Thomas Meyer

 

Os cérebros pequeno-burgueses na crise – A 'zombieficação' da mente e o declínio do capitalismo

 

 

I.

O facto de terem sido formuladas muitas críticas ao ponto de vista do liberalismo dificilmente leva os liberais a (querer) tomar nota delas, como a experiência tem demonstrado. Um exemplo recente de um liberalismo em que a estreiteza do cérebro burguês se torna clara é o de Markus Krall, cujo último livro é "Die bürgerliche Revolution – Wie wir unsere Freiheit und unsere Werte erhalten" ("A Revolução Burguesa – Como Preservamos a Nossa Liberdade e os Nossos Valores"). (1) Este é mais um livro com muita saída, com o qual os cidadãos contribuintes tentam dar sentido à crise. Ora Krall quer não só diagnosticar, mas também mostrar uma saída para a crise. Ao fazê-lo, torna-se claro que o seu ponto de vista pequeno-burguês é inflacionado a ponto de vista da sociedade como um todo, como será demonstrado no texto que se segue. O liberalismo não só continua a ter uma mente estreita, como está agora a tornar-se atrevido. Escusado será dizer que o chamado "mainstream" (social-democratas, verdes-oliva, etc.) não está nada melhor.

 

II.

Krall pode ser localizado no liberalismo da escola austríaca, fundada por Ludwig von Mises. Neste livro, ele menciona Hayek, Ayn Rand e o matemático e dissidente russo Igor Shafarevich, entre outros.

Ao mesmo tempo, Krall também tem uma inclinação conservadora. Queixa-se do declínio dos valores, do terror consumista, do casamento homossexual, da ideologia de género e da histeria climática, entre outras coisas. Acusa as igrejas de se terem tornado o "apêndice do Estado" (63). Elas subjugaram-se ideologicamente. "Neste processo", diz Krall, "a verdadeira missão das igrejas bate no fundo do poço quanto ao cuidado pastoral pelas pessoas, à presença reconfortante de uma igreja que deve dar aos fiéis comunhão na fé, serviço de Deus, ajuda na criação dos filhos, e sobretudo firmeza na batalha pela alma, contra a ideologia do terror consumista patrocinado pelo Estado. Pois este terror consumista é o motor da sedução. Em vez disso, as igrejas observam ingénua e benevolentemente a dança em torno do bezerro de ouro do consumo. Os cuidados pastorais degeneram num serviço psicológico partilhado com os outros ideólogos da margem socialista do bem-estar dos trabalhadores, da seita climática global e dos sindicatos" (65).

Por outro lado, Krall está entusiasmado com a produtividade da economia. Um dos travões ao crescimento, diz ele, é a burocracia: "Mas a burocracia não cria riqueza, consome-a". Sem burocracia, o potencial de produtividade poderia ser ainda mais explorado: "Se não fosse a burocracia, a nossa economia cresceria a par do progresso da produtividade tornado possível pelo progresso técnico. O progresso da produtividade é actualmente mais elevado do que foi durante muito tempo, porque está a ser impulsionado pela maior revolução industrial de todos os tempos, a digitalização. A regra geral do seu efeito é: em dez anos podemos produzir a quantidade existente de bens e serviços com metade da força de trabalho de hoje" (135).

A Krall, no entanto, não lhe ocorre a ideia de que o capitalismo, que está a tornar-se e deve tornar-se cada vez mais produtivo, ou seja, capaz de produzir cada vez mais mercadorias em cada vez menos tempo, também tem de vender esta quantidade de mercadorias. O capitalismo está assim dependente do hedonismo do consumidor e de uma certa insanidade do "povo do centro comercial", e é por isso que para este fim é simulada uma correspondente "procura solvente" (através de crédito, subsídios, etc.). Devido à sempre presente ameaça de superprodução, não há nada melhor para as vendas do que pessoas superficiais e narcisistas, que correm atrás de cada tendência e se definem pelas suas 'marcas' e o seu 'estilo', ou o seu 'desodorizante'. Que as igrejas podem, no entanto, ser correctamente acusadas de oportunismo, embora de uma forma diferente de Krall (2), talvez seja verdade, mas é assunto que não vamos aqui discutir mais aprofundadamente.

