Timm Graßmann

DEPOIS DE NÓS, O DILÚVIO

Recensão do livro de Kohei Saito: Natur gegen Kapital. Marx’ Ökologie in seiner unvollendeten Kritik des Kapitalismus [A Natureza contra o Capital. A ecologia de Marx em sua inacabada crítica do capitalismo].

 

Figuras supostamente ligadas a Marx, segundo se ouve dizer, alertaram para a ecologia como "o novo ópio das massas", (1) afirmaram que "[a] natureza não existe" (2) e explicaram que "a sustentabilidade como tal não é um tema de esquerda" (3). Em sua presente dissertação, Kohei Saito remove essas excentricidades, mostrando que às vezes vale a pena dar outra olhadela ao trabalho inacabado de Karl Marx. E consegue provar que o "casamento infeliz" entre marxismo e ecologia não pode ser estabelecido a partir da própria obra de Marx. Não só Marx não era um modernista ingénuo, que tivesse sido porta-voz dum produtivismo sem ressalvas e glorificado a era industrial, mas "o verdadeiro objectivo da crítica da economia política de Marx não pode ser entendido correctamente [...] se se negligenciar o aspecto da ecologia" (p. 14). Saito acabou por realizar o seu ambicioso projeto: retratar com tal detalhe o pensamento ecológico de Marx, com base na sua crítica da economia, é uma novidade. (4)

Na primeira parte (capítulos 1 a 3), Saito traça o desenvolvimento da ecologia em Marx, desde os primeiros trabalhos até O Capital. Depois de destacar, no primeiro capítulo, a importância da relação homem-natureza para a teoria da alienação de Marx, mais filosófico-antropológica ("humanismo = naturalismo"), ele desenvolve, no segundo capítulo, como o conceito científico-natural de metabolismo foi uma categoria central em Marx. Contra a influente interpretação de Alfred Schmidt (p. 87-96), usa o 'metabolismo' de Marx não como um conceito “especulativo”, mas na sua dimensão fisiológica e de ciência social: Marx compreende a 'natureza' não como entidade ontológica, separada, “indissolúvel” e “não-determinável", mas na inter-relação historicamente mutável com a sociedade (5), pelo que o retorno a uma 'natureza como tal', supostamente não tocada pelo ser humano, é ilusório. Mas daqui também decorre a exigência de explorar e entender como a natureza concreta (o solo, as plantas, o ar) poderia ser alterada e destruída, preservada ou elevada a um nível superior pela influência social. Schmidt, porém, juntou sem razão Marx a materialistas da filosofia natural e a mecanicistas como Jacob Moleschott e Ludwig Feuerbach, minimizando o seu comprovado estudo intensivo de cientistas da natureza, como Justus von Liebig.

Saito não se limita a compilar numerosas observações de Marx, espalhadas pela sua obra, sobre a degradação do ambiente, mas, no terceiro capítulo, estabelece uma conexão interna entre a ecologia e a crítica da economia de Marx. Apoia-se para o efeito na interpretação 'japonesa' de Marx, de Samezō Kuruma (6) e Teinosuke Ōtani, infelizmente pouco conhecida entre nós, para a qual são centrais conceitos como "trabalho privado", "subjectivação do valor como capital" e "coisificação da pessoa", adicionando-lhes uma dimensão ecológica. Assim, a dominação objectivada do capital terá de mediar deficientemente o metabolismo entre seres humanos e natureza, revelando-se incapaz de ter atenção ao lado material, embora este contribua para a produção. Uma sociedade de produtores privados, produzindo cegamente por si e entre si independentes, cujos produtos do trabalho, dado o seu isolamento mútuo, assumem a forma de mercadoria, e cuja sociabilidade, portanto, apenas se constrói no mercado para onde eles levam as mercadorias, exige o valor como regulador da produção. Forçados a produzir para o mercado, o comportamento dos produtores é determinado pelos seus próprios produtos, pelas coisas, e o valor obtém um poder social real, que nenhuma vontade humana ou do Estado poderá romper. Enquanto objectivação do trabalho abstracto, força de trabalho e recursos naturais são para o valor simplesmente "custos supérfluos" que é preciso minimizar (p. 122).

