Nota prévia a "A crise do valor de troca", de Robert Kurz

 

Aqui se apresenta expressamente de novo um texto fundamental da crítica do valor, "A crise do valor de troca", escrito por Robert Kurz há já 32 anos. Este texto foi o ponto de partida para posteriores textos e livros sobre a teoria da crise, em que as ideias deste texto continuaram a ser desenvolvidas ou foram mais explicadas, não em último lugar tendo por fundo uma crítica da crítica androcêntrica do valor, formulada por Roswitha Scholz no seu texto "O valor é o homem" (1) e em vários outros. Note-se que este texto fundamental da teoria da crise não é mencionado em lado nenhum por Trenkle e Lohoff no seu livro "A grande desvalorização" (2), sendo que "O colapso da modernização" (3), também de Robert Kurz, é mencionado apenas de passagem, numa nota de rodapé. É uma desonestidade sugerir que a teoria da crise teria saído mais ou menos da cabeça deles (citando aí os dois autores para o efeito também Postone e Konicz).

Mas a motivação para aqui apresentar este texto novamente também assenta no facto de ideias muito importantes de Kurz já então terem sido explicitamente formuladas neste texto, de modo que algumas críticas provenientes da esquerda tradicional de modo nenhum podem ser minimizadas como um "mal-entendido", mas devem ser consideradas falhas intelectuais sérias.

Kurz escreveu explicitamente que a desvalorização do valor é um processo que durará décadas:

 

"Será agora de contrapor à objecção provavelmente inevitável de que a teoria aqui esboçada da 'desvalorização do valor' seria errada, ilusória e possivelmente 'utópica', porque pressupõe como média social a automação completa e absoluta de toda a produção, a 'fábrica fantasma sem pessoas', etc. Tal objecção seria ingénua porque não conta com a lógica da acumulação do capital condicionada pela produção de mais-valia relativa, mas fica presa em definições rígidas. O colapso da relação de valor não começa apenas quando o último trabalhador é eliminado da produção directa; em vez disso, começa precisamente no ponto histórico em que a relação global entre eliminação e re-absorção de trabalho produtivo directo vivo começa a inverter-se, ou seja, logo no momento (e progredindo sucessivamente em extensão), onde (e à medida em que) é eliminado mais trabalho produtivo directo vivo do que é reabsorvido. Presumivelmente, esse 'ponto', na medida em que se pode falar de um ponto, já hoje está no passado, possivelmente no tempo entre o início e meados da década de 1970: não por acaso é durante esse período que ocorre o colapso do sistema monetário de Bretton Woods e o início o desemprego 'tecnológico' em massa. Naturalmente que também não se deve imaginar o colapso da relação de valor como um acto repentino e único (embora rupturas e colapsos repentinos, tais como crashes bancários, falências em massa, etc. sejam parte integrante deste colapso), mas sim como um processo histórico, toda uma época de talvez várias décadas, em que a economia capitalista mundial já não pode sair do turbilhão dos processos de crise e desvalorização nem do crescente desemprego em massa, com as sérias lutas de classes mais cedo ou mais tarde inevitavelmente daí decorrentes." (destaque no original)

 

Kurz salientou também neste texto que para a teoria da crise o decisivo é o plano do capital global e não o das empresas individuais, questão que foi desenvolvida detalhadamente muito mais tarde no livro "Dinheiro sem valor" (4):

 

"Aqui se torna clara a inversão da real situação social global, através do movimento da concorrência. No conjunto da reprodução total do capital, qualquer redução do trabalho produtivo vivo, independentemente de onde ela ocorra, também leva naturalmente à redução da massa do valor total. Mas é precisamente o capital que realiza essa redução do trabalho vivo que assim se apropria individualmente dum lucro maior. O facto de, para o capital singular, o processo real se inverter assim na superfície do mercado deve-se à "liquidez" do valor de troca abstracto, do dinheiro, em comparação com a rigidez e o volume da massa de produtos materiais. A massa de valor representada nos valores de uso materiais e a massa de mercadoria-dinheiro "líquida" estão numa relação de equivalência em permanente "oscilação", que se produz através de desproporcionalidades, assumindo a nível do mercado mundial formas tremendamente complicadas. Se a indústria automóvel alemã e a japonesa desenvolveram uma produtividade do trabalho mais alta do que, por exemplo, a inglesa, isso por si só significa que em cada carro produzido na Alemanha e no Japão está incluída uma menor quantidade de trabalho humano abstrato, ou seja, uma menor massa de valor, se tomarmos por base a ficção social real da "objectualidade do valor" das coisas. Isso também significa que na indústria automóvel do Japão e da Alemanha no conjunto se produz definitivamente uma massa de valor global inferior à inglesa, pelo menos se não forem construídas capacidades de produção adicionais. Mas, na superfície do mercado, a situação apresenta-se de modo completamente diferente: precisamente devido à sua produtividade mais elevada, à sua menor utilização de trabalho vivo, os capitalistas do sector automóvel alemães e japoneses produzem "a custos mais favoráveis" do que os ingleses, o único critério que interessa ao "entendimento económico" burguês vulgarmente abstracto e, portanto, também podem fzer ofertas no mercado "em condições mais favoráveis", podendo afastar do mercado os vendedores ingleses e mesmo assim registar um lucro extra no seu balanço global." (destaque no original)

 

O facto de principalmente estes aspectos não serem tomados em conta também indica que não se tratava (ou não se trata) apenas de uma questão de falta de inteligência, mas que a ruptura categorial significa(va) para não poucos uma ruptura de identidade, de modo que, para esclarecer este esforço de recalcamento, que também aparece precisamente na forma de crítica vulgar, tem de se recorrer ao plano psicanalítico. A crise do capital é também a crise do sujeito. (5)