As limitações dos cérebros burgueses tornam-se extremamente claras quando "conservadores liberais" como Krall defendem um sistema social, mas reclamam das suas consequências, sem terem reconhecido as bases subjacentes a tal sistema. Este é o problema de qualquer pregação moral neoconservadora ou liberal-conservadora. Iring Fetscher já criticou isto há quase 40 anos: "A generalização da concorrência – sob a forma da luta pelo consumo máximo – é uma consequência da transformação do ascético capitalismo inicial no capitalismo industrial moderno, com o seu fornecimento em massa de bens e a sua publicidade dirigida a todos, para um consumo em constante expansão. [...] A busca geral e implacável da felicidade e da "gratificação instantânea" é a consequência da marcha triunfal da civilização industrial capitalista, com a sua produção em massa e a sua publicidade ao consumidor. Nesta marcha triunfal, o sistema económico moderno [...] também 'apreendeu' áreas que até então tinham sido poupadas: por exemplo, igrejas e comunidades religiosas. [...] A contradição na atitude dos neoconservadores é que eles lamentam as consequências de um desenvolvimento que, no entanto, consideram ser o non plus ultra da história. Não deploram a transformação da produção e dos serviços em mercadorias; querem apenas que determinados serviços e mercadorias estejam isentos da lei geral da sociedade produtora de mercadorias. [...] Os apoiantes neoconservadores da civilização industrial capitalista [...] ignoram o facto de que a maioria dos fenómenos que deploram se devem à vitória do liberalismo sobre os seus últimos obstáculos históricos. [...] Mas não se pode, por um lado, justificar sem reservas o modo de produção capitalista e, por outro, deplorar e combater as suas inevitáveis consequências e indispensáveis condições de existência". (3)

Em vez de identificar as mudanças na estrutura da sociedade com o processo de valorização do capital, por exemplo, com as mudanças no mundo do trabalho e nas relações de género, procuram-se bodes expiatórios que sejam considerados responsáveis pela desintegração da família e outras coisas. Acima de tudo, diz-se que um ominoso "marxismo cultural" (noutros tempos, teria sido dito provavelmente "bolchevismo cultural judaico") desempenha um papel proeminente neste contexto. Uma das "imagens do inimigo essenciais" alegadamente cultivadas pelo "marxismo cultural da Escola de Frankfurt" era “a família, como alegada(!) ‘estrutura autoritária’. Neste contexto, a chamada ‘educação anti-autoritária’ foi de facto um instrumento para minar a instituição da família como elemento indispensável à construção da sociedade" (110). Sem surpresa, Krall também problematiza a 'sexualização': "A moralidade sexual indispensável à preservação do casamento e da família foi radicalmente destruída no decurso de uma sexualização radical da sociedade, da sua inundação pornográfica, da deificação de uma sexualidade hedonista a ser impiedosamente vivida mesmo à custa dos outros, e da recusa da procriação (!), ou seja, o desrespeito do mandamento 'Sede fecundos e multiplicai-vos'. [...] Propagou-se um modo de vida de isolamento e solidão que não é viável para a massa de pessoas sem roubar, através de uma redistribuição maciça, aqueles que escolhem uma vida responsável de acordo com a imagem tradicional da família. Assim, a sexualização da sociedade não só destrói o casamento e a família, como também prepara o terreno para o enfraquecimento da propriedade e, consequentemente, para a destruição da autonomia do indivíduo como ser humano livre" (253).

O liberal que apela à revolução burguesa na Alemanha é tão papista como o papa.

 

III.

O facto de mais uma vez ser feito um escândalo e agitada a 'sexualização' contra contra os de 68, e imaginar estes como tendo atentado contra um idílio burguês, tem a ver com a fragilidade da identidade burguesa, aqui especificamente dos 'líders de serviço' da 'industriosa' classe média na própria crise.

