EXIT! Crise e crítica da sociedade da mercadoria, nº 15 (Abril 2018)

 

Índice e Editorial

 

 

Índice

Editoral

Capacidade de acção – e em concreto! Carta aberta às pessoas interessadas na EXIT! na passagem de 2017 para 2018

Aos/Às nossos/as assinantes e compradores/as

Claus Peter Ortlieb: Ilusão matemática

Roswitha Scholz: O fim da pós-modernidade e a ascensão de "novos" pseudo-realismos. Objeções da crítica da dissociação-valor a um novo realismo, a um realismo especulativo e ao aceleracionismo

Thomas Meyer: Big Data e o novo mundo inteligente como estádio supremo do positivismo

Robert Kurz: Identidade zero

Andreas Urban: Velhice (envelhecimento) e dissociação-valor. Linhas gerais de uma teoria crítica da velhice e do envelhecimento na sociedade produtora de mercadorias

Thomas Meyer: Homem e Máquina – Reflexões sobre o androcentrismo nas ciências tecnológicas

 

Editorial

A AfD entrou no Parlamento Alemão com quase 13 por cento no Outono de 2017. Um resultado eleitoral não tão surpreendente. (1) A viragem à direita e o sucesso eleitoral dos partidos populistas de direita e neofascistas continuam sem parar. Ao mesmo tempo, soaram contra eles as correspondentes revoltas hipócritas dos democratas burgueses. Acima de tudo, a sua falsidade torna-se clara no facto de estes valentes democratas não poderem conceber aqueles como os seus próprios parentes. Sua característica comum é, sem dúvida, a submissão ao imperativo de valorização do capitalismo. A democracia, portanto, dificilmente poderia ser considerada mais que um polo contrário positivo do populismo de direita, uma vez que o "estado de excepção", ou uma possível ditadura de crise, já estão incluídos na “lógica da dominação da democracia". (2) A única questão é quem – quando necessário – está disponível para ser o cão sanguinário. E a disponibilidade para impor o estado de excepção é o pressuposto tácito da "capacidade de governo" em geral. O neofascismo pode, portanto, ser perfeitamente entendido como continuação do neoliberalismo e da administração de crise repressiva e, ou seja, da democracia por outros (ou pelos mesmos) meios – e precisamente sob condições severas de crise. Além disso, a diferença entre a AfD e os outros partidos é apenas gradual. Se os "velhos partidos" se apresentam como um baluarte da democracia contra o racismo, etc., isso não é para levar a sério. As posições da AfD ou de outros partidos de direita encontram-se sem problemas em representantes dos outros partidos, sejam eles Boris Palmer ("Nós não podemos ajudar toda a gente"), a ordo-liberal Sahra Wagenknecht, com suas posições "nacional-sociais" (4), o agitador da frente transversal Oskar Lafontaine, (5) ou Christian Lindner, que também assumiu posições da AfD na campanha eleitoral de 2017. Em última instância, a AfD apenas terá acelerado a viragem à direita dos outros partidos, ou, mais precisamente, o seu vir a si repressivo.

Nas condições da crise, do aumento da produção de supérfluos, do colapso de regiões inteiras do mundo, é bastante consequente que os partidos democráticos convirjam com a extrema-direita no mesmo molho acastanhado: "Frente transversal em toda a parte" (Daniel Späth), por assim dizer. Se não se questiona as categorias reais capitalistas, insiste-se que as pessoas têm de provar o seu valor como contentores de força de trabalho; daí resulta que elas já perderam a sua humanidade, se deixam de poder vender rentavelmente a sua força de trabalho, sendo a consequência logicamente desumana. A consciência burguesa comum aos partidos, portanto, assume o ponto de vista de se submeter à situação de facto: não é o capitalismo que é objecto de crítica, mas são os ditos supérfluos que se tornam "factores de perturbação" e "problema de segurança." A naturalização da relação de capital, da dissociação sexual e do trabalho não está longe, e é sempre mobilizada com gosto como justificação, quando a "segunda natureza" entra em crise. Assim, os fluxos globais de refugiados surgem frequentemente incompreendidos, como uma espécie de catástrofe natural.