O mais tardar desde que o valor deixou de se apresentar apenas como mediador da produção, mas foi subjectivado como capital, ou seja, desde que se passou produzir por amor do valor e da sua máxima valorização quantitativa, todos os aspectos materiais da produção se tornaram secundários, e o metabolismo social com a natureza foi reorganizado sob o único ponto de vista de espremer o máximo de trabalho abstracto (p. 137/138). Convincente é a interpretação de Saito do livro primeiro de O Capital, onde Marx mostrou detalhadamente como o capital, enquanto "sujeito automático", (p. 138) perturba o metabolismo ecológico: primeiro, do lado das pessoas, no capítulo muitas vezes maltratado sobre a jornada de trabalho (Marx fala da "extensão 'cruel e incrível' do dia de trabalho", (7) que esgota o trabalhador física e mentalmente); depois, do lado da natureza, na forma do esgotamento do solo e da destruição dos recursos naturais. A exposição de Marx culmina com as últimas palavras do capítulo "Grande Indústria e Maquinaria", que não elogiam o desenvolvimento das forças produtivas pela burguesia, mas sobriamente afirmam: "Cada progresso da agricultura capitalista não é só um progresso na arte de saquear o trabalhador, mas ao mesmo tempo na arte de saquear o solo, pois cada progresso no aumento da fertilidade por certo período é simultaneamente um progresso na ruína das fontes permanentes dessa fertilidade . [...] Por isso, a produção capitalista só desenvolve a técnica e a combinação do processo de produção social socavando simultaneamente as fontes de toda a riqueza: a terra e o trabalhador." (8) Contra todos os sonhos de um 'capitalismo verde', diz Saito com Marx, não há nenhuma reabilitação do metabolismo entre o ser humano e a natureza, enquanto persistir a dominação coisificada do capital, e a produção de riqueza material for apenas um efeito colateral da verdadeira finalidade da produção.

Além de incorporar a compreensão de Marx da destruição capitalista da natureza na sua teoria do valor, o segundo grande novo serviço de Saito é a reconstrução, na segunda parte (capítulos 4-6), dos extensos trechos inéditos de Marx sobre química agrícola, elaborados entre 1865 e1868. Em vez de lamentar em abstracto o facto de o ser humano dominar ou destruir 'a natureza', Marx virou-se para as ciências naturais, para entender, com a ajuda delas, como exactamente as determinações formais económicas do modo de produção capitalista desestabilizam o metabolismo social com a natureza concreta. Os estudos de ciências naturais de Marx, após 1867, não indicavam nenhuma "fuga de O Capital", pelo contrário, a sua crítica da economia política exigira esses estudos. Não um desvio de O Capital, portanto, mas um aprofundamento.

Como lembra Saito, Marx leu pouco antes da publicação de O Capital a sétima edição da Química Agrícola (1862) de Justus von Liebig, cuja quarta edição ele já recebera antes. Liebig, que primeiro ainda acreditava poder deter o esgotamento do solo, na época progressivo e amplamente discutido, através do uso de fertilizantes químicos – a 'oficina do mundo' britânica dependia de importações maciças de excrementos de aves do Peru (guano) (10) – agora, na sétima edição, irradiava pessimismo: Tendo em vista a moderna "economia predatória" (Liebig), que viola as leis naturais da fertilidade do solo, devido à expansão urbana e ao desenvolvimento da oposição cidade-campo, o solo esgotar-se-ia inevitavelmente. Pois os componentes do solo usados na cidade não retornavam ao solo, mas acabavam como esgotos nos sujos rios das metrópoles. Liebig previa uma época de fome, guerras pelos recursos e até mesmo a queda da civilização, se o problema do esgotamento do solo não fosse posto sob controlo (p. 257).