A 'crise' também ocupa muito espaço no trabalho de Krall. Contudo, para ele não é uma verdadeira crise do capitalismo, ou seja, uma crise que aponta para um limite histórico deste sistema, mas uma crise causada por uma política "errada". A Alemanha como local de negócios poderia, portanto, ser salva por uma política "correcta". A crise também é assim entendida como uma oportunidade, como afirma Krall: "O que nós, como defensores de uma república de liberdade, temos em comum com os socialistas, no entanto, é o conhecimento do poder decisivo da crise. Para os socialistas, uma crise é uma oportunidade para destruir, tomar o poder e estabelecer uma ditadura. Para nós, libertários, a crise é uma oportunidade para a catarse (!), para a purificação (!), para libertar a sociedade das correntes e dos grilhões a que voluntariamente se deixou prender durante décadas pelos socialistas, sob a falsa bandeira da "terceira via". [...] A crise impede um "business as usual". A sociedade está a escolher entre a liberdade e o socialismo. Este conflito epocal e inelutável, este confronto intelectual e político, tem de ser ultrapassado" (162).

A política "correcta", segundo Krall, seria o "regresso a um Estado enxuto e eficiente, aos princípios do mercado livre, à parcimónia e concentração no essencial" Estas "são as receitas para o sucesso que libertam (!) as forças salutares do mercado". Após uma breve pausa de ajustamentos dolorosos (!), a economia regressará a um caminho de crescimento estável e sustentável (!)" (206). Para os "profetas burgueses da crise", então, as coisas continuariam alegremente após a crise, como se nada tivesse acontecido, como se não houvesse contradições no capitalismo, como se aquela imagem ideal de uma "ordem natural do mercado livre" fosse real. Para não mencionar os problemas que obviamente não podem ser resolvidos com o lucro, como a catástrofe climática e o cada vez mais excessivo desperdício de matérias-primas. É engraçado que Krall cita Ayn Rand no início: "Uma pessoa é livre de ignorar a realidade. A pessoa é livre para livrar o seu entendimento de qualquer foco e tropeçar cegamente por qualquer caminho que deseje. Mas não é livre de evitar o abismo que se recusa a ver" (20).

O abismo que uma pessoa enfrenta como pequeno-burguês, contudo, não é um planeta (em breve) devastado, mas a iminente desvalorização da sua riqueza privada.

 

IV.

O elemento central do entendimento do liberalismo de Krall é a liberdade do proprietário privado de poder investir o seu dinheiro sem perturbações, sem que o Estado o incomode com impostos e contribuições sociais de todo o tipo. As actividades estatais que nada têm a ver directamente ou colidem com este interesse de pequeno-burguês são, para Krall, o socialismo. Isto inclui todas as variantes do Estado social e do keynesianismo. (4) Aqui Krall invoca logicamente Hayek e a sua obra O caminho da servidão. Como Hayek expõe nas suas obras, a crescente regulamentação estatal conduz à servidão, em última análise a um regime socialista, em que todos são empregados ou trabalhadores forçados do Estado. O que Krall, como Hayek, não quer admitir, porém, é que a "economia dos mercados anónimos [...] conduz igualmente à servidão. Os indivíduos da ‘livre’ vontade económica já são a priori recrutados para as cegas ‘leis do mercado’ e ainda mais definidos como meras ‘forças de trabalho’. Na medida em que a sua absurda 'liberdade consiste em' dobrar as suas vidas sob o jugo dos mercados de trabalho, não passam de trabalhadores forçados da 'bela máquina', que não podem questionar o significado e o objectivo de toda organização, muito menos no que diz respeito ao seu próprio bem-estar". (5) Externamente, estes constrangimentos tornam-se visíveis nas grandes corporações 'sistemicamente necessárias' que subjugam a sociedade (incluindo o Estado). Para encontrar descrições deste fenómeno, é necessário passar brevemente da literatura libertária para a literatura marxista. Aí, lamenta-se um "capitalismo monopolista de Estado", que teria de ser ultrapassado em aliança com a pequena burguesia (!) a fim de criar uma "democracia anti-monopolista" – em vez de uma "economia livre".