Pressupondo o capitalismo como um "facto natural", é realmente verdade que "nós" não podemos ajudar "toda a gente". Sob as condições do capitalismo, a ajuda bem-sucedida pressupõe financiabilidade e uma integração bem-sucedida no mercado de trabalho. E, sem dúvida, existem limites imanentes para isso – especialmente em tempos de colapso da soberania nacional. A "retórica ingénua das boas pessoas", por si só, dificilmente poderá mudar isso. Mas essa ingenuidade não tem origem na pretensão de não ser um idiota racista, mas sim na insuficiência da crítica das condições que causam esses fluxos de refugiados.

As novas e novíssimas direitas, pelo contrário, submetem-se a esta realidade e estão mesmo orgulhosas de terem a "realidade" do seu lado, como um "aliado", como enfatiza Martin Sellner, o spiritus rector do movimento identitário em países de língua alemã. (6) O gesto da nova direita é justamente lembrar os supostos factos, sem que estes factos (se existirem!) sejam relacionados com a dinâmica da valorização capitalista. As novas direitas, com a sua pretensão de "nova objectividade", como antípodas da arbitrariedade pós-moderna, são em certo sentido positivistas da agitação política e racista. (7) O modelo para o efeito, como se sabe, vem sendo dado há anos pelo "quebrador de tabus" Thilo Sarrazin.

Não menos falsos e inimigos da humanidade do que os democratas acastanhados são aqueles que colocam sob condição de financiamento a paragem da destruição ecológica da Terra, que leva precisamente a um aumento cada vez maior de "refugiados do clima". Certamente que a destruição ecológica é objecto de queixa de vários eco-social-democratas: mas também a solução da crise ecológica se pretende que esteja na própria economia de mercado; seria preciso apenas fazer investimentos apropriados, para que a maravilhosa Alemanha, bio e de cereais integrais, pudesse finalmente tornar-se a "campeã mundial de exportação" de produtos sustentáveis!

Mas nenhum facto pode ser exposto, como recentemente a morte de insectos, a poluição dos oceanos, etc., sem que esse facto seja recebido com um encolher de ombros. No fim também perante tais questões catastróficas se prefere falar de uma suposta eco-histeria da esquerda. A pós-verdade e a ignorância do óbvio são o credo não reconhecido das pós-democracias capitalistas tardias como tais, e não apenas uma questão de Donald Trump, que afirmou, por exemplo, que as alterações climáticas são apenas uma invenção da China! (8) São principalmente o credo daqueles que pretendem continuar a acreditar como antes na sua maravilhosa economia de mercado. Tudo se resume ao facto de se agir na ignorância, como se fosse possível a "normalidade" usual, um "mais do mesmo". Além disso, as medidas para remediar a extinção de espécies, etc. revelam-se geralmente vazias e ineficazes porque, como de costume, exigem capacidade de financiamento e, portanto, não podem ameaçar os lucros, nem os sagrados "postos de trabalho."

Os desastres e catástrofes sociais e ecológicos e a barbárie daí resultante não diminuirão; cessará a capacidade reprodutiva capitalista (e provavelmente também a ecológica) de cada vez mais regiões do mundo. Nenhuma normalidade burguesa será restaurada, por muitos partidos fascistas ou populistas de direita que surjam para o efeito, com a sua ilusão identitária de "resgate" do respectivo país ou "povo" (situação em que, certamente, serão "caçadas com sucesso" outras pessoas). (9) Em vez disso, haverá cada vez mais "Estados falhados". No final, tudo se resume a uma guerra civil mundial, que há muito tempo se tornou realidade em muitas partes do mundo, como se tem enfatizado repetidamente nesta revista. As regiões de um "interior" ainda não colapsado estão a tornar-se cada vez mais reduzidas; os centros capitalistas têm vindo a aproximar-se cada vez mais da periferia. Por último, mas não menos importante, o conflito na Ucrânia mostrou que um “Estado falhado” não tem de estar a milhares de quilómetros de distância, mas pode estar muito próximo.