Depressa se desenvolve por todo o mundo uma discussão acalorada sobre as teses de Liebig. Esta constelação discursiva sobre a química agrícola de Liebig, reconstruida por Saito, permite reconhecer, na sua criação, quase todas as posições ainda hoje encontradas na 'questão ambiental'. Aí estão as variedades da visão do mundo burguesa: o antropologismo, na figura de John Stuart Mill (p. 180/181), que vê agora confirmada por Liebig a "lei do rendimento decrescente do solo" formulada por David Ricardo, e que afirma o retrocesso linear da produtividade do solo, tornado cada vez menos rentável, como lei natural válida para todas as sociedades; depois, o "fantasma malthusiano", para o qual a população é cada vez maior e os recursos cada vez mais escassos, e que entende o 'consumo' como o princípio e o fim de todos os problemas ambientais; e, finalmente, aqueles, como Wilhelm Roscher, para quem, apesar do esgotamento, tudo está em perfeita ordem, pois com o declínio dos rendimentos do solo também os preços dos produtos agrícolas subiriam, razão pela qual afluiria mais capital para a agricultura e aumentaria a produtividade aí – ou seja, o mercado já vai regular tudo (p. 187/188).

Contra a ignorância burguesa, surgem o americano Henry Carey, crítico da Inglaterra, e o seu seguidor Eugen Dühring, nacionalista alemão e anti-semita, vendo ambos no comércio dos seus países com a Grã-Bretanha a causa última da ruptura dos circuitos materiais, que eles pretendem deter por meio de um "desenvolvimento harmonioso" do "trabalho pátrio" (Dühring), promovido por uma política aduaneira nacional proteccionista (pp. 256-260). Através desta fascinante vista de olhos sobre as teorias ecológicas do século XIX, Saito deixa claro que armadilhas pretende Marx evitar – ele tinha lido estes e outros autores muito detalhadamente – e que posições não são as de Marx.

O facto de Marx, na segunda edição de O Capital (1872), ter revisto a sua apreciação anterior de Liebig, e se ter expressado mais cautelosamente sobre o seus "méritos imortais" (11), explica Saito pela circunstância de Marx ter desenvolvido o campo de pesquisa sobre a teoria de Liebig e assim a ter relativizado. Decisiva, aqui, terá sido a teoria das alterações climáticas do agrónomo de Munique e crítico de Liebig, Carl Fraas. (12) Marx apenas num lugar falou, directamente e quase eufórico, das suas relações com Fraas (13), mas deixou uma infinidade de excertos das suas obras. Fraas parece ter um duplo significado para Marx.

Com base na sua crítica a Liebig, de que a análise química dos constituintes do solo não poderia sozinha explicar as condições de crescimento das plantas, dado que a erosão do solo será em grande parte determinado pelo clima local, Fraas reconhece no aluvião (terra, areia e massas rochosas transportadas pela água) um mecanismo de autopreservação da natureza e da sua fertilidade. Fraas propõe um aluvião artificial, através da construção de barragens e da regulação da água dos rios, o que não esgotaria violentamente as forças da natureza, mas as regularia. Com este arranjo delicado do metabolismo social com a natureza mostra Fraas que este não é necessariamente destrutivo, mas pode ser configurado sustentavelmente (p. 276/277).

Em segundo lugar, Fraas é "darwinista antes de Darwin" (14). Um elogio, porque a princípio Marx ficou entusiasmado com Darwin, por este ter provado uma história e uma dinâmica histórica na natureza. Contudo, enquanto a natureza em Darwin, embora ele projecte nela a luta hobbesiana de todos contra todos, é tão estável como o padrão-ouro, tendendo o seu desenvolvimento para a adaptação e para o equilíbrio harmonioso (apesar da concorrência), como a economia de mercado nos modelos económicos, há uma consciência de crise em Fraas, que prova que a mudança climática pode ser produzida ao longo de séculos pela actividade humana, ainda que não intencionalmente. O seu estudo sobre O clima e a flora ao longo dos tempos (1847) revela que o espaço mediterrânico, da Pérsia até ao sul da Itália, foi arruinado pela antiga civilização, uma vez que o desmatamento generalizado destruiu o clima local e, assim, o solo e o fornecimento de água – o que deixou atrás de si desertos e forçou as plantas locais a migrar para Norte (p. 277ss.). Segundo Fraas, isso poderia repetir-se a qualquer momento e em qualquer lugar; como Liebig, ele adverte sobre o risco de decadência da civilização pelo esgotamento do solo.