Enquanto o Estado e muitas das suas actividades são vistos negativamente por Krall, ao mercado é atribuída uma quase infalibilidade. Sim, "os poderes autocurativos do mercado podem fazer maravilhas" (181). Se existe algum problema, a causa é o Estado e o pensamento socialista, e a solução é a rápida privatização e a "liberdade" do contribuinte pequeno-burguês. Krall queixa-se daqueles que pensam que a crise financeira se deve ao "fracasso do mercado" (153): pelo contrário, ela seria um fracasso do Estado. O fracasso do Estado está sempre presente quando o Estado pensa que tem de regular as coisas que o mercado resolveria mais eficazmente (cf. "Planwirtschaft pur [Pura economia planificada]", 193ss.). Infelizmente, os limitados cérebros burgueses não percebem que mercado e Estado são dois pólos de uma forma louca de sociedade, e que consequentemente o mercado e o Estado poderão ser o problema, e que se terá de criticar ambos se se quiser realmente compreender apenas um deles, em vez de mistificar ambos ou um deles. É precisamente neste ponto que escritores liberais/libertários como Krall se encontram com os últimos sobreviventes do marxismo do movimento operário, como um original e a sua imagem no espelho. Para Krall, a ordem da liberdade e da propriedade privada é "ordenada por Deus[]" (67); de facto, a "luta entre a liberdade e o socialismo" pode ser "interpretada numa perspectiva religiosa também como uma luta entre o bem e o mal" (250). Ao fazê-lo, invoca Igor Shafarevich, um dissidente soviético próximo da ortodoxia russa. Este último reconheceu "o socialismo, com a sua programação e as suas seduções, como uma constante antropológica da história humana" (108). Segundo Krall, a "ordem natural da liberdade" (140) encontra em Shafarevich uma justificação religiosa ou cristã: "A perspectiva de Igor Shafarevich sobre o socialismo é essencialmente espiritual, mesmo religiosa na sua natureza. Mas está fundamentada em provas empíricas extensivas [...] Esta nova perspectiva poderia ser chamada profética num sentido religioso. Chama ao bíblico ‘inimigo da raça humana’ pelo nome [...] O contexto espiritual, estou convencido, baseia-se na liberdade como característica da semelhança do ser humano com Deus [...]. O ser humano é a imagem de Deus, não no sentido de semelhança anatómica, mas porque lhe foi dado o dom do auto-conhecimento, do 'Cogito, ergo sum', e portanto, como última consequência, da liberdade de escolha e da liberdade como tal. Há extensos debates teológicos sob o título "problema da teodiceia" que identificam no dom da liberdade o terreno essencial para o antagonismo do mal contra o desígnio de Deus. Uma ideologia dirigida contra a liberdade é, deste ponto de vista, apenas lógica e consistente na sua concepção dirigida contra o divino e o religioso. [...] O socialismo como inimigo da liberdade e portanto como inimigo do ser humano em geral (!) é nesta perspectiva a encarnação do demónio (!), como já o encontramos em Dostojewski [...]" (109s.).

Que o cristianismo é de facto tão simples que poderia ser usado para dar uma auréola à ordem "natural" do mercado "livre" pode com razão ser objecto de dúvida. (6) Certamente que o cristianismo, especialmente na sua variante protestante, tem contribuído bastante para a imposição do capitalismo. No entanto, a visão de mundo maniqueísta de Krall não reconhece a complexidade da história. É, como se diz, uma visão do mundo simples e esquemática, que fornece uma orientação clara num mundo confuso e caótico, como a visão científica do mundo outrora desenvolvida na Academia das Ciências Soviética.

 

V.