As razões para a fuga também não diminuirão. A onda de refugiados, como resultado do terrorismo do Estado Islâmico e da guerra na Síria, a partir de 2015, poderá ter sido apenas o começo. Abstraindo do facto de que, no futuro, não haverá falta de guerras como razão para a fuga, grandes multidões serão obrigadas a fugir devido a catástrofes ecológicas e em consequência das alterações climáticas. (10) Por exemplo, já foi descrito há vários anos que o maior lago do Irão, o lago Úrmia, está a secar. Mais uma vez, essa catástrofe ecológica (que é apenas uma entre muitas) está relacionada com vários projetos de barragens e de irrigação, isto é, com a dominação capitalista da natureza. O total desaparecimento do lago teria por consequência a fuga de cerca de cinco milhões de pessoas. (11) Além disso, grandes partes do Médio Oriente se tornarão inabitáveis devido às alterações climáticas; regiões onde vivem centenas de milhões de pessoas! (12) Igualmente fatais seriam as consequências da subida do nível do mar. Como seria, por exemplo, afundarem no mar partes significativas do Bangladesh, um país onde vivem mais de 150 milhões de pessoas. (13) Mas pior que isso seria provavelmente se a mudança do clima fizesse derreter os gelos do Himalaia, colocando em risco o abastecimento de água de milhares de milhões de pessoas! (14)

Sem a abolição do capitalismo, apenas um futuro distópico aguardará a humanidade. Mas poucas pessoas querem perceber essa consequência. Pelo menos, agora envergonha-se o foco da esquerda que há anos insistia precisamente em concentrar-se no "discurso", na "narrativa" e na "desconstrução" (a que seria preciso acrescentar os seus estados de alma encenados), sem prestar quase nenhuma atenção à realidade social; pretendia-se que não poderia haver uma crise final, nem um limite interno; para muitos uma ruptura categorial era sentida como a violação e destruição da sua identidade de esquerda, especialmente da marxista tradicional. Por isso a recepção séria de uma "grande teoria" crítica ao capitalismo, como a da exit!, continuou minoritária. Agora está claro que a crise, há muito negada ou minimizada, chegou ao centro "civilizado" há muito tempo, sendo a crítica pós-estruturalista, tão fraca e fixada no discurso, especialmente oprimida pela realidade, ficando num certo desamparo e impotência.

A incontornável necessidade da crítica categorial também é evidente em numerosas publicações dos últimos anos, que criticam o capitalismo num plano mais fenomenológico. Como exemplo representativo isso é ilustrado em Fabian Scheidler. Em seu best-seller Ende der Megamaschine [O Fim da Megamáquina] (agora 9ª edição) ele apresenta toda a extensa história de violência do capitalismo (o que é bastante louvável), mas, em parte, chega a sugestões práticas francamente embaraçosas, como a de que devia haver um "sistema monetário orientado para o bem-estar público", que poderia "substituir o actual casino financeiro". (15) Scheidler também escreve em seu presente livro, esboçando a crise do trabalho, "que o trabalho assalariado não apenas tende a ser mais mal pago, mas simplesmente está a desaparecer. [...] A razão disso está no facto de o trabalho humano, em todo o mundo, estar a ser substituído pela tecnologia. Este processo tem sido observado há muito tempo na indústria e na agricultura; no entanto, com a digitalização, também atingiu o sector dos serviços e, portanto, a classe média. [...] Essa tendência há muito tempo chegou à China, onde milhões de empregos também estão a ser substituídos por robôs e computadores. O produtor de telemóveis Foxconn, que sozinho emprega 1,3 milhões de pessoas, pretende no futuro funcionar em grande parte sem trabalhadores nas fábricas." (16) Embora alguns pontos de análise e crítica de Scheidler ao capitalismo possam ser pertinentes, ele acaba por não conseguir desprender-se das categorias reais capitalistas fundamentais, e assim pergunta, com toda a seriedade, "se o dinheiro não pode, pelo menos em parte, ser libertado das suas funções de dominação. Uma tentativa de dar ao dinheiro outras funções são as moedas regionais (!)." (17)