O facto de Marx atribuir a Fraas uma "tendência socialista inconsciente" é interpretado por Saito no sentido de que Marx define depois como tarefa central do comunismo a reabilitação do metabolismo social com a natureza: "inconsciente", porque, "ele [ Fraas], como burguês, claro que não chega" (15) a compreender a necessidade dessa reabilitação. Marx confirma assim Fraas no sentido de que nenhuma unidade não-contraditória do ser humano com a natureza existiu nas sociedades pré-modernas, mas essa perturbação é transformada e reforçada no capitalismo, uma vez que este reorganiza radicalmente o metabolismo do ponto de vista da valorização. A perturbação do metabolismo não é uma constante antropológica, mas, sem um programa agrário comunista, por Marx descrito já anteriormente como "o alfa e ómega da revolução vindoura", "o padre Malthus acaba por ter razão" .(16)

As principais linhas de argumentação, claramente apresentadas, fazem do trabalho de Saito um dos mais importantes livros sobre Marx dos últimos anos, constituindo uma nova obra de referência sobre o tema da ecologia em Marx, e certamente um dos melhores livros sobre a massa de excertos trazidos à luz do dia pela MEGA, que poderá abrir uma nova perspectiva sobre os trechos tardios de Marx acerca de geologia e química, ainda completamente inexplorados. Também vale a pena destacar o conhecimento de Saito: Ele avalia os sublinhados à margem nas cópias pessoais da biblioteca de Marx (p. 284-286), segue o rasto das alterações do texto nas edições de O Capital (p 252), demonstra erros de decifração nas MEW (p. 264), descobre, em análises históricas do conceito, que Marx encontrou o termo "metabolismo" pela primeira vez no livro Microcosmos (1851) do seu companheiro de Colónia, Roland Daniels (p. 79), e retira de Liebig a metáfora rica em consequências "composição orgânica" (do solo). Tais descobertas não são para ele um fim em si, mas estão consistentemente embutidas na sua tese de que a ecologia não é um aspecto secundário insignificante da crítica de Marx à economia.

Essa avaliação não é obscurecida por algumas peculiaridades de interpretação. Por exemplo, Saito ignora antinomias pelo menos igualmente fundamentais das sociedades capitalistas. Se se tem entendido até agora por contradição entre 'matéria' e 'forma' a divergência entre riqueza material e valor, com o crescente desenvolvimento das forças produtivas no curso da acumulação de capital, de modo que cada vez menos trabalho é necessário para fazer uma unidade material, e esta, portanto, contém cada vez menos valor, o que tanto teria de lançar o modo de produção capitalista numa crise fundamental, como também deveria possibilitar uma associação de indivíduos livres, para além da pressão de "toda a merda económica" (Marx) e da carência generalizada, sobre isso não há qualquer referência em Saito. Ele diz, "que Marx tematiza toda a natureza, ou o 'mundo material', como o ponto de resistência contra o capital, em que mais claramente se manifesta a contradição da produção capitalista" (p. 14, destaque de T. G.). Será agora a natureza, porventura, o sujeito revolucionário, quando se diz que, segundo Marx, "a perturbação do metabolismo natural enfrenta em última instância como limite material a pulsão desenfreada para a acumulação de capital" e que seria ''aqui possível o rebentar do capitalismo"? O próprio autor exclui isso, mas também falha em explicar porque deveria ser a contradição ecológica a escolhida para evocar a consciência crítica (e não a crítica de que o capitalismo fabrica escassez no meio da abundância). (17)