Os sujeitos burgueses criticam frequentemente nos outros aquilo a que eles mesmos aspiram para si próprios. Assim, Krall critica os principais meios de comunicação por representarem uma determinada linha ou visão do mundo, por outras palavras, por estarem repletos de unilateralidade. Além disso, existe a influência discursiva de organizações "não governamentais" e fundações partidárias. Para salvar a Alemanha de deslizar para a ditadura socialista, no entanto, Krall e os seus lutam eles próprios pela "hegemonia" (Gramsci). Assim, Krall esforça-se por uma (contra-)revolução burguesa na Alemanha. Para isso, é necessária a formação de "redes" correspondentes e de um "contra-poder mediático". Além disso, "programas educativos" e "desobediência civil" (162ss.). Aqui pretende-se "fazer uso da construção táctica e da caixa de ferramentas da esquerda e aplicar as suas tácticas de guerrilha contra ela" (120). Contudo, "[nem] todas estas tácticas (por exemplo, campanhas de assassinato de carácter e disfarces de camuflagem) [...] são adequadas para a contra-revolução burguesa, especialmente quando estão em óbvia contradição com os valores da sociedade livre" (171). E ainda: "Ao fazê-lo, porém, deve ser possível evitar que os incendiários socialistas culpem outros, especialmente a economia de mercado e a ordem liberal, pelos seus fracassos. É por isso que a preparação argumentativa e propagandística (!) é tão importante" (178).

Para atingir o seu objectivo de salvar a Alemanha de um regime de terror eco-socialista, propõe um pacote abrangente de medidas e reformas para todos os campos políticos possíveis. Para este fim, a constituição, ou seja, a 'Lei Básica', deverá também ser revista: Assim, para Krall, "é necessário proteger a ordem da propriedade, a economia de mercado e a liberdade contratual através da constituição, e defini-los como objectivos societais" (242). Entre as medidas e alterações desejadas estão por exemplo uma "proibição (!) do endividamento do Estado" e uma "salvaguarda ou restauração da separação de poderes" e outras (213s.). É também necessário evitar a "tirania da maioria" (235s.). Para tal, propõe alterar a lei eleitoral de tal modo que cada cidadão tenha de decidir de novo em cada legislatura se quer exercer o direito de voto ou receber benefícios sociais. Isto é para evitar que os direitos sociais possam ser decididos por 'eleições', o que poderia levar a políticas 'erradas'. Ideias como esta mostram que uma classe média ameaçada pelo colapso social pretende moldar os seus próprios "interesses pequeno-burgueses" sob a forma da lei, como se outros interesses não existissem. Isto também é demonstrado pelo desejado "regresso à liberdade contratual". Para este fim, o "Estado [...] deve abolir todas as restrições à liberdade contratual. Isto aplica-se em particular ao direito do trabalho e à lei do arrendamento" (206). O facto de existir uma liberdade contratual limitada no direito do trabalho, ou seja, que nem todos os tipos de contratos de trabalho podem ser celebrados, tem a ver, entre outras coisas, com a existência de direitos dos trabalhadores. O facto de a liberdade contratual dever ter limites tem-se reflectido no crescente intervencionismo estatal, ou seja, na legislação laboral e social desde o século XIX. Serviram para amortecer os efeitos secundários negativos da concorrência. Em 1889, por exemplo, o historiador jurídico Otto von Gierke comentou sobre a liberdade contratual ilimitada: "A liberdade contratual ilimitada destrói-se a si própria. Uma arma terrível nas mãos dos fortes, uma ferramenta embotada nas mãos dos fracos, torna-se um meio de opressão de um pelo outro, de exploração impiedosa da superioridade intelectual e económica. A lei que, com um formalismo impiedoso, permite que as consequências pretendidas ou presumidas surjam do livre movimento contratual, traz o bellum omnium contra omnes para formas legais, sob a aparência de uma ordem de paz. Hoje, mais do que nunca, o direito privado tem a tarefa de proteger os fracos contra os fortes, o bem da colectividade contra o egoísmo do indivíduo". (7)

Aqueles que defendem a liberdade contratual ilimitada fingem que toda a contratação é verdadeiramente voluntária e que não existem constrangimentos estruturais, aliás relações de poder, devidos à desigualdade.

 

VI.