 

Isso mostra, mais uma vez, que não basta observar apenas o aspecto fenomenológico, ou empírico, da barbárie capitalista (por mais importante que isso seja), como Scheidler evidentemente faz. Uma crítica social empiricamente limitada, um "positivismo dos factos" continua a ser o pão nosso de cada dia. Isso também afecta irritantemente aqueles que procuram criticar fenómenos mais recentes, como é o caso do transumanismo. (18) Philipp von Becker, por exemplo, junta material diverso do "novo mundo inteligente" dos ideólogos transumanistas, mas permanece em contradições, sem se dar conta; antropologiza e, sem surpresa, também chega a propostas práticas pouco reflectidas, ou sem sentido. (19) A pretensão da exit!, pelo contrário, apenas pode continuar a ser a de mediar, em termos historicamente concretos, o plano empírico e fenomenológico com a dinâmica do processo capitalista, no sentido de uma "totalidade concreta" (Roswitha Scholz), quer se trate agora de uma crítica das ciências naturais, da tecnologia ou de críticas ao pós-estruturalismo. A empiria deve ser exposta e analisada no contexto de uma crítica e historicização das categorias reais capitalistas, e de uma crítica das formas de pensamento e de práxis que lhes estão associadas, sendo impostas aos seres humanos. Caso contrário, uma crítica fenomenologicamente limitada do capitalismo ameaça transformar-se numa reacção sinistra, como será muito claro, por exemplo, em Scheidler, com sua proposta de um sistema monetário orientado para o bem comum.

 

Nesta edição da exit! pretende-se, em tempos de pós-modernidade tardia e de ilusão identitária, formular a crítica da ciência e do conhecimento, das ciências matemáticas em geral e das mais recentes "tendências" na paisagem científica, sejam o "Big Data" ou o "novo realismo".

Claus Peter Ortlieb, com o texto "Ilusão matemática", volta ao fundamental de uma crítica das ciências matemáticas da natureza. (20) Sabe-se que, particularmente as ciências naturais, reivindicam para si uma objectividade que pretende nada ter a ver com os sujeitos investigadores, nem com o seu interesse social específico no conhecimento, nada ter a ver com a forma social; assume-se, por assim dizer, a "visão de lugar nenhum" (Elisabeth Pernkopf). (21) Ortlieb opõe-se à ideia, amplamente generalizada nas ciências exactas, de que a realidade é, na sua essência, de natureza matemática, de que a matemática e as leis formuladas na sua linguagem seriam, portanto, uma qualidade natural, independente das pessoas e do seu olhar sobre o mundo. A análise exacta do procedimento matemático-científico real prova que esta ideia está errada. Trata-se de um fetichismo, que projecta a sua própria forma de conhecimento historicamente específica e os seus instrumentos no objecto do conhecimento, fazendo daqueles propriedade deste. A conexão com o fetichismo da mercadoria é óbvia, e também pode ser mostrado que o conhecimento matemático da natureza tem como seu pressuposto a dissociação do feminino.