Muitas pessoas de esquerda ou grupos de esquerda, no entanto, o que fizeram durante muitos anos não foi debater-se realmente com as exposições de Kurz (sendo que todos tiveram de se pronunciar), não foi continuar a pensar sobre as suas ideias, mas limitaram-se a passar-lhes à frente mais ou menos denunciatoriamente, a vulgarizá-las, e a discutir a teoria da crise, em parte, ao nível da piada (isto é especialmente verdade para os mumificados marxistas da idade da pedra e para os igualmente mumificados anti-alemães). A crise foi mistificada, Kurz foi retratado como apocalíptico, como testemunha de Jeová. Robert Kurz seria mais ou menos um maluco, que não valeria a pena ler! (6) O "Kannitverstahn" imputava a Kurz um entendimento absurdo que afinal aponta para si próprio. Gostava-se também de invocar uma imediatidade, pois o capitalismo seria suposto de algum modo entrar em colapso, como alguém que sofre um ataque cardíaco; sim, não se negaria em absoluto que o colapso poderia acontecer "talvez já na próxima semana", (!) como de facto se disse num panfleto. (7) Portanto, não se poderia falar de uma discussão séria. Essas pessoas não gostam, certamente, de se lembrar dos seus erros, hoje, quando a crise se tornou óbvia e há muito que chegou ao dourado Ocidente. Alguns poderão ser talvez penosamente atingidos, sendo, ainda assim, sensatos e capazes de aprender; outros, pelo contrário, permanecem incorrigíveis. Para estes últimos não há nada a fazer.

 

Thomas Meyer pela redacção da exit! em Novembro de 2018

 

 

 

Versão em PDF do original alemão de "Die Krise des Tauschwertes" [A crise do valor de troca]: https://www.exit-online.org/pdf/Robert_Kurz-Krise_des_Tauschwerts.pdf

 

Tradução inglesa "The Crisis of Exchange Value: Science as Productive Force, Productive Labor, and Capitalist Reproduction", no dossier da revista Mediations, nº 27, "Marxism and the

Critique of Value", p. 17-76. Online in: http://www.mcmprime.com/files/Marxism-and-the-Critique-of-Value.pdf

 

A crise do valor de troca", Editora Consequência, Rio de Janeiro, 2018    http://www.consequenciaeditora.net.br/p-11054623-CRISE-DO-VALOR-DE-TROCA,-A

 

 

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(1) in: Krisis Nr.12, online: https://exit-online.org/textanz1.php?tabelle=autoren&index=30&posnr=25&backtext1=text1.php. Trad. Port.: O valor é o homem. Teses sobre a socialização pelo valor e a relação entre os sexos, in: http://www.obeco-online.org/rst1.htm

 

(2) Ernst Lohoff; Norbert Trenkle: Die große Entwertung – Warum Spekulationen und Staatsverschuldung nicht die Ursache der Krise sind [A grande desvalorização. Porque não são a especulação e a dívida pública as causas da crise], Münster 2012.

 

(3) Robert Kurz: Der Kollaps der Modernisierung – Vom Zusammenbruch des Kasernensozialismus zur Krise der Weltökonomie, Leipzig 1994, 1ª ed. 1991. Trad. port.: O Colapso da Modernização. Da derrocada do socialismo de caserna à crise da economia mundial, São Paulo, 1999. Ver também a entrevista: „Der Kollaps der Modernisierung“ – 15 Jahre später, https://exit-online.org/textanz1.php?tabelle=autoren&index=29&posnr=168&backtext1=text1.php.  Trad. port.: "O colapso da modernização" - 15 anos depois, in: http://www.obeco-online.org/rkurz180.htm. E ainda uma entrevista dada no início dos anos de 1990 (audio): https://archive.org/details/InterviewMitRobertKurzUberInEinderStortendKapitalismus

 

(4) Robert Kurz: Geld ohne Wert – Grundrisse zu einer Transformation der Kritik der Politischen Ökonomie, Berlin 2012. Trad. port.: Dinheiro sem Valor. Linhas gerais para uma transformação da crítica da economia política, Antígona, Lisboa, 2014.

 

(5) Ver o artigo de Leni Wissen: „Die sozialpsychologische Matrix des bürgerlichen Subjekts in der Krise – Eine Lesart der Freud’schen Psychoanalyse aus wert-abspaltungskritischer Sicht“, in: exit! – Krise und Kritik der Warengesellschaft Nr. 14, online: https://exit-online.org/textanz1.php?tabelle=autoren&index=20&posnr=561. Trad. port.: A matriz psicossocial do sujeito burguês na crise, online: http://www.obeco-online.org/leni_wissen.htm 

 

(6) Estas críticas foram novamente criticadas no seu conjunto por Kurz nos fragmentos: „Krise und Kritik I/II“, in: exit! – Krise und Kritik der Warengesellschaft Nr. 10/11. Trad. port.: Crise e crítica, online: http://www.obeco-online.org/rkurz409.htm e http://www.obeco-online.org/rkurz410.htm 

 

(7) E precisamente em: Initiative Sozialistisches Forum (Hg.): Der Theoretiker ist der Wert – Eine ideologiekritische Skizze der Wert- und Krisentheorie der Krisis-Gruppe [O teórico é o valor – Um esboço de crítica da ideologia da teoria do valor e da crise do grupo Krisis], 1. unver. Nachdruck, Freiburg 2006, 1ª ed. Freiburg 2000, p.81.

 

Original Vorbemerkung zur „Krise des Tauschwerts“ von Robert Kurz in: www.exit-online.org. Tradução de Boaventura Antunes

 

http://www.obeco-online.org/

http://www.exit-online.org/