Qual é o conteúdo económico da crise para Krall? Ele vê um problema grave na política de taxas de juro negativas ou nulas do BCE. Se a taxa de juro desaparecer, não há razão para poupar e investir, e o resultado é uma "economia de bonobos" (37). A consequência desta política de taxas de juro é uma chamada "zombieficação da economia" (124). Isto é, "a taxa de juro zero ou negativa actua como um subsídio, porque liberta as empresas de ganharem o verdadeiro custo do seu capital. [...] Sabemos, portanto, que neste momento mais de 15% de todas as empresas na Alemanha são "zombies", empresas que deveriam estar mortas, mas que continuam a vegetar, cuja falência não foi cancelada mas apenas adiada, e que estão à espera do evento desencadeante que irá trazer depois estas falências numa enorme vaga" (125s.). Assim, há uma falta de limpeza do mercado. Grande parte da economia real depende da alimentação endovenosa do capital financeiro, mantendo-se apenas com subsídios e dívidas. Este não é apenas o caso na Alemanha: "O mundo está sobreendividado, e em toda a parte" (144). Krall esboça um cenário de crise de deflação e inflação, falências, colapsos de bancos e destruição de activos, que de facto ocorrerão desta forma ou de forma semelhante. Isto não é para ser desenvolvido aqui, pois o que é decisivo é o que vai acontecer "depois". Deve ser posto fim à "ordem monetária planeada" (140), ao "socialismo monetário" (141). Nos últimos anos, isto consistiu em manipular a taxa de juro para baixo. Se a actividade do mercado fosse deixada a si própria, a taxa de juro seria sempre inferior ao crescimento económico real. Assim, não haveria endividamento, excepto em casos individuais irresponsáveis, porque "a sociedade como um todo, contudo, não pode cair na armadilha das taxas de juro se a taxa de juro se formar livremente no mercado" (154). O endividamento do mundo é assim o resultado de uma política "errada". Assim, se as medidas de uma política "correcta" fossem adoptadas, após alguns anos a economia de mercado livre recomeçaria como se nada tivesse acontecido, como se não tivesse havido uma causa fundamental para que o endividamento se tornasse sistemicamente indispensável. Mas para uma ressurreição renovada da ordem natural do mercado livre, é necessário introduzir o padrão-ouro e moedas privadas (!): "Como o exemplo do euro prova mais uma vez, o monopólio do dinheiro não pode ser confiado aos políticos, nem o poder de conduzir a política monetária pode ser confiado a qualquer órgão burocrático. O padrão-ouro, com a simultânea permissão de moedas privadas, impede ambas as coisas. Quebra o monopólio e priva a política da possibilidade de manipular a taxa de juro como o preço mais importante da economia de mercado, de roubar o cidadão através da inflação [...] " (239). O que deve ser introduzido, então, é o dinheiro 'correcto'. (8)

Se uma empresa pede dinheiro emprestado, então o juro é uma expressão de que a empresa é obrigada a criar mais-valia ou a obtê-la noutro lugar. Só então é que o credor ganha emprestando dinheiro. Mas se as taxas de juro forem reduzidas, isto pode também ter a ver em primeiro lugar com o facto de a massa de mais-valia realizável estar a diminuir, e a produção de mais-valia estar a tornar-se cada vez mais difícil. Consequentemente, a política de juros baixos é uma estratégia política que aceita a crise de valorização sem mais reflexões e, na melhor das hipóteses, trata das suas consequências. Krall de modo nenhum vai além disso quando vê uma política "errada" como a causa da crise e não analisa a crise em relação ao processo de valorização do capital, que, aparentemente, continua a ser um livro fechado a sete chaves para ele. (9) Ele compara o estado real das coisas com um ideal derivado da sua "teoria da harmonia do mercado livre " (10) . A sua crítica baseia-se numa profissão de fé e na asserção de que a realidade se desvia hereticamente do paraíso. A sua afirmação de que, "depois" da crise, uma economia de mercado livre no sentido do seu ideal – que nunca existiu – poderia restabelecer-se (!) é completamente feita de ar e vento.