Como Saito não trata a dinâmica da acumulação do capital, ele (ainda) não vê que a partir daqui pode-se pensar numa teoria do desenvolvimento histórico da destruição da natureza. Ele consegue verificar que o metabolismo social com a natureza é necessariamente arruinado pelo capital, mas não consegue indicar uma tendência do dano. É verdade que apenas uma investigação científica precisa pode determinar como essa perturbação funciona, (18) mas, relacionando a importância crescente da produção de mais-valia relativa, pode-se possivelmente derivar uma tendência. O próprio Marx tinha colocado as considerações mostradas na nota de rodapé 7 no contexto da "produção de mais-valia relativa", isto é, da geração de mais-valia através da redução do tempo de trabalho necessário. O aumento da produtividade leva a uma redução no valor por unidade material, que deve ser compensada pelo aumento do output e, portanto, pelo aumento do consumo de material, acelerando a destruição ambiental. Esta é também a razão para os vários efeitos de ricochete: os recursos disponibilizados através da redução do consumo ou da reciclagem apenas aumentam a mais-valia relativa – economizar recursos seria ecologicamente benéfico apenas numa produção social consciente. (19)

A tese de Saito de que Marx, que ainda no Manifesto do Partido Comunista celebrava a burguesia por sua "subjugação das forças da natureza" e pelo "cultivo de continentes inteiros", (20) se afastou cada vez mais, com o desenvolvimento da sua crítica da economia política, do irremediável optimismo do progresso e do fetichismo da forças produtivas, tal tese é uma crítica mordaz ao marxismo tradicional, para o qual as considerações ecológicas eram estranhas. O próprio Marx já havia declarado, em 1845, que as "forças produtivas [...] sob propriedade privada se transformariam em forças destrutivas". (21) Mas, mesmo tendo Marx sido sempre céptico sobre os supostos "efeitos civilizadores" do capitalismo, Saito subestima o facto de que Marx, mesmo naquele tempo, andava em busca do aumento das forças produtivas na agricultura, para uma base tecnológica alternativa de uma associação de indivíduos livres. Em seus excertos do livro de William Hamm Equipamento e máquinas agrícolas da Inglaterra, Marx mostra-se impressionado com o modo como as mais recentes máquinas agrícolas tornam o trabalho humano supérfluo. (22) E, mesmo nas frases escritas imediatamente antes das 'últimas palavras' do capítulo sobre a maquinaria, citadas acima, Marx não está porventura esquizofrénico, (23) pelo contrário, mantém que a ciência e a tecnologia têm potenciais que poderiam ser propícios para a expansão das capacidades produtivas, mas que são destrutivos em sua forma e aplicação capitalistas.

Contra uma leitura de Marx excessivamente modernista, Saito deixa claro que este não formulou qualquer teoria da liberdade individual absoluta, e não apenas contra a "idiotice da vida rural", mas também contra a destruição da vida física dos residentes urbanos. O comunismo não seria então o país da Cocanha, mas significaria organizar a sobrevivência. De que maneira poderia ser iniciada esta "revolução social radical, no sentido da criação consciente de uma estrutura económica totalmente diferente a nível global, com o propósito de regular sustentavelmente o metabolismo natural e social" (p. 110/111) é o que Saito sugere com uma "estratégia socialista" recomendada por Marx. Tal como foi posto um travão à destruição da força de trabalho, pela introdução da jornada de trabalho legal de 10 horas, que Marx elogiou com razão, Saito pede uma espécie de jornada de 10 horas ecológica (pp. 143/144, 301/302), que poderia ser pensada sob a forma de um limite superior para as emissões de CO2. Saito vê na regulamentação estadual a possibilidade de limitar a reificação. Porém, assim como "sob a pressão de uma jornada de trabalho mais curta" (25), ou seja, limitando a produção de mais-valia absoluta, apenas arrancou a "marcha tempestuosa" da produção de mais-valia relativa, também a exploração da margem de manobra ecológica (se é que existe, e não é reduzida por uma crise) apenas prolongaria as contradições. Além disso, parece logicamente impossível que o moderno "Estado do capital" (Johannes Agnoli), ele próprio dependente de uma acumulação de capital com sucesso, possa ser 'verde', se, como Saito assume, a destrutividade ecológica já espreita na forma da mercadoria e na inversão sujeito-objecto que lhe está subjacente.

