a nível psicossocial. Isto torna-se claro, por exemplo, quando Demirovic intitula um artigo: "Relações de género e capitalismo. Por um entendimento do múltiplo contexto da dominação em termos de política de classe" (Demirovic 2018). Neste contexto, a propósito, não foi o caso que a raça/etnia e o género alguma vez tivessem estado em primeiro plano nas últimas décadas, como é frequentemente sugerido ou afirmado hoje em dia; é francamente ridículo declarar isso como tendo sido a corrente dominante, pelo contrário, foram predominantes nas ciências sociais a individualização, a orientação para o meio e para o estilo de vida, tendo por fundo o indivíduo trabalhador masculino, para lá de todas estas dimensões da desigualdade. Não poderei entrar aqui em detalhes sobre a ligação entre desigualdades “de classe”/económicas, "raça", género, anti-semitismo e anticiganismo na perspectiva da crítica da dissociação e do valor, mas fi-lo noutro lugar (Scholz 2005).

 

 

Bibliografia

 

Demirovic, Alex: Die Geschlechterverhältnisse und der Kapitalismus. Plädoyer für ein klassenpolitisches Verständnis des multiplen Herrschaftszusammenhangs [Relações de género e capitalismo. Por um entendimento do múltiplo contexto da dominação em termos de política de classe”], in: Pühl, Katharina/Sauer, Birgit (Hrsg.): Kapitalistische Gesellschaftsanalyse [Análise da sociedade capitalista], Münster, 2018.

 

Haug, Frigga: Knabenspiele und Menschheitsarbeit. Geschlechterverhältnisse als Produktionsverhältnisse [Os jogos dos rapazes e o trabalho da humanidade. Relações de género como relações de produção], in: Haug Frigga: Frauen-Politiken, Berlin 1996.

 

Kadritzke, Ulf: Mythos Mitte [O mito do centro], Berlin 2017.

 

Kronauer, Martin: Exklusion, Frankfurt/Main, 2002.

 

Kurz, Robert: Die Krise des Tauschwerts 1986 ( www.exit-online.org). Trad. port.: A crise do valor de troca, Consequência, Rio de Janeiro, 2018.

 

Kurz, Robert/Lohoff, Ernst: Der Klassenkampffetisch [O fetiche da luta de classes] 1989 (www.exit-online.org).

 

Kurz, Robert: Das letzte Stadium der Mittelklasse 2004 (www.exit-online.org). Trad. port.: O último estádio da classe média, online: http://obeco.planetaclix.pt/rkurz173.htm

 

Nachtwey, Oliver: Die Abstiegsgesellschaft [A sociedade da descida], Frankfurt/Main 2017.

 

Reckwitz, Andreas: Die Gesellschaft der Singularitäten [A Sociedade das Singularidades], Frankfurt/Main 2017.

 

Scholz, Roswitha: Homo Sacer und die Zigeuner 2007 ( www.exit-online.org). Trad. port.: Homo Sacer e os ciganos, Antígona, Lisboa, 2014.

 

Scholz Roswitha: Überflüssigsein und Mittelschichtsangst, in: Exit! Nr. 5, Bad Honnef 2008. Trad. Port.: O ser-se supérfluo e a angústia da classe média, online: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz8.htm

 

Scholz, Roswitha: Differenzen der Krise – Krise der Differenzen [Diferenças da crise, crise das diferenças], Bad Honnef 2005. [Índice do livro em português aqui. Teses fundamentais do livro apresentadas pela autora na revista Exit! nº 1, 2004; em português: “A nova crítica social e o problema das diferenças”, online: http://www.obeco-online.org/roswitha_scholz3.htm]

 

 

 

(1) Palestra proferida no seminário da Exit! “Classe e questão social" em 6.10.2018. Partes da palestra foram adaptadas do artigo "O ser-se supérfluo e a angústia da classe média", Exit! N.º 5, 2008. O texto foi portanto escrito ainda antes da crise do coronavírus.

 

 

 

Original It`s the class, stupid? Deklassierung, Degradierung und die Renaissance des Klassenbegriffs in: https://exit-online.org, 26.08.2020. Tradução de Boaventura Antunes

 

 

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