Ele menciona que a digitalização permite produzir a mesma quantidade de bens em metade do tempo (135). A consequência seria que o desemprego aumentaria maciçamente. No entanto, Krall não se preocupa com as catástrofes sociais resultantes. Além disso, é muito improvável que esta racionalização dos postos de trabalho possa ser sobrecompensada (por postos de trabalho rentáveis ao nível da produtividade do mercado mundial, e não por empregos simulados da agência de emprego ou similares). Mas o capitalismo baseia-se na venda da força de trabalho e das mercadorias produzidas. Se a venda da força de trabalho se tornar cada vez mais difícil e o capitalismo sofrer de sobreprodução, os fluxos monetários correntes necessários só podem ser mantidos numa medida cada vez maior, através da injecção de dinheiro de crédito; a isto também se chama um circuito de deficit). Isto intensifica a concorrência para a apropriação ou realização de mais-valia. A "contradição entre matéria e forma " (11) está, portanto, a tornar-se cada vez mais aguda. A expressão do facto de a riqueza material cada vez menos se poder exprimir nas formas capitalistas é a tendência para tudo se tornar "infinanciável", como mostra, por exemplo, a política de austeridade no sul da Europa. Porque a economia real está a tornar-se cada vez menos rentável é que o sector financeiro tem vindo a expandir-se desde os anos 80. A expansão massiva do crédito privado e não-privado não exprime basicamente outra coisa senão que o capitalismo, para "gerir" o seu presente, tem de consumir o seu próprio futuro. O crédito envolve sempre uma antecipação de mais-valia futura. Sem esta última, o crédito acaba também por cair. Se o capitalismo "financeiramente induzido" se tornar uma instituição permanente em toda a parte, e o crédito for assim cada vez menos reembolsado ou "recuperado", então isto significa apenas que o capitalismo já não tem futuro. (12) Se a mais-valia futura já consumida não puder mais ser reembolsada, então isto tem a sua causa no facto de já não se verificar uma produção suficiente de mais-valia através da valorização da força de trabalho. “Suficiente" no sentido capitalista é sinónimo de "rendimento suficiente". Aqui o modo de produção capitalista esbarra num limite interno na forma de uma espiral sem esperança, ou seja, no seu limite histórico (que não é melhorado pelo facto de se acrescentar um limite externo, nomeadamente a finitude da natureza e dos recursos). Isto pode de facto ser chamado de "zombieficação da economia" (124). Mas esta 'zombieficação' é o resultado da dinâmica do mercado, ou seja, da dinâmica de valorização do próprio capital, e não o resultado de qualquer política de 'socialismo monetário' de qualquer banco central.

 

VII.

A revolução burguesa ambicionada por Krall é mais um exemplo de "administração da crise" sem perspectivas, baseada numa interpretação reaccionária da crise. A lista dos que fornecem tal interpretação é cada vez mais longa (Dirk Müller (13), Max Otte, Friedrich & Weik et al.). A sua multiplicidade é, em si mesma, um sintoma de crise. Em termos técnicos, corresponderia à apresentação de uma dúzia de propostas de reparação incompatíveis entre si. Definitivamente não há como contornar uma crítica radical e a abolição do capitalismo, se se quiser que o mundo permaneça habitável para os seres humanos. As mitologias burguesas sem sentido ("ordem natural da liberdade", "mercado livre", etc.), que já estavam erradas há 100 anos atrás, em todo o caso já não ajudam nada.

 

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(1) De seguida citado de acordo com a 3º edição, Estugarda, Abril 2020. Número da página citada entre parêntesis.

(2) Cf. sobre isso: Herbert Böttcher: Auf dem Weg in eine ›unternehmerische Kirche‹ im Anschluss an die abstürzende Moderne [A caminho de uma ›igreja empreendedora‹ após o colapso da modernidade], in: exit! – Krise und Kritik der Warengesellschaft, Nr.17, Springe 2020.

(3) Iring Fetscher: Der Neokonservatismus und seine Widersprüche [O neoconservadorismo e as suas contradições], 23–25, destaque no original. In: Iring Fetscher (Hg.): Neokonservative und ›Neue Rechte‹ – Der Angriff gegen Sozialstaat und liberale Demokratie in den Vereinigten Staaten, Westeuropa und der Bundesrepublik [Neoconservadores e ›Novas Direitas‹ - O ataque ao Estado social e à democracia liberal nos Estados Unidos, na Europa Ocidental e na Alemanha], München 1983.