À ausência da crítica do Estado mais uma vez corresponde uma interpretação obstinada da teoria do valor: Saito considera, assim, não apenas o trabalho concreto, mas também o trabalho abstracto como "material" e "supra-histórico". Isso certamente decorre da sua legítima crítica do marxismo ocidental, que interpretou mal a dimensão material em Marx, ou, como em Alfred Schmidt, a baniu do domínio da possibilidade de conhecimento como "ontologia negativa", assim tendo bloqueado o acesso à ecologia. Ele diz que o "conceito de trabalho abstracto como 'puramente social' tem consequências graves, porque seria muito mais difícil de explicar como a dominação, sob o capitalismo, do trabalho abstracto, que não possui nenhuma propriedade material, teria de perturbar mais que nunca diferentes aspectos do metabolismo entre o ser humano e a natureza." (p. 134) Eu não vejo a coisa assim, é simplesmente o trabalho concreto, que regula o metabolismo com a natureza em todas as sociedades, que apenas no capitalismo é reorganizado na perspectiva de espremer o máximo de trabalho abstracto. O conceito de trabalho abstracto pressupõe a divisão da sociedade em produtores de mercadorias separados uns dos outros: "Portanto, os homens não relacionam os seus produtos do trabalho entre si como valores por considerarem essas coisas meros invólucros materiais de trabalho humano da mesma espécie. Pelo contrário. É ao equiparar os seus produtos de diferentes espécies na troca como valores que equiparam os seus diferentes trabalhos como trabalho humano. Eles não sabem, mas fazem-no." (26) Para Saito parece que apenas a mediação dos trabalhos despendidos como particulares e a distribuição de seus produtos (num caso e noutro através do mercado, da troca, do valor) é o especificamente capitalista, e não já a abstracção das actividades humanas do seu conteúdo e da sua qualidade, consumada por amor da sua trocabilidade.

O mérito de Saito é mostrar que para a crítica do valor de Marx – bem ao contrário das afirmações citadas no início – a ecologia não é uma simples "contradição secundária" das sociedades capitalistas, e, além disso, também é com ela que a actual destruição ambiental pode ser entendida e explicada. Dado que a quebra dos ciclos materiais se globalizou, diversificou e acelerou (concentração de CO2 na atmosfera, desertificação, perda de biodiversidade, a acidificação dos oceanos, etc.), tanto mais importante é entender que responsável por isso não é nenhuma má vontade, nenhuma falta de tecnologia ou de conhecimento, e muito menos nenhum 'padrão de vida' muito alto, mas que isso é a consequência inevitável do princípio, a ser tomado à letra, do actual modo de produção: "Aprés moi le déluge".

Kohei Saito: Natur gegen Kapital. Marx’ Ökologie in seiner unvollendeten Kritik des Kapitalismus [A Natureza contra o Capital. A ecologia de Marx em sua inacabada crítica do capitalismo]. Frankfurt a. M. 2016: Campus. 330 Seiten. ISBN: 978-3-593-50547-3.

 

(1) Entrevista com Alain Badiou, Paris, Dezembro de 2007. In: Alain Badiou – Live Theory. Editado por O. Feltham. Londres 2008.

(2) Slavoj Žižek: Studenten haben meistens keine Ahnung [A maioria dos estudantes não tem qualquer ideia]. In: https://www.tagesspiegel.de/weltspiegel/sonntag/slavoj-iek-studenten-haben-meistens-keine-ahnung/8628378.html

(3) Chantal Mouffe: Democracy in need of emotion and confrontation. In: http://www.mo.be/en/article/democracy-need-emotion-and-confrontation.

(4) Moishe Postone já havia identificado uma "tensão" fundamental entre as considerações ecológicas e os imperativos da valorização do valor. Ver Moishe Postone: Zeit, Arbeit und gesellschaftliche Herrschaft. Eine neue Interpretation der kritischen Theorie von Marx. Freiburg 2003, p. 557-577. Trad. Port.: Tempo, Trabalho e Dominação Social. Uma nova interpretação da teoria crítica de Marx, Boitempo, São Paulo, 2014.