Roswitha Scholz aborda no seu artigo "O fim da pós-modernidade e o surgimento de novos pseudo-realismos" as muito discutidas linhas de pensamento de um novo realismo, de um realismo especulativo e do aceleracionismo. Embora com isso regressem ao centro das atenções conceitos como verdade, realismo, materialismo e "coisa em si" (Kant), ao contrário do desconstrucionismo até recentemente dominante, no entanto, significativamente, ao mesmo tempo voltam a ser cancelados, como se verá. A constituição fetichista da socialização capitalista-patriarcal, que é o que importa agora, permanece excluída. Em vez disso, tais linhas de pensamento voltam a cair de maneiras diferentes no positivismo, na racionalidade, na ideia de progresso e/ou num irracionalismo, ou seja, em arquétipos do pensamento burguês-patriarcal, que se alimenta em grande parte da dissociação do feminino. Elas provam ser completamente incapazes de contribuir com qualquer coisa para a transcendência da catastrófica socialização patriarcal capitalista. Tais movimentos de pensamento são, portanto, mais uma fuga à realidade do que uma preocupação em transcendê-la (criticamente). (22)

Em seu artigo "Big Data e o novo mundo inteligente como estádio supremo do positivismo", Thomas Meyer aborda uma tendência recente no panorama científico, para a "física social" e o Big Data, que são aplicáveis em quase toda parte. Os apologistas das "Big Data Sciences" e das suas aplicações esperam resolver assim todos os tipos de problemas. Esses apologistas mostram nisso um forte impulso tecnocrático e uma completa falta de compreensão da sociedade e da história. Assim, Meyer delineia a pretensão da física social, como ela é formulada principalmente pelo cientista da computação Alex Pentland. São ainda inventariadas várias possibilidades de aplicação do Big Data, implementadas, por exemplo, em muitos algoritmos. Por exemplo, na luta (preventiva) contra o crime e no prognóstico de possíveis “reincidentes”. A concluir são referidas várias críticas de esquerda (liberais) contra o Big Data, como as de Cathy O'Neils, que podem ser encontradas repetidamente no discurso público. Devido ao enorme barateamento dos sensores, câmaras, etc., todos os tipos de aparelhos podem ser equipados com eles e ligados à Internet. É assim que a "Internet das Coisas" é formada. Aqui, o mundo digital vem, por assim dizer, com inúmeras promessas de salvação: por exemplo, com "dispositivos inteligentes", pode economizar eletricidade e ajudar as pessoas a consumir "verde" e "sustentável". Também para a Internet das Coisas, "do novo mundo inteligente", são referidos críticos de esquerda (liberais), principalmente Evgeny Morozov, e mostradas as suas apreensões. Como regra, o indivíduo burguês é pressionado e ameaçado na sua maioridade e liberdade de escolha pelo Big Data e por uma infraestrutura cada vez mais "inteligente". No entanto, a digitalização não é vista por essas críticas no contexto da crise, da repressão social e da dinâmica da valorização capitalista em geral. Por princípio, o sistema de terror capitalista está armado digitalmente. A concluir, Meyer expõe algumas declarações da comunidade científica, que pretendem que, na sequência do Big Data, até é possível dizer adeus à necessidade de elaboração teórica e conceptual. Embora esta afirmação não não deixe de ser contestada na comunidade científica, pode-se aqui, de facto, falar, em citação livre de Lenine, do estádio supremo e último do positivismo. Não podia haver cabecinha académica mais vazia.

Este número da exit! inclui também a reimpressão de um texto de Robert Kurz, publicado já nos anos de 1990, (23) mas que hoje mantém toda a actualidade, face aos novos movimentos populistas de direita e neo-fascistas, e à crescente mania da identidade. No texto "Identidade zero", Kurz esboça as razões por que, na Modernidade, surge e se impõe às pessoas algo como "identidade", seja ela nacional ou cultural. O facto de certas tradições e práticas serem pavoneadas como identidade resulta, acima de tudo, da dinâmica da valorização capitalista, que tudo subverte, e do conteúdo vazio da abstracção valor. A identidade serve, por assim dizer, uma necessidade incontornável de estabilidade. Kurz também descreve a conexão entre forma do pensamento científico e forma do dinheiro, já sugerida por Sohn-Rethel. O pensamento científico, ou, mais precisamente, o pensamento matemático, segundo Kurz, também sujeita "a múltipla peculiaridade" do mundo "a uma abstracção estranha e exterior". Finalmente, Kurz constata que a pós-modernidade não formulou uma crítica consequente da identidade e da coerção identitária, mas procura reconhecer as múltiplas identidades do capitalismo, na sua diferença. Segundo Kurz, estas "pós-identidades" lançam as bases para uma "guerra civil molecular".