(4) Sobre o keynesianismo cf. Robert Kurz: Schwarzbuch Kapitalismus – Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft, Frankfurt 1999, 496ss. Livro completo em alemão disponível em: https://exit-online.org/textanz1.php?tabelle=buecher&index=4&posnr=6&backtext1=text1.php. Trad. port. em curso em: http://www.obeco-online.org/livro_negro_capitalismo.html

(5) Citado de Robert Kurz: Schwarzbuch Kapitalismus – Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft, Frankfurt 1999, 647.

(6) Cf., por exemplo, Michael Ramminger/Franz Segbers (Hg.): »Alle Verhältnisse umzuwerfen … und die Mächtigen vom Thron zu stürzen« – Das gemeinsame Erbe von Christen und Marx ["Para mandar abaixo todas as relações ... e derrubar os poderosos do seu trono" - O legado comum dos cristãos e de Marx], Hamburg 2018.

(7) Citado em Uwe Wesel: Juristische Weltkunde – Eine Einführung in das Recht [Estudos jurídicos mundiais - Uma introdução ao direito], 8. Aufl., Frankfurt 2000, 99.

(8) Cf. Knut Hüller: Der unkapitalistische Kapitalismus der C. Felber & Co – Warum Geld die Geldwirtschaft nicht vor sich selber retten kann [O capitalismo não capitalista de C. Felber & Cª - Por que o dinheiro não pode salvar a economia do dinheiro de si mesma], 2014, https://www.streifzuege.org/wp-content/uploads/2019/01/Felber.pdf.

(9) Cf. a respectiva conversa com Ken Jebsen: ab 32 Min, youtube.com vom 15.3.2020.

(10) Cf. Alan Freeman: Die Himmel über uns: Über die Bedeutung des Gleichgewichts für die Wirtschaftswissenschaft [Os céus acima de nós: sobre a importância do equilíbrio na economia], 2006, https://mpra.ub.uni-muenchen.de/6892/1/MPRA_paper_6892.pdf; Claus Peter Ortlieb: Marktmärchen – Zur Kritik der neoklassischen akademischen Volkswirtschaftslehre und ihres Gebrauchs mathematischer Modelle [Fábulas do mercado - Sobre a crítica da economia académica neoclássica e seu uso de modelos matemáticos], 2004, https://www.math.uni-hamburg.de/home/ortlieb/Exit1CPOMarktMaerchen.pdf bem como Knut Hüller: Des Bäckers umwerfende Theorie vom Gleichgewicht [A espantosa teoria do equilíbrio do padeiro], 2006, https://exit-online.org/pdf/HuellerNeoklassik.pdf.

(11) Cf. Claus Peter Ortlieb: Ein Widerspruch zwischen Stoff und Form – Zur Bedeutung der Produktion des relativen Mehrwerts für die finale Krisendynamik, 2008, https://exit-online.org/pdf/WiderspruchStoffFormPreprint.pdf. Trad. Port.: Uma contradição entre matéria e forma, online: http://o-beco-pt.blogspot.com/2010/06/claus-peter-ortlieb-uma-contradicao.html

(12) Cf. Robert Kurz: Schwarzbuch Kapitalismus – Ein Abgesang auf die Marktwirtschaft, Frankfurt 1999, online: https://exit-online.org/textanz1.php?tabelle=buecher&index=4&posnr=6&backtext1=text1.php. Trad. port. em curso em: http://www.obeco-online.org/livro_negro_capitalismo.html

(13) Cf. sobre Dirk Müller: Jan Luschach: Krisenmanagement fürs Volk – Eine Invektive gegen »Mr. Dax«: https://exit-online.org/textanz1.php?tabelle=autoren&index=17&posnr=589. Trad. port.: Gestão da crise para o povo. Uma invectiva contra "mr. Dax", online: http://www.obeco-online.org/jan_luschach.htm

 

 

Original Kleinbürgerliche Hirne in der Krise – Die ›Zombifizierung‹ des Geistes und der Niedergang des Kapitalismus in www.exit-online.org 03.06.2020. Tradução de Boaventura Antunes

 

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