(5) Aqui pode-se complementar o exemplo vivo da "cerejeira", que "como quase todos os árvores de fruto foi transplantada para a nossa zona através do comércio apenas há alguns séculos, como se sabe" e que "portanto, só por esta acção de uma determinada sociedade numa determinada época foi dada à 'certeza sensível' de Feuerbach" (Karl Marx, Friedrich Engels: A Ideologia Alemã, MEGA I/5, página 20). Lembre-se também a fascinação de Marx pela transformação de paisagens como a Campagna di Roma (ibid., p. 21) ou a Romagna (MEGA IV/p. 292).

(6) Ver Kuruma-Archiv: https://www.marxists.org/archive/kuruma/index.htm sowie: Samezo Kuruma: Marx’s Theory of the Genesis of Money: How, Why and Through What is a Commodity Money. Denver 2008.

(7) Karl Marx: O Capital. Crítica da economia política. Livro 1. Em: MEGA II/6. p. 264.

(8) Ibid. p. 477.

(9) Face à descoberta da ecologia em Marx, outros despejam o bebé com a água do banho. Como se nunca tivesse havido em Marx uma crítica da fórmula trinitária – ou seja, da ideia fetichista de que terra, capital e trabalho seriam os três factores de produção de igual valor – recentemente Carl-Erich Vollgraf afirma que o Marx tardio teria reconhecido "o papel do solo como um factor independente de criação de valor, além do trabalho humano", tendo assim questionado a "validade irrestrita da sua teoria do valor-trabalho". (Carl-Erich Vollgraf: Marx über die sukzessive Untergrabung des Stoffwechsels der Gesellschaft bei entfalteter kapitalistischer Massenproduktion [Marx sobre o enfraquecimento gradual do metabolismo da sociedade na produção em massa capitalista desenvolvida] em: Beiträge zur Marx-Engels-Forschung. Neue Folge 2014/15. Hamburg 2016. p. 106-132, aqui: p. 129.) Vollgraf dá como prova, entre outros, a formulação de Marx contra o fetiche do trabalho da social-democracia alemã na Crítica ao Programa de Gotha: "O trabalho não é a fonte de toda a riqueza. A natureza é igualmente a fonte de valores de uso (são eles que constituem a riqueza material!) […]" (MEGA I / 25, p. 9). No entanto, Marx é aqui inteiramente coerente com a sua distinção entre valor, como forma da riqueza capitalista (criada pelo trabalho abstracto), e riqueza objectiva, concreta ou material (criada pelo trabalho concreto ou pela natureza, sob a forma de, por exemplo, o ar, a água, o solo, matérias-primas). O Capital recusa-se a conceber o mais-produto social de maneira diferente da forma do valor, e recusa-se a conceber a natureza de maneira diferente da doação de presentes sem custo e a incluí-la no seu cálculo de valor. Se Vollgraf tivesse razão, seria verdadeiro para Marx o que este notou uma vez sobre a frase de John Ramsay MacCulloch "Em seu estado natural o material é sempre destituído de valor": "Vê-se como mesmo um MacCulloch está acima do fetichismo do 'pensador' alemão que declara 'o material' e ainda meia dúzia de outras pândegas como elementos do valor'. (Karl Marx: Para a Crítica da Economia Política, Primeiro caderno, em: MEGA II / 2, p. 114)

(10) Ver também Kurt Jacob: Landwirtschaft und Ökologie im „Kapital“ [Agricultura e Ecologia em O Capital]. Em: PROKLA Jg 27, 1997. H. 3. pp. 433-450.

(11) Marx: O Capital. Livro. 1. MEGA II/6.p. 477.

(12) Sobre isso ver também Kohei Saito: Marx’ Fraas-Exzerpt und der neue Horizont des Stoffwechsels [O excerto de Fraas em Marx e o novo horizonte do metabolismo]. In: Marx-Engels-Jahrbuch 2014. p. 117-140.

(13) Ver Marx para Engels, 25 de Março de 1868. Em: MEW. Vol. 32. pp. 52/53.

(14) Ibid. p. 52.

(15) Marx para Engels, 25 de Março de 1868. Em: MEW. Vol. 32, p.53.

(16) Marx para Engels, 14 de Agosto de 1851. In: MEGA III/4. p. 183.