O artigo "Velhice (envelhecimento) e dissociação-valor. Linhas gerais de uma teoria crítica da velhice e do envelhecimento na sociedade produtora de mercadorias", de Andreas Urban, lida com um âmbito da vida, que é também uma relação social de desigualdade e de exclusão, até hoje muito raramente abordado no contexto da crítica da dissociação-valor: a velhice (envelhecimento). Ele tenta mostrar que também a velhice (o envelhecimento) pode ser analisado no contexto da dissociação-valor, e que a teoria da dissociação-valor pode contribuir decisivamente para uma melhor compreensão de fenómenos tais como a hostilidade aos idosos, a discriminação dos idosos, o anti-envelhecimento, etc., amplamente difundidos nas sociedades capitalistas, e que moldam decisivamente o trato social e individual com a velhice e com o envelhecimento, enquanto componente essencial da existência humana. A sua tese é que a velhice e o envelhecimento não se enquadram no processo de valorização, sendo este não enquadramento da velhice constituído principalmente pela exclusão das pessoas idosas do trabalho abstracto, o que no capitalismo desenvolvido assumiu a figura da instituição da idade da reforma. Neste contexto, ele fala de uma "dissociação da velhice" especificamente capitalista, como um princípio profundamente enraizado na estrutura das sociedades de produção de mercadorias, do qual decorre, em última instância, um contexto social estrutural fundamentalmente inimigo da velhice e sistematicamente excludente e discriminatório das pessoas idosas. Este conceito de dissociação da velhice, característico das sociedades capitalistas, é desdobrado em suas dimensões material-estrutural, cultural-simbólica e psicossocial. Urban esclarece ainda, numa segunda secção maior, as actuais tendências pós-modernas de uma "activação da velhice" sócio-política, no contexto da globalização, do neoliberalismo e das alterações demográficas. Ele mostra que nestes processos, que no plano da aparência também vão de par com uma positividade superficial do discurso sobre a velhice (assim se fala, há anos, na ciência e na sociedade, de uma velhice "activa", "competente" ou "produtiva", dos "potenciais dos idosos", dos "jovens idosos", etc.), se trata em primeiro lugar de uma mudança imanente na forma da moderna "dissociação da velhice", através da qual se chega a uma significativa escalada e intensificação da hostilidade capitalista à velhice, numa "cultura anti-envelhecimento" pós-moderna. Isso manifesta-se, em particular, numa tendência da sociedade no seu conjunto para a "falta de idade", bem como para o surgimento de uma indústria anti-envelhecimento em escala cada vez maior.

A fechar, um ensaio-recensão de Thomas Meyer de um livro de Tanja Paulitz (Mann und Maschine) [Homem e máquina], sobre o androcentrismo da engenharia e das ciências técnicas.

Thomas Meyer e Patrice Schlauch entraram para a redacção há algum tempo. Johannes Bareuther deixou recentemente a redacção. A continuação dos textos de Daniel Späth sobre a frente transversal e de Richard Aabromeit sobre o dinheiro está prevista para a próxima edição da exit!, podendo o primeiro, dada a sua extensão, sair eventualmente como livro.

 

O Colapso da Modernização de Robert Kurz foi publicado em italiano: Il collasso della modernizzazione, Mimesis Edizioni, Mailand 2017; saíram também dois livros de Anselm Jappe: La Société autophage – Capitalisme, démesure et autodestruction, La Découverte, Paris 2017 und The Writing on the Wall – On the Decomposition of Capitalism and Its Critics, Zero Books, London 2017. Este último é uma tradução do livro publicado inicialmente em francês Crédit à mort.

 

Thomas Meyer pela redacção da exit! em Dezembro de 2017

 

 

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(1) Tal como a eleição de Trump, ver Gerd Bedszent: Da Obamania ao último combate. Comentários a uma vitória eleitoral não tão completamente surpreendente (2016), http://www.obeco-online.org/gerd_bedszent3.htm.

(2) Robert Kurz: Die Demokratie frisst ihre Kinder – Bemerkungen zum neuen Rechtsradikalismus [A democracia devora os seus próprios filhos – Notas sobre o novo radicalismo de direita], in: Edition Krisis (Hg.): Rosemaries Babies – Die Demokratie und ihre Rechtsradikalen, Unkel/Rhein und Bad Honnef 1993, 11–87.

(3) Robert Kurz: Não há Leviatã que vos salve. Teses para uma teoria crítica do Estado. Segunda parte, Revista exit! nº 8, 2011. http://www.obeco-online.org/rkurz396.htm

(4) Ver Tomasz Konicz: Nationalsozial in den Wahlkampf? [Nacional-social na campanha eleitoral?], Telepolis, 22.12.2016.

(5) Ver o discurso de Lafontaine em “Stopp Air Base Ramstein”, 9.09.2017.

(6) Martin Sellner: Warum die AfD schon gewonnen hat [Porque é que a AfD já ganhou?], youtube.com vom 19.09.2017, ab ca. 5 Min, www.youtube.com/watch?v=z8TcgzeTH8E.

(7) Assim, Karlheinz Weißmann e outros fundaram há pouco a nova revista de direita Cato – Magazin für neue Sachlichkeit [Cato – Magazine para uma nova objectividade], com uma tiragem inicial de 50.000!

(8) Ver Daniel Späth: A "pós-verdade" e o último combate de rectaguarda da pós-modernidade neoliberal. Notas sobre a especificidade histórica das conjunturas ideológicas (2017), http://www.obeco-online.org/daniel_spath6.htm.

(9) O neonazi Alexander Gauland, da AfD, disse no seu discurso no dia das eleições de 24.09.2017: »Vamos correr com a Senhora Merkel, ou seja lá quem for, (!) e vamos recuperar para nós a nossa terra e o nosso povo.«

(10) Guerra e alterações climáticas também podem convergir, como foi o caso na fase inicial da guerra da Síria, veja-se, por exemplo, Daniel Lingenhöhl: Wie der syrische Bürgerkrieg mit dem Klimawandel zusammenhängt [Como a guerra civil síria está ligada com as alterações climáticas], Spektrum.de de 2.03.2015.

(11) Ali Akbar Dareini & Alexandra Rehn: Irans größter Binnensee wird zur Salzwüste [O maior lago do Irão torna-se um deserto de sal], welt.de de 22.02.2014.

(12) J. Lelieveld, Y. Proestos, P. Hadjinicolaou, M. Tanarhte, E. Tyrlis & G. Zittis: Strongly increasing heat extremes in the Middle East and North Africa (MENA) in the 21st century, in: Climate Change, Vol.137, 245260, Juli 2016, e também: Jeremy S. Pal & Elfaith A. B. Eltahir: Future temperature in southwest Asia projected to exceed a threshold for human adaptability, in: Nature Climate Change 6, 197200, 2016, online: eltahir.mit.edu/wp-content/uploads/2015/10/Supplementary.pdf.

(13) Shakeel Ahmed Ibne Mahmood: Impact of Climate Change in Bangladesh: The Role of Public Administration and Government’s Integrity, in: Journal of Ecology and the Natural Environment, Vol. 4(8), 223240, Mai 2012, www.gci.org.uk/Documents/Mahmood.pdf.

(14) Ver Gunther Jauk: Gletscherschwund im Himalaya [Desaparecimento de glaciar nos Himalaias], in: Spektrum der Wissenschaft 8/2003; P.D.A. Kraaijenbrink, M.F.P. Bierkens, A.F. Lutz & W.W. Immerzeel.: Impact of a global temperature rise of 1.5 degrees Celsius on Asia’s glaciers, in: Nature 549, 257260 (14.09.2017).

(15) Fabian Scheidler: Das Ende der Megamaschine – Geschichte einer scheiternden Zivilisation [O fim da megamáquina – História de uma civilização fracassada], Wien 2015, 4ª edição, 7.

(16) Fabian Scheidler : Chaos – Das neue Zeitalter der Revolutionen [Caos – A nova época das revoluções], Wien 2017, 53s.

(17) Ibidem 141.

(18) Sendo que o ideário transumanista também não é assim tão absolutamente novo, ver Christopher Coenen, Stefan Gammel, Reinhard Heil, Andreas Woyke (Hg.): Die Debatte über »Human Enhancement« – Historische, philosophische und ethische Aspekte der technologischen Verbesserung des Menschen [O debate sobre human enhancement. Aspectos históricos, filosóficos e éticos da melhoria tecnológica do ser humano], Bielefeld 2010.

(19) Ver, sobre isso: Richard Aabromeit: Emotionale Empörung und Ethische Entzauberung oder Ernsthafte Erklärung? – Philipp von Becker: »Der neue Glaube an die Unsterblichkeit« – Eine Buchbesprechung [Revolta emocional e desencanto ético ou explicação séria? – Recensão do livro de Philipp von Becker "A nova crença na imortalidade"] (2017), em exit-online.org.

(20) Ver também: Claus Peter Ortlieb: Bewusstlose Objektivität – Aspekte einer Kritik der mathematischen Naturwissenschaft (1998), em www.exit-online.org. Trad. port. parcial: Objetividade inconsciente. Aspectos de uma crítica das ciências matemáticas da natureza, em http://www.obeco-online.org/cpo_pt.htm 

(21) Ver Elisabeth Pernkopf: Unerwartetes erwarten – Zur Rolle des Experimentierens in naturwissenschaftlicher Forschung [Esperar o inesperado – O papel da experimentação na pesquisa em ciências naturais], Würzburg 2006, 94ss.

(22) Ver sobre isto a crítica ao “novo materialismo” de Fabian Hennig: Materialismus ist kein Synonym für Kritik – Thesen zu New Materialism, Posthumanismus und Feminismus [O materialismo não é sinónimo de crítica – Teses sobre o novo materialismo, o pós-humanismo e o feminismo], in: Outside the Box – Zeitschrift für Feministische Gesellschaftskritik, Nr. 6, Leipzig 2016, 67–73. A sua crítica tem muitos pontos coincidentes com a de Roswitha Scholz, veja-se também a apresentação de Henning no seminário da exit!, em Mainz, em 2017: Konjunkturen des Materialismus, Elend der Kritik – Zu den affirmativen Tendenzen neuer materialistischer Ontologien [Boom do materialismo, miséria da crítica. Sobre as tendências afirmativas das novas ontologias materialistas], registo audio em: exit-lesekreis-hh.de/2017/10/28/exit-seminar-2017-tonaufnahmen/.

(23) Publicado pela primeira vez em: Klaus Bittermann (Hrsg.): Identität und Wahn – Über einen nationalen Minderwertigkeitskomplex [Identidade e ilusão – Sobre um complexo de inferioridade nacional], Berlin 1994, 42–62.

 

Original exit! Krise und Kritik der Warengesellschaft, Heft 15, April 2018, Inhalt und Editorial in www.exit-online.org. Tradução de Boaventura Antunes

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