(17) Como o exemplo de Dühring mostra, naturalmente que também é possível um processamento regressivo dessa contradição. Ernst Moritz Arndt já havia rejeitado a destruição da natureza por considerações nacionalistas, supondo que, com as alterações climáticas provocadas pelo desmatamento, também o "carácter nacional" alemão mudaria. Veja-se Engelhard Weigl: Wald und Klima: Ein Mythos aus dem 19. Jahrhundert [Floresta e Clima: Um Mito do Século XIX]. Em: Humboldt na Net. Bd. 5. 2004. No. 9.

(18) Talvez um estudo futuro possa esclarecer, por exemplo, se o esgotamento do solo é "apenas" a manifestação da destruição do metabolismo no século XIX, ou se esse problema está latente e ainda não foi resolvido. Em primeiro lugar, dir-se-ia que a quebra ecológica piorou, porque hoje não só os seres humanos, mas também os animais, na pecuária maciça em grandes partes do planeta, são separados do solo, o que aumentou a pressão para o uso de fertilizantes. No entanto, com a aplicação do processo de Haber-Bosch (fixação de azoto do ar para a produção de fertilizantes artificiais), foi posta em movimento uma produção de fertilizantes aparentemente inesgotável, com a qual um esgotamento do solo de longo alcance pôde ser evitado até agora. Por isso, o termo "sobrefertilização" faz carreira e a produção de fertilizantes constitui de longe a maior parcela das necessidades de energia na agricultura, o que aumentou maciçamente as emissões de CO2 da indústria agrícola. Assim, a crise do solo teria sido adiada.

(19) Ver Claus-Peter Ortlieb: Uma contradição entre matéria e forma, in: EXIT! nº 6, 2009. pp. 23-54; Postone: Zeit, Arbeit und gesellschaftliche Herrschaft [Tempo, trabalho e dominação social] (nota de rodapé 4). Págs. 469-472.

(20) Karl Marx, Friedrich Engels: Manifesto do Partido Comunista. Em: MEW. Vol. 4, p 467.

(21) Marx, Engels: A Ideologia Alemã. MEGA I/5. p. 88.

(22) Ver Karl Marx: Caderno de excertos 1865/66. In: IISG, Espólio de Marx-Engels, Sign. B 98. p. 344: "A máquina ceifeira substitui o trabalho de 30 jornaleiros".

(23) "Na esfera da agricultura, a grande indústria actua de modo mais revolucionário à medida que aniquila o baluarte da velha sociedade, o 'camponês', substituindo-o pelo trabalhador assalariado. As necessidades de revolucionamento social e as antíteses do campo são, assim, niveladas às da cidade. No lugar da produção mais rotineira e irracional, surge a aplicação consciente e tecnológica da ciência. A ruptura do laço familiar original de agricultura e manufatura, que envolvia a configuração infantilmente não desenvolvida de ambas, é completada pelo modo de produção capitalista. Mas ele cria, ao mesmo tempo, os pressupostos materiais de uma síntese nova, mais elevada, da união entre agricultura e indústria com base em suas configurações antiteticamente elaboradas.” (Marx: O Capital, Livro 1, MEGA II/6, p. 476

(24) "Com a preponderância sempre crescente da população urbana, que se amontoa em grandes centros, a produção capitalista, por um lado, acumula a força motriz histórica da sociedade, mas, por outro, perturba o metabolismo entre o homem e a terra, isto é, o retorno à terra dos componentes da terra consumidos pelo homem sob forma de alimentos e vestuário, ou seja, a eterna condição natural de fertilidade permanente do solo. Com isso, ela destrói simultaneamente a saúde física dos trabalhadores urbanos e a vida espiritual dos trabalhadores rurais.”. (Ibid.)

(25) Ibid. p. 419.

(26) Marx: O Capital, Livro 1. MEGA II/6. Pp 104/105.

 

Original Nach uns die Sintflut in: http://www.exit-online.org. Reedição revista do texto publicado originalmente em Marx-Engels-Jahrbuch 2015/16, pp. 271-280. Tradução de Boaventura Antunes

http://obeco-online.